Descobrir e redescobrir Machado de Assis

Por Pedro Fernandes

Machado de Assis. Foto: Insley Pacheco, planotipia de Marc Ferrez.

 
Cada época redescobre as grandes obras da literatura de uma maneira distinta. E uma coleção reunindo todos os livros de Machado de Assis tal como publicados em vida talvez seja uma parte dentre os feitos de redescoberta para o século XXI da obra desse escritor. Há muito se mostra a sua relevância para a literatura universal, mesmo que essa qualidade tenha precisado sair da pena de parte importante da crítica estrangeira para os de casa entenderem o lugar do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); não negamos que o reconhecimento, ao contrário do sucedido a tantos outros da sua estirpe, tenha lhe chegado em vida, mas essa amplitude, fora das esterilizantes fronteiras do nacional como se impôs aos nossos escritores, é relativamente nova e só aconteceu tão tardiamente quando se opera sua redescoberta como o autor de uma obra circunscrita no panorama mundial; além de certo bairrismo, que, diga-se, Machado condenava veemente, não faltam outros limites, como os do escritor periférico de um país com nula expressão política e cultural, ou pelo menos duvidosa, escrevendo numa língua de baixíssima relevância. Antes tarde que nunca — diz a expressão de algum consolo. E mesmo não sendo unanimidade (e quem o é) na ocasião encontramos Machado noutro patamar e renovadas as  motivações em torno da sua obra, o que aponta para uma futura condição de clássico.
 
Durante muito tempo, essa obra esteve reduzida a três ou quatro romances. Ao citado no parágrafo anterior mais Dom Casmurro (1899) e, esticando muito os interesses, somavam-se Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Recentemente também, com certo advento do prestígio da narrativa curta, valorizou-se o contista, ao ponto de, em alguns casos, alguns dos textos nessa forma da prosa ocuparem a mesma a altura dos seus principais romances, como é caso de “O alienista” (de Papéis avulsos, 1882), “A cartomante” e “Mariana” (de Várias histórias, 1896). Agora, o restante dos romances sempre foi colocado como uma extensão malsã do romantismo, porque o astro dominante nessa seara é José de Alencar, enquanto a poesia, o teatro, o ensaio crítico e a crônica estiveram no rol das curiosidades, da perquirição biográfica ou dos acessos às opiniões pessoais do escritor para os temas mais espinhosos, afinal, ele foi uma testemunha de algumas das grandes transformações históricas, políticas e sociais no interregno do Império para a República esteve mais ou menos próximo do centro do poder dominante. Quer dizer, a grandiosidade de Machado de Assis esteve ancorada numa ínfima parte do seu universo criativo e, por isso, justificada ora como advinda de certo espontaneísmo, ora como um mistério, coisa de gênio, afinal, a distinta literatura que se mostra a partir de Memórias póstumas é, ao mesmo tempo, o ponto de virada, quando apenas se considera toda a prolifica produção anterior pela régua do valor inferior, e o de aparecimento definito daquele que se tornaria um dos maiores da literatura brasileira.
 
Não faltam explicações. E cada época trata de engendrar a sua. Mas, a ideia do gênio, muito em voga entre os românticos e cujas matrizes ainda permanecem entre nós — casos semelhantes se notam com vários outros nomes da literatura dentro e fora do nosso tempo e contexto — e talvez um tanto deturpada esteja entre as que melhor contribuíram para a formação dessa imagem de Machado de Assis que só agora começa a ser refeita com o bisturi mais da razão, encontrada no exame atento dos materiais que formam sua bibliografia ativa. Por uma qualidade imanente do indivíduo, a singularidade do gênio, o que faz criatura separada dos demais, é animada por sua capacidade de inteligência, imaginação e sensibilidade advindas de sua natureza. O que essa condição ignorava é que qualquer produto da experiência criativa se constitui da conjunção entre talento e aprendizagem, e esta última é conseguida da persistência do artista com o estudo e os usos das formas à sua disposição e mesmo assim nem sempre resolvida satisfatoriamente na maturidade. No caso do Bruxo do Cosme Velho os demonstrativos desse trabalho com a forja literária são públicos e explicáveis pela parte da sua obra sempre colocada à sombra dos produtos do gênio.
 
Mesmo que o nosso contato apareça limitado — porque dessa vasta parte submersa da sua obra o que passou para os livros estava de acordo com as qualidades da obra cumprida — o desafio de acompanharmos o curso criativo de Machado de Assis do primeiro ao último livro responderá muito bem por isso que vimos dizendo. Não se trata de uma negação do gênio, mas da compreensão de que sua existência está muito distante de ser obra da Fortuna ou lampejo divino para com os sujeitos de existência atribulada, de destino com todas as setas apontadas para o fracasso, como se quis reforçar continuamente com as qualidades de pobre, epiléptico, preto e periférico. Por mais que se diga da afeição do escritor desde tenra idade com tudo o que se diz da letra, parece faltar outra vez, uma redescoberta de como este homem se fez num meio alheio à sua condição pela força de uma persistência com a escrita, no torneio com a palavra, numa contínua aprendizagem dos modelos dominantes, fosse nos temas, nos estilos, nos usos da linguagem e sua reformulação no estabelecimento de seus próprios modelos. Esse compromisso exercido, ininterruptamente das primeiras letras até aos 69 anos justifica o gênio. Também esclarece que sua literatura não ignora o mundo exterior — ninguém está a salvo dele —, muito embora, Machado tenha feito com que tudo só se deixasse passar pelos limites criativos da escrita e a obra a única coisa interessante de ficar para a posteridade, repetindo o gesto daqueles outros grandes nomes que leu e emulou.
 
Outros dois elementos de cariz romântico se notam na feitura do gênio Machado de Assis, mas esses nem sempre são reparados: o seu primeiro interesse em se reconhecer como poeta; a aposta, negando continuamente os procedimentos do romance naturalista e realista, no regresso a um modelo literário cuja matriz historiográfica remonta um ponto inequívoco do romantismo. Este último aparece visível nos textos críticos que nos legou e está entre as apostas mais recentes de leitura da sua obra (como fez John Gledson, para citar um exemplo) que têm reparado como o escritor construiu engenhosamente essa matriz, fez passa ao interior da ficção a história (e o social), sem se repetir nas conhecidas estratégias do romance histórico inglês, ou português ou cair nas maneiras simplistas de um engajado como agora alguns leitores querem impor à sua obra, sobretudo, porque ao olho machadiano interessará as idiossincrasias recorrentes (assim mesmo, contraditoriamente) na figura humana. É através delas que se deixa revelar o seu tempo, os modos como os desse esse mesmo tempo lidavam com os elementos espinhosos, alguns deles, até agora irresolutos.
 
Tratando-se dos planos formais e estruturais, um exemplo notável é o seu último romance, Memorial de Aires, em que o romancista sem abandonar a plena atitude da dissimulatio, traz à cena a exposição da caixa de máquinas do seu teatro, averiguando suas peças, ensaiando a possibilidade de situações, da composição de suas criaturas e mesmo de um enredo no qual se permita percebê-las em suas variadas nuances. Este livro é, na verdade, um estudo do romance, a recolha dos seus materiais preparatórios e de como o romancista pode organizar sua composição decidindo-se acerca do trançado do enredo, desfazendo-se, definitivamente, da obra como matéria de inspiração, conduzida ao sabor das Musas. Ou seja, num tempo muito remoto ao da sanha pós-modernista, Machado pratica suas inovações ficcionais, tensiona as fronteiras do factual e da imaginação, lida com o romance enquanto espaço de experimentação e à maneira de alguns dos seus antecessores, trata a prosa romanesca como uma matéria brincante, desfazendo-a da sisuda verossimilhança com a qual os românticos teceram suas histórias ou da caricatura de livre riso dos naturalistas.
 
