Por Pedro Fernandes
A ilha é, afinal de contas, o
refúgio último da liberdade, que em toda a parte se busca destruir.
— Carlos Drummond de Andrade
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Pilar del Río. Foto: Jeosm |
Na sessão de apresentação do
romance O último minuto na vida de Saramago ocorrida em outubro de 2023
na reservada e preciosa Sala Gema da Livraria Lello, no Porto, Miguel Real colocou
José Saramago e Pilar del Río entre os grandes amores que constituem a história (e já o imaginário) portuguesa. Sem a sina trágica e sem os clichês da convenção
amorosa, na concepção do escritor, o encontro conciliou uma união ibérica
centrada nos princípios mais caros ao humano neste século: os de uma ética
centrada nos valores culturais, críticos e integrados com a ação interventiva e
libertária num mundo continuamente assombrado pelas opressões e de escassa
mão-de-obra para as transformações capazes de desviar a civilização do projeto
de ruína para o qual se dirige cegamente.
José Saramago conheceu Pilar del
Río em Lisboa no dia 14 de junho de 1986. O registro está na agenda do escritor
desse ano, agora parte entre os muitos papéis que formam o arquivo permanente
da exposição A semente e os frutos, na Casa dos Bicos, sede da fundação cujo
trabalho tem sido o de semear os valores da ética almejada pelo casal; está nos
relógios em A Casa, de Lanzarote, fixados às 16 horas; está entrevisto no
singular encontro entre José Anaiço e Joana Carda em A jangada de pedra,
o romance que chegaria aos leitores dali a cinco meses do acontecido com José e
Pilar. O motivo que resultou no primeiro do encontro foi o interesse dela, então
tocada pela leitura de O ano da morte de Ricardo Reis, de agradecer ao
autor pelo livro; o restante, da continuidade do convívio entre um senhor, como muitas de suas personagens, outra vez devolvido à expectativa amorosa quando
os sentidos para tanto encontravam-se envoltos em qualquer nebulosa indistinguível
do destino, o passo é conhecido dos leitores.
Os dois chegam a Lanzarote em 1993,
a ilha onde esteve pela primeira vez dois anos antes depois de uma série de
conferências em Santa Cruz de Tenerife e em Las Palmas de Gran Canaria. Nesse ponto
do tempo se situa o percurso desenvolvido por A intuição da ilha, em que
Pilar del Río registra os dias de José Saramago no lugar que se tornou a própria
jangada de pedra do escritor; ela própria observa como a narrativa do romance de 1986 finda
com a Península Ibérica, depois do deslocamento pelo Atlântico, algures entre três
continentes e como a ilha que escolhe para o resto da vida, noutra coincidência
ao sabor do acaso, também é geograficamente circunscrita entre a América, a
Europa e a África.
Os registros de A intuição da
ilha cobrem, assim, da chegada a Lanzarote à morte de Saramago em 2010 e
preenchem uma curiosidade gestada por muitos leitores, ainda que uma parte
disso tenha se esclarecido com o documentário de Miguel Gonçalves Mendes que
segue a vida diária do casal durante o tempo de realização de outro itinerário,
o da escrita de A viagem do elefante. O livro de Pilar del Río não é apenas
o testemunho privilegiado de quem conviveu com um dos maiores da literatura no
século XX, é a resposta pública à repetível pergunta de resposta interminável que
atravessa o caminho da jornalista há muito: como era a vida comum de José
Saramago? Uma interrogação continuadora de outra, feita a todo escritor, sobre
sua rotina criativa. Uma resposta iniciada por ele quando, instalado em
Lanzarote, decidiu pelo registro dos seus dias na nova morada, num gesto nobre
dos muitos que o acompanhou na relação com os seus leitores.
Evidentemente que os leitores
saramaguianos chegam ao livro de Pilar del Río com a curiosidade e essa
intuição de continuidade, mas, coincidindo com nossas sensibilidades, ela mesma
oferece-nos uma justificativa que, além de tudo, demonstra uma autora muito
firme do seu propósito; a explicação é entregue num dos primeiros textos, em “Para
que serve este livro” e nos diz, depois de circunstanciar a escrita dos diários
conduzida por José Saramago desde os primeiros anos em Lanzarote, que
A intuição da ilha se faz como um gesto de reconhecimento ao trabalho desse
escritor e como uma forma de agradecimento — “É um livro de leitores e um ato
de amor”, conclui.
