Por Montero Glez
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Ernest Hemingway durante a 2.ª Guerra Mundial. Arquivo: JFK Library |
Se a guerra fosse uma pergunta que
pudesse ser respondida, obteríamos a resposta a partir do tecido mitológico;
uma tela de onde se destaca a figura do correspondente que aproveita as câmeras
para divulgar a sua própria imagem. Nesse caso, trata-se de um grandalhão
alourado que bebe vinho numa bota e enxuga a boca com as costas da mão; um
homem robusto que todos conhecem como professor Hemingstein e para quem a
guerra nunca foi uma questão, muito pelo contrário. Daí o seu duplo mérito.
Contemplar a guerra como resposta
e encontrar as questões que a mantêm viva só é possível depois de se desfazer
dos seus mitos. O professor Hemingstein construiu o seu até ocupar a partícula
mais básica da guerra. Transformou o vazio, convertendo-o numa presença
mitológica seja em Brihuega, Guadalajara, Teruel ou Madri e os seus pontos
quentes. Lugares como Chicote ou o Hotel Suécia serão os cenários íntimos de
uma guerra que apenas começara. As câmeras fotográficas ajudariam o professor
Hemingstein a se retratar como protagonista. Se olharmos atentamente as imagens
que ele tirou no front, ficamos com a impressão de ser uma daquelas pessoas que
sempre esconde alguma coisa. Aqueles que o conheceram de perto presumem que
este foi um “efeito” muito pronunciado sobre ele e que se revelava cada vez que
o professor começava a recordar. Porque, sempre que o fazia, recordava para seu
próprio benefício.
Quando uma granada atingiu o Hotel
Suécia — onde ele estava hospedado — e uma torrente de areia caiu do teto
salpicando os copos e o mapa espalhado sobre a mesa, o professor Hemingstein
não teve escolha senão perguntar ao seu público:
O que acham disso agora, senhores?
Dado o contexto, a pergunta foi
mais do que uma provocação. Um gesto com o qual quis dar a entender que na
realidade não se tratava de ter perdido a inocência, mas de saber lidar com a
sua surpresa na hora de mexer o uísque com os escombros da memória. Pouco antes
do impacto, o professor Hemingstein explicava a impossibilidade balística de
uma granada atingir o hotel.
Em torno de um mapa de Madri, um
público diversificado composto por correspondentes, militares e espiões
ocasionais ouvia atentamente a exposição de um homem que era o mais próximo de
um gigante com ar estrangeiro. Não era para menos. Estavam adiante de um
especialista em campanhas militares que havia sido ferido na Itália durante a
Grande Guerra e o mais famoso autor da literatura vivo; um homem sempre tão
ocupado bebendo quanto provando quem era. Tudo para manter a hegemonia.
Naquele momento — como nos conta
na sua correspondência de guerra para a agência NANA — ouviu-se um rugido
sibilante como o de um metrô e, imediatamente, uma granada explodiu no quarto
de cima. Madri. Hotel Suécia. 30 de setembro de 1937. “O que acham disso agora,
senhores?”
É possível imaginar a cena, uma
das muitas que Hemingway utilizaria para construir sua peça intitulada A quinta-coluna.
Um texto onde conseguiu que a realidade parecesse tanto com a ficção quanto o
sangue com a pintura. Porque Hemingway aprendeu com Paris o erro da vanguarda
quando se trata de identificar a verdade na vida com a verdade na literatura.
Ambas nunca são idênticas e Hemingway, que sabia disso pela experiência alheia,
usaria da ficção para revelar a verdade, expressando-a com silêncios e
mentiras. Em partes iguais.
Ele sabia muito bem que quando se
revela o que o mundo da guerra esconde, não só podemos encontrar personagens e
ações que parecem inventadas por um mau romancista, mas também podemos
encontrar com o fracasso. O simples ato de transcrever os fatos, tal como os
fatos são apresentados, teria tornado a sua criação algