Por Rafael Narbona
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J. M. Coetzee. Foto: Murray White |
J. M. Coetzee já é, sem dúvida, um clássico. Não porque tenha recebido o
Prêmio Nobel, mas porque conseguiu penetrar nos estratos mais profundas da
consciência humana com uma prosa cuidadosamente refinada, onde a concisão e a
precisão se unem à introspecção e ao lirismo. Com este texto concluo o meu
percurso por alguns dos livros que antecederam a atribuição do Nobel em 2003.
Alguns apontam que a Trilogia de Jesus carece do interesse de seus
romances da maturidade, mas acredito que ainda reflita um firme compromisso com
a inovação. Coetzee não se limitou a repetir uma fórmula. Cada livro constituiu
um exercício de renovação e autocrítica. É a atitude que caracteriza os grandes
criadores.
Dostoiévski e a maldição da escrita¹
A literatura alimenta-se de literatura. Daí, o escritor sul-africano faz
de Dostoiévski o protagonista de uma de suas ficções. O escritor russo possuía
um enorme talento e uma personalidade obscura e complexa. As suas experiências
mais dolorosas, como os anos de deportação na Sibéria e as sucessivas perdas de
entes queridos, coexistiam com uma sexualidade sombria e perversa, um
cristianismo agônico e um angustiante desejo de expiação.
Em O mestre de Petersburgo, publicado em 1994, Coetzee aborda
estas questões, explorando problemas morais como o conflito entre meios
ilegítimos e fins nobres, o incesto e a ambivalência dos afetos a partir de uma
perspectiva realista pontuada por digressões oníricas. Coetzee nos conta que
Dostoiévski deixa seu exílio em Dresden para retornar a São Petersburgo, onde
seu enteado Pável acaba de morrer em circunstâncias estranhas. Incapaz de
descobrir se cometeu suicídio ou foi assassinado pela polícia, ele conhece o
pequeno círculo de revolucionários que o recrutaram para a sua causa.
Hospedado na casa de Anna Serguêievna, a antiga de seu enteado, ele
inicia uma descida às profundezas de si mesmo, onde descobrirá a ambivalência
de seus sentimentos. A princípio, enlouquece pela ideia da morte como uma
separação irreversível, agravada pelo esquecimento. O progressivo enfraquecimento
da memória torna-se menos doloroso quando percebe que enquanto viver o enteado
não terá morrido completamente. A luta contra “uma passividade amoral e vaga”
não o impede de estabelecer uma relação amorosa com a sua senhoria, uma jovem
viúva, de caráter determinado e intenso.
Em meio a visões terríveis e ferozes ataques epilépticos, Dostoiévski
usa sua amante para alcançar seu enteado. Ao seu lado, experimenta “um íntimo
voluptuoso de se confessar”. Pressionar seu corpo contra o dela, deixar-se
capturar pelos braços dela. É como queimar na pira de Joana D’Arc ou lutar
contra o tempo, vivenciando a proximidade do amor e da morte.
No meio desta vertigem surge um fascínio pelo pecado e pela degradação
que atinge o seu apogeu quando as fantasias tomam como objeto a filha da
senhoria, “uma daquelas meninas que se entregam porque sua disposição natural é
serem boas, submeterem-se”. Não há desejo capaz de profanar essas jovens.
Apesar de todos os ultrajes, elas permanecem sempre intactas, invioláveis.
Dostoiévski diz a si mesmo que a menina que se oferece a um homem adulto tem a
pureza da Virgem. Ela se prostitui como faria a Mãe do Redentor. Nada pode
manchar sua inocência.
Durante a sua estada em São Petersburgo, o escritor terá a sensação de
que todas as abjeções repousam sobre seus ombros. Condenado a buscar uma expiação,
tentará redimir-se ajudando um mendigo, mas suas ações não conseguirão apagar
sua predisposição ao pecado, à necessidade de cometer ignomínia para depois
experimentar o prazer da humilhação. A intensidade de seu sofrimento é a fonte
de sua escrita. Pensa que seria um crime renegar aquele fogo que o devora por
dentro. Não se escreve graças à plenitude. É a angústia que lança no coração a semente
da escrita.
Ser “poeta, tocador de lira, mago, senhor da ressurreição” não é uma
dádiva, mas uma terrível maldição que se enraíza numa alma envenenada. Sua vida
é “um preço ou uma moeda. É algo com que pago para poder escrever.” Lendo os
artigos de Pável, que incluem alguns esboços literários, Dostoiévski encontra
uma nova fonte de dor. Seu enteado não o amava. Ele o considerava um homem
horrível, a causa de todos os seus infortúnios.
Esse ressentimento garante um futuro de infortúnio. “Impossível
continuar vivendo com uma criança dentro de si cuja última palavra não é de
perdão.
” Pável é um anjo perdido com a
alma de camponês. Não é um bailarino, mas sim um desses humilhados que transitam
pela obra do padrasto. A sua dor não é menos intensa que a de um homem que deu
a sua alma em troca da escrita.
Infância: só a metade do passado nos pertence²
Reconstruir a nossa infância é uma forma de descobrir que apenas metade
do nosso passado nos pertence. Não é fácil nos reconhecermos na criança que fomos e muito menos no
adolescente que antecedeu o adulto. Quando falamos de nós mesmos, aparece um
estranho, alguém que faz parte da nossa história, mas que agora só vive na
memória. É por isso que Coetzee evoca os seus primeiros anos na terceira
pessoa, adoptando a perspectiva de um espectador que narra as aventuras de
outro.
Em Infância (1997), John é um menino de dez anos que cresce na
África do Sul do apartheid. Embora seus pais tenham ancestrais africânderes,
toda a família se orgulha de suas raízes inglesas. John mora em Worcester, mas
sente que pertence à fazenda onde passa os verões, um reino infinito onde os
brancos são apenas “andorinhas, de época”, intrusos que ocupam um lugar tirado
de seus legítimos proprietários. Sua mãe é uma mulher extravagante, cujo amor
excessivo o oprime e o culpa. Embora seja o primeiro da turma, John se
considera mau e mentiroso. Ele poderia mudar, mas não seria mais ele mesmo. Prefere
continuar assim e não ser como os outros. Não quer ser outra pessoa, porque
então “qual seria a razão de viver?
”.
Benjamin disse que a infância é a fonte da melancolia. As memórias de
Coetzee revelam-nos que a crueldade tem a mesma origem. A transição para a
maturidade não nos torna melhores. Só descobrimos que as coisas morrem
completamente e que a nossa imagem, ao tirar o véu da infância, perde o
benefício da indulgência. No final, só resta a escrita, abrindo as asas e
contando o que de outra forma se perderia no esquecimento.
A infância não é “uma época de felicidade inocente”. É um tempo de
cerrar os dentes e aguentar firme. Durante esse período, a morte parece
improvável. Não se pode imaginar a morte dos pais, mas às vezes a sua hora é
antecipada e se impõe uma percepção do mundo que não exclui a imperfeição.
Dentro dessas mudanças que destroem a estabilidade de um mundo
falsificado pelos adultos, surge o erotismo, a turva excitação diante de corpos
que se exibem sem conhecer seu poder de sedução. Ante dos primeiros surtos de
sensualidade, as palavras revelam-se impotentes, pois o dicionário evita todos
os termos explícitos. Esta elipse revela o vínculo entre erotismo e sigilo, a culpa
e a vergonha. “Beleza é inocência; inocência é ignorância; ignorância é
ignorância do prazer; prazer é culpa; ele é culpado.
” Sentir-se atraído por parceiros do mesmo sexo é outra coisa a mais. É
perverso.
Diante dessa perversão surge a pureza da fazenda, um lugar inviolável e
pré-moral. É o território da infância, um espaço real e simbólico, onde não se
vive na história, mas no tempo, usufruindo do imediatismo, sem atrasos nem
adiamentos. No entanto, essas terras não pertencem à comunidade anglo-saxônica
ou africânder. Seus verdadeiros donos são aqueles homens de cor que se debruçam
sobre ela para ouvir seus sons ou extrair seus frutos.
A fazenda é um lugar infinito. Nem o tempo nem as palavras podem
esgotá-la. Nada é suficiente “quando se ama um lugar de forma tão voraz”. Em
certo sentido, não pertence ao mundo. Está fora dele, mas é o lugar ao qual ele
pertence, embora na realidade ninguém possa considerar-se dono dessa terra. A
fazenda ainda estará lá quando todos os que nela vivem morrerem. Somente ela
permanecerá, evidenciando sua soberania.
Na fazenda você aprende que não há nada por trás da morte. “a
carne é comida pelas formigas, os ossos são branqueados pelo sol, e é tudo.
” Esse é o preço de estar vivo, mas só os
animais intuem isso. Os homens insistem em prolongar a sua existência para além
da morte. Na verdade, ele próprio é incapaz de representar a sua morte. Pode-se
imaginar a ruína do corpo, mas não o seu desaparecimento. “Por mais que
tente, não consegue aniquilar o último resíduo de si mesmo.
” Sua existência é como uma noz que
perdurará em meio à devastação.
Essa percepção de si mesmo está na origem de sua escrita. A escrita é
aquela noz que transcende o tempo, mas o seu curso, a cadeia de palavras e
imagens, não é um canal regular. Flui incessantemente, nunca para de avançar ou
recuar, mas às vezes o faz silenciosamente, sem se mostrar ou com uma direção
errática, imprevisível.
Porém, o eu emerge da escrita, da possibilidade de ter uma identidade.
Por trás de cada história, de cada obra de ficção, só existe uma história que
se repete de diferentes formas: a história de si mesmo, uma história que não
pode parar, porque se a narrativa for interrompida, se deixar de ser contada, o
homem afundará na indiferença do inerte. Será, mas não será humano.
Tal como Nadine Gordimer, Coetzee evita o estereótipo de um país
dividido entre africânderes brutais e vítimas da segregação. Os negros
sul-africanos vivem a meio caminho entre a maldade e o ódio. Várias décadas de
discriminação degradaram as relações humanas e impediram a convivência normalizada.
A comunidade branca acalenta o sonho impossível de preservar privilégios
injustos e os negros, longe do mito rousseauniano do “bom selvagem”, oscilam
entre a hipocrisia e as explosões de violência. É o legado do apartheid,
que semeou medo e ressentimento na sociedade, hipotecando o futuro das novas gerações.
Desonra: vida de cachorros³
Desonra (1999) pode
ser lido como um romance político, mas é também a crônica de uma derrota
pessoal. Coetzee sempre demonstrou predileção pelos perdedores e, neste caso,
criou um personagem cuja desgraça não abriga nem um pingo de dignidade e
grandeza. Expulso da universidade devido a um escândalo sexual, David Lurie é
um professor de cinquenta e poucos anos que perdeu o entusiasmo pelo seu
trabalho e que vivencia os estragos da velhice como uma humilhação do seu
passado como mulherengo.
Fugindo de si mesmo, ele sai da Cidade do Cabo e se refugia na fazenda
de sua filha Lucy, uma hippie um tanto ultrapassada que vive do artesanato e de
cuidar dos cachorros dos vizinhos. A relação não é fácil e Lurie refugia-se num
ensaio sobre Byron condenado a permanecer inacabado. Ao retornar de uma de suas
caminhadas, David e Lucy sofrerão um ataque brutal que os afastará ainda mais.
Lucy será estuprada por vários homens negros, enquanto David, trancado em um
banheiro, luta contra o fogo que jogaram contra si. A cena é de uma crueldade
quase insuportável.
Coetzee é mestre em retratar o mundo interior de seus personagens.
Fugindo das jactâncias técnicas e explorando um humor impregnado de tristeza,
ele constrói um tratado sobre as paixões que mostra todas as insuficiências do
gênero humano.
Na iminência da velhice, Lurie percebe que sua vida tem sido uma
sucessão de simulacros: seus casamentos, que mal lhe proporcionaram a
satisfação obtida com Soraya, uma prostituta que, em troca de alguns trocados,
lhe garante uma hora e um metade de prazer; o seu trabalho, que nunca foi além
da ficção acadêmica, onde os exames e a rotina dos programas substituíram a sua
incapacidade de explicar o valor de um soneto ou o significado da poesia
romântica; seus ensaios sobre Wordsworth, que se limitavam a satisfazer as
demandas esperadas de pesquisa de um professor universitário. Porém, o mais
doloroso não é reconhecer o seu fracasso humano e profissional, mas assumir a
sua condição de velho astuto.
Sua paixão pelas estudantes é puramente física; só quer fazer amor com
elas e sentir que a intimidade de seus corpos ainda está ao seu alcance. Num
certo sentido, David Lurie age com mais liberdade do que o Humbert de Nabokov,
uma vez que não precisa de justificar o seu desejo com reflexões metafísicas
sobre a “graça turbulenta” das ninfetas. Apenas Cernuda abordou com tanta
coragem a sobrevivência do desejo no declínio da vida, sem medo dos tabus que o
assunto suscita. Bioy Casares também explorou a rejeição da velhice em Diário
da guerra do porco e sua perspectiva não menos amarga.
Coetzee propõe um universo desprovido de transcendência. “A única vida
que existe é esta aqui”, diz Lucy quando seu pai a repreende por sua amizade
com um casal bizarro que mantém um lar para cães abandonados. David rejeita a
possibilidade de se sentir culpado pelo tratamento que o homem dá aos animais,
mas o contato com os cães famintos do abrigo transforma sua visão da vida. Cães
e homens são criaturas indefesas para quem o mundo é apenas um lugar de
trânsito. A necessidade de sacrificar cães que ninguém quer confirma para Lurie
sua sensação de estar a caminho de lugar nenhum.
Lucy fica grávida de seus agressores, mas rejeita a possibilidade de
fazer um aborto. Inclusive tolera a presença na fazenda de um de seus
estupradores, cujo nome é Pollux. Coetzee recorre ao mito dos Dióscuros (Castor
e Pólux) para teorizar sobre a reconciliação entre duas comunidades divididas
pelo ódio. Somente um filho da ira pode apagar as injustiças do passado. A
ideia de que o fruto da violação possa ser a única esperança para um país
dilacerado não poderia ser mais perturbadora. Sozinho, sem nada, sem direitos,
sem dignidade, “como um cão”, David refugia-se nas suas tentativas de Byron,
procurando na ficção aquele sentido que não consegue encontrar na vida.
Coetzee é um grande mestre, mas a sua interpretação da vida é sombria.
Entrar nos seus livros é como caminhar pelo deserto: a beleza coexiste com uma
sensação avassaladora de insignificância. Não é uma boa leitura para momentos
de angústia e desespero. Nossa espécie avança em direção ao não-ser, deixando
um rastro de mágoas e injustiças. A história humana é uma história de infâmias.
O progresso moral é apenas uma quimera irrealizável. Se eu tivesse que procurar
uma imagem para descrever a obra do Nobel sul-africano, penso que seria a de um
náufrago que já não espera ser resgatado e que, no entanto, continua a escrever
um diário para não perder sua humanidade e sua sanidade.
______
O mestre de Petersburgo
J. M. Coetzee
Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
248 p.
Infância
J. M. Coetzee
Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Trad.)
Companhia das Letras (de bolso), 2010
152 p.
Desonra
J. M. Coetzee
José Rubens Siqueira (Trad.)
248 p.
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Notas da tradução:
1 As citações do romance O mestre de Petersburgo são da tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Companhia das Letras, 2003).
2 As citações do romance Infância são da tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Companhia de Bolso, 2010).
3 As citações do romance Desonra são da tradução de José Rubens Siqueira (Companhia das Letras, 2000).
* Este texto é a tradução livre de “Coetzee: la maldición
de escribir”, publicado aqui, em El Cultural.
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