Os diários saramaguianos
desviam-se do modelo fixado do gênero e se tornam o espaço onde a intimidade é
o registro da agitada vida pública e as opiniões do escritor sobre os assuntos
mais diversos; e na passagem do tempo não tarda descobrirmos uma escrita que
ficciona o escritor, o intelectual e o homem público. Ou seja, os diários
adquirem as feições de um protorromance, um livro de ensaios ou mesmo um ensaio
de romance. Isso acontece por várias razões: o diário exerce duplo movimento,
revela e vela a intimidade perquirida pelo leitor. Encontrando o escritor não
encontramos o trivial da vida íntima porque isso, composto das mesmas coisas
com alguma pequena variação, interessa apenas ao seu protagonista. Uma dessas
lições caras ao nosso tempo de exposição massiva dos indivíduos e que o escritor
viu nascer e experimentou sobretudo a partir do Prêmio Nobel de Literatura, em
1998.
Foi ainda nos Cadernos de
Lanzarote que conhecemos os primeiros registros de Pilar del Río. No quarto
volume, a passagem do casal pelo Brasil entre janeiro e fevereiro de 1996, na
ocasião quando Saramago recebe o Prêmio Camões, o escritor cede espaço para um “Diário
de viagem de Pilar”; os acontecimentos são narrados por ela com um protagonismo
coletivo, à maneira do ofício então desempenhado ao lado do escritor e do qual
o referido documentário José e Pilar nos deu sua imagem. Quatro anos depois, na
irretocável edição da Colóquio/ Letras organizada por Maria Alzira
Seixo, outra vez encontramos com a escrita da jornalista espanhola através de um
conjunto de anotações que passam em revista os dias da recepção em Estocolmo; é
um mergulho na intimidade do grande acontecimento à maneira de alguém que
explica a outro um álbum de fotografias da família.
Esses materiais e outros uma vez
publicados somadas as muitas intervenções públicas lidas em várias partes do
mundo explicam que se o livro é uma novidade na biografia de Pilar del Río, não
é o convívio com a escrita. Agora, ao se colocar como leitora entre leitores,
ela oferece uma dimensão nova que não se fixa na figura da companheira, nem mesmo da jornalista, reafirmando
que a intimidade registrada em A intuição da ilha segue o curso da que foi
engendrada por Saramago nos Cadernos. Seu livro se situa num limiar
entre o memorialístico e o cronístico. Seus textos ora feitos do recordar ora
do registrar se ordenam pelas duas técnicas dessas dimensões e são continuamente mediados pela literatura saramaguiana. O ponto de vista,
por sua vez, não é fixo, tampouco é único e não é apenas porque se permite à
voz do outro entre os relatos de corte jornalístico, mas também ao ponto de vista
alheio, alguns deles, inusitado até. Ou seja, podemos designar este livro como
um conjunto de crônicas e seguindo ao que cabe neste gênero, sua autora permite-se desenvolver
livremente o que se quer contar, passando muitas vezes às raias do discurso
ficcional.
Um demonstrativo singular desse
exercício — também sensível e belíssimo — encontramos no texto intitulado “O
anúncio do Nobel”. A história, para os leitores saramaguianos, já é um tanto
repetida: o escritor soube da notícia vinda de Estocolmo no aeroporto de Frankfurt
de onde voltava da Feira do Livro e de onde ele mesmo anotaria nas páginas do
que ficou sendo o último dos seus Cadernos de Lanzarote publicados postumamente — “8 de outubro/
Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Tereza Cruz. Entrevistas.” E,
para não cair em repetições, a autora de A intuição da ilha adota a perspectiva
de Pepe, Greta e Camões, figuras apresentadas anteriormente noutra crônica que
traz os nomes dos cães como título e conta como chegaram aos cuidados de José Saramago; são eles
que testemunham a repentina alteração da rotina em A Casa, do burburinho incessante das
conversas que não compreendem, passando pelo repetido tilintar de taças, à
fúria do alvoroço das comunicações e da imprensa, ou seja, quando no plano das
pessoas, todos estavam à cata do recém-premiado.