Mas, antes, e a poesia? Este gênero e o teatro constituem boa parte dos primeiros livros de Machado de Assis. Quando sai o primeiro romance, Ressurreição, em 1872, se publicara cinco peças — Desencantos (1861), duas comédias em Teatro (1863), Quase ministro (1864) e Os deuses de casaca (1866); os dois livros de poesia — Crisálidas (1864) e Falenas (1870); e o livro Contos fluminenses (1870). Duas explicações parecem se impor: o reconhecimento literário no seu tempo não chegava pela atividade de romancista. A generosa lista de poetas compilada pelo Machado ensaísta em “A nova geração” parece demonstrar que, entre nós, acompanhando o resquício ocidental, o reconhecimento do literato passava pelo domínio das primeiras formas poéticas. Ora, nosso romantismo e os protótipos matrizes estéticas anteriores estiveram centradas no desenvolvimento de um engenho literário capaz de se colocar ao lado dos clássicos e um demonstrativo disso parece ser a busca pela escrita, sempre emulada, das formas grandiloquentes, como a epopeia e a tragédia. O teatro, considerando-se o tempo do nosso escritor, significa ainda o reconhecimento público como será o folhetim; vivíamos o seu auge no Brasil desde quando a fixação do império português fizera florescer um circuito cultural refinado, colocando-nos em contato com o itinerário internacional das grandes companhias.
 
De outro modo, é possível intuir ainda que o convívio de Machado de Assis com esses gêneros é parte na aprendizagem que resultará no desenvolvimento das inovações criativas com o romanesco, fosse pela apreensão das figuras e suas variações, na construção dos enredos, na constituição de uma linguagem sempre afeita à objetividade e ao simples sem deixar se enredar pelas qualidades simbólicas, metafóricas e, mais adiante, marcar-se pela fina ironia, e, por fim, na composição dos temas e obsessões, sobretudo daqueles que circunscrevem as nossas complexidades, examinando-os sob ponto de vista sempre marcado pelo limiar e pela contradição, aferindo argumentos que dispensam essa superficialidade do tipo de senso comum.

Não é necessário enumerar as qualidades editoriais do feito proposto por Hélio de Seixas Guimarães no que assim designou como Coleção Todos os Livros de Machado de Assis; elas foram e ainda serão apontadas variadamente nos textos de divulgação da obra. Agora, em maneira de algum acréscimo ao que vimos desenvolvendo nesta matéria, esta publicação coloca em prática a busca dos aspectos favorecidos pela leitura cronológica e que aqui apontamos pelo menos em dois valores: descobrirmos como se forja o gênio, não da espontaneidade do surgimento, mas do fazer-se, isto é, a consequência de um escritor que, desde sempre, se desdobra em frentes criativas das mais diferentes; e percebermos como suas qualidades reconhecidas nos chamados romances da fase realista aparecem, desaparecem, distendem-se e se multiplicam ao longo do seu universo literário. A estes ainda adicionaríamos: compreendermos como o escritor, cioso do seu ofício, estabeleceu seus interesses e os trabalhou diversamente, à maneira cobrada por cada um dos gêneros literários que praticou.
 
Mas não apenas isso. O reencontro com a parte encoberta (para muitos, o encontro) da obra machadiana apenas como um gesto iluminador para aquela parte reconhecida é ainda um tanto limitador. Força-nos a manter, por outro prisma, o que até então se creditou: tudo o mais só existiu para resultar na obra da maturidade, perfazendo certa diretriz determinista, algo que o próprio Machado buscou se esquivar e pôde se rir diversamente na sua obra: quem não recorda a reflexão de Brás Cubas acerca da presença de Dona Plácida no mundo, sendo a de apenas favorecer a existência do enlace amoroso entre ele e Virgília? Talvez, a melhor qualidade da coleção, portanto, seja chamar atenção para os valores próprios dessas obras, não apenas como funcionam no âmbito da literatura de seu tempo e com as demais peças do universo machadiano. Porque não são esses livros a mais na tábua bibliográfica do escritor, produtos de um acidente de percurso ou de aperfeiçoamentos, o material sem o qual não veríamos a formação do Machado de Assis que conhecemos.
 
Olhando-se dessa maneira é possível admitir certas qualidades das chamadas obras menores que permanecem escondidas porque o brio das maiores cuidou de ofuscar. Um caso singular, nesse sentido, é Helena (1876). Escrito para ser publicado em O Globo a pedido de Quintino Bocaiuva — jornalista que desde sempre apostou no talento literário de Machado e a quem dedica o primeiro livro, Desencantos (1861) —, o romance em questão é um dos livros sempre reduzidos ao arcabouço romântico; mas se abstrairmos o olhar educado para ver primeiro a época e depois as relações com os demais romances machadianos, podemos encontrar nele a antecipação entre nós de muitos dos interesses realistas e, diríamos que esses se sobressaem melhor aqui e não em Memórias póstumas de Brás Cubas, um romance que, considerado o ponto de vista da forma e mesmo da feitura literária, pouco ou nada tem de realista e significa o passo adiante do escritor no tratamento romanesco. No plano temático, é notável como este livro fornece uma imagem da escravatura pelo ponto de vista da elite dominante, para citar uma questão cara no funcionamento do restante da obra e a partir da qual sempre se acusou certa inépcia de Machado. A observação dessas variantes só está ao alcance considerando-se a singularidade no interior da diversidade da obra ou considerando-se algumas questões particularmente. E poderíamos estender o que agora dizemos ainda para o âmbito da heterogeneidade formal e criativa, notando como cada obra abre-se para um desafio criativo nem sempre levado em consideração, mas que essa pequena biblioteca ora publicada consegue fundear os caminhos nesse sentido.



Além dos 25 volumes de obras literárias que organizou, revisou e publicou em vida, a novidade na coleção é um livro extra intitulado Terras, um feito da organização que recupera um material mandado sair em 1886 pela Imprensa Nacional. A visita a qualquer biografia de Machado de Assis não deixará de confirmar sua atuação como funcionário público, uma carreira que se forma treze anos da sua estreia literária, quando foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial, um cargo subordinado ao Ministério da Fazenda; na vida de burocrata, galgou diversas outras funções como as de primeiro oficial, ou amanuense do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas; chefe da 2.ª Seção do mesmo Ministério, tendo exercido algumas vezes funções oficiais de gabinete e diretor-geral de contabilidade, atuando na Comissão Fiscal e Administrativa das Obras do Porto do Rio de Janeiro, enfim, andando ao ritmo das muitas idas e vindas do próprio sistema público que sempre vai ao compasso dos interesses políticos de ou de outro governo, um dos nossos males terríveis. 

O volume extra da coleção apresenta um compilado de avisos, resoluções, portarias, leis e decretos, alguns desses documentos despachados e por ele assinados. Um material que, à saída da biblioteca aponta, para outra de suas atividades, a do homem público cujo esmero é de uma rara lição aos tantos que ocupam funções do tipo no Brasil. No texto de apresentação desse pequeno caderno de apontamentos, podemos chamar assim, Hélio de Seixas Guimarães diz: “Também em relação a essa atividade [a de funcionário público] manteve-se sempre discreto. Embora tivesse trânsito e espaço em vários jornais, nos quais publicou centenas de crônicas ao longo de décadas, raramente trouxe a público assuntos discutidos no âmbito da Secretaria.”
 
Projeto ambicioso, importa que essa coleção estabeleça novos rumos para compreendermos melhor os valores de uma literatura feita das múltiplas qualidades exercidas por um homem de ofício que se fez um sistema próprio e fundeou o estabelecimento de uma consciência acerca do nosso complexo literário. Se notarmos com Antonio Candido que todo sistema do tipo prescinde do escritor, da obra e do leitor, encontraremos um Machado em cada frente exercendo o pleno papel devido quando rareava entre nós essas dimensões, permitindo assim que, a partir dele, pudéssemos expandi-las e formar o restante de um universo agora quase impossível de abarcar.


Ligações a esta post:

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Coleção Todos os Livros de Machado de Assis 
Caixa com tiragem limitada a 500 exemplares
Hélio de Seixas Guimarães (organização e apresentação)
Todavia, 2023

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