Muito do que é registrado,
principalmente para os leitores saramaguianos que acompanham os passos do
escritor desde sua incursão pela web e os registros nesta rede das
atividades da Fundação e mesmo de A Casa, não é novidade. Mas o prazer da cronista
— “O anúncio do Nobel” nos mostra isso — não está no que conta e sim como o
faz. Para citar outro exemplo em torno do mesmo acontecimento de 1998, nada nos
diz dos vários dias de recepção em Estocolmo, nem diretamente do que significou o reconhecimento da Academia
Sueca, mas sabemos que isso e os preparativos da viagem, os dias fora da ilha, o banquete etc. ocuparam o lugar de
marco definitivo, primeiro no dia a dia do casal e depois na sua história. A razão parecerá simples: os
acontecimentos tratados no livro são os circunscritos à Lanzarote. Mas não é isso. Tudo,
evidentemente, está relacionado à ilha, mas vários episódios referidos aconteceram
fora dessa geografia — como a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, uma
porta de entrada e de estada de Saramago no México ou o funeral do escritor em Lisboa, da
passagem pelo cemitério do Alto de São João à sepultura sob a oliveira trazida
de Azinhaga, onde nasceu, e também adubada com em terra lanzarotenha, ante a
Casa dos Bicos. Nesse caso, o interesse da cronista volta-se para a escrita do
discurso proferido durante do banquete do Nobel, a intervenção em que, coincidindo
com os cinquenta anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, se fazia um chamado à observância dos princípios contidos no documento
como um dos deveres dos muitos faltantes aos poderes decisórios.
Ora, desde a tribuna da Academia
Sueca às outras que se abriram à voz de José Saramago depois do Prêmio Nobel, o
escritor se fez porta-voz das pautas mais urgentes da civilização. E se no
escritor a dimensão ética esteve irmanada com a criativa, e os princípios do
livro de Pilar del Río regem-se pelos de leitora saramaguiana, além da criação,
também a ética é uma das linhas norteadoras de A intuição da ilha. Ao
recorrer ao apelo que ganharia voz naquela gelada noite de dezembro de 1998, a
cronista continua a reverberar a urgência de então; torna o acontecimento em oportunidade
para contar os desenvolvimentos nos anos seguintes, como a Declaração Universal
dos Deveres Humanos, uma iniciativa coletiva registrada no desfecho do livro em
gesto de cobrança e circulação dos princípios assinados em julho de 2017, ou
seja, quer sua autora um livro capaz de chegar ao espírito do compromisso e não
ser um desses catálogos de curiosidades para entretenimento.
A transcrição do Discurso do
Banquete no âmbito da crônica “Deveres Humanos” é um recurso que demonstra a justificativa
da posição criativa da leitora e muito tem do que encontramos na obra de José
Saramago. À dimensão ética, a leitora Pilar del Río, agrega o traço estético e
faz com A intuição da ilha um jogo intertextual disposto desde a
abertura, com a presença do poema “Na ilha por vezes habitada”, de Provavelmente
alegria. Daqui, passamos por uma rede de citações — do Ensaio sobre a
cegueira, o primeiro romance que José Saramago escreveu em Lanzarote; de O
conto da ilha desconhecida; de A jangada de pedra; de Todos os
nomes; de O homem duplicado; de A caverna; dos Cadernos
de Lanzarote, evidentemente; entre outros títulos e textos que constituem a
obra saramaguiana.
Os livros de José Saramago aqui referidos
mais Ensaio sobre a lucidez, As intermitências da morte, As
pequenas memórias, A viagem do elefante, Caim, o inacabado Alabardas,
alabardas, espingardas, espingardas e tantos outros, se fizeram em A Casa. E
muito desses passavam imediatamente às mãos de Pilar del Río que os traduzia ao
espanhol. É nessas crônicas que encontramos a parte essencial da leitora, mais
dela que a de testemunha dos bastidores trabalho de Saramago — o ofício de um
escritor se exerce no silêncio do escritório, sem intervenções que não as da
música, como era no caso saramaguiano. A cronista registra, algumas vezes, a
gênese da obra, noutros, os possíveis acontecimentos que influenciaram o autor,
noutros ainda, suas observações de leitora, as sessões de apresentação dos
livros e a percepção dos que leram e ouviram sobre a obra.
Assim, sabemos da comoção do
escritor durante o desértico convívio com o mundo de Ensaio sobre a cegueira,
ampliando o que se registra nos Cadernos; revemos a imagem registrada em
José e Pilar dos preparativos para imersão na viagem de Salomão e o seu
cornaca; sabemos que a ideia de O homem duplicado alcança o escritor
numa manhã enquanto se barbeava, “e vendo sua imagem refletida no espelho José
Saramago perguntou-se se seria suportável que existisse alguém exatamente igual
a si mesmo”; que o Ensaio sobre a lucidez é parte das interrogações ante
o papel e o lugar da democracia entre os povos dos muitos continentes que visitava;
recordamos outra passagem do documentário de Miguel Gonçalves Mendes, que a
apresentação mundial de A viagem do elefante acontecida no Brasil por um
compromisso entre o escritor e o seu editor neste país, Luiz Schwarz, se passa ainda
na difícil convalescença da doença que o interrompeu com andamento do romance.
Mas, outra importante personagem nessas
crônicas é A Casa. A construção do primeiro escritório, a reforma, a
inauguração da biblioteca, o convívio com os muitos que frequentaram o escritor
— Ernesto Sabato, Maria Kodama, Sebastião Salgado, Bernardo Bertolucci, Carlos
Fuentes, Eduardo Galeano, Claudio Magris, Juan Goytisolo, Mario Vargas Llosa, entre
outros — e a defesa em manter o espaço vivo com o “ofício de contar, de
agradecer e de confiar no futuro que se constrói se os seres humanos, homens e
mulheres, o fizerem”. É também a própria ilha, os lugares porque passou, a
paisagem fabulosa, o convívio de José com os seus habitantes anônimos e
reconhecidos, os vários acontecimentos culturais que avivaram a dimensão cultural do lugar,
o reconhecimento como filho de Lanzarote. Nos textos que contemplam esse
interesse, melhor se mostra a jornalista, sempre atenta às pessoas e às
circunstâncias. É ainda a voz de uma anfitriã sempre muito generosa e receptiva;
o demonstrativo de uma empatia que, sabemos, não é apenas matéria feita para o
livro.
A intuição da ilha é um
livro que pode ser lido de duas maneiras: os textos, separadamente, organizados
ao sabor e a critério dos interesses do leitor no instante de leitura, fazendo-se
errante e construindo um itinerário próprio; ou obedecendo a disposição
proposta pela autora, cronologicamente, ainda que os episódios narrados não se
fechem numa linha temporal como é caso no andamento da memória. Seguindo esse
movimento, poderemos encontrar, qual os Cadernos de Lanzarote, um
protorromance, sempre capaz de oferecer retratos muito vivos de personagens e
situações de um tempo marcado pela correnteza variável da vida, essa ilha/ casa
feita de burburinhos, tilintar de taças, alguma fúria e silêncio.
Em “Divagações sobre as ilhas”, a
crônica de Carlos Drummond de Andrade da qual saiu a epígrafe deste texto, o
autor almeja comprar uma ilha nem tão longe e não tão perto do litoral porque não
quer se afastar demasiado dos homens nem se obrigar a praticá-los diuturnamente:
“Porque esta é a ciência e, direi, a arte do viver bem; uma fuga relativa, e
não muito estouvada confraternização.” E depois passa a discorrer sobre o que
valeria levar para este lugar desenhando uma geografia que, notamos no final, é um
registro pelo avesso, da ilha de Robinson Crusoé. Também assim o fez José
Saramago com Lanzarote; levou consigo o andamento de um romance e a prática drummondiana
tão belamente capturada por sua leitora mais apaixonada neste livro que agora
lemos. Voltamos ao ponto de início redizendo nosso poeta maior, que, este livro
como gesto de amor, é de refúgio último da liberdade, que em toda a parte se
busca destruir.
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A intuição da ilha. Os dias de
José Saramago em Lanzarote
Pilar del Río
Sérgio Machado Letria (Org.)
Companhia das Letras, 2022.
288 p.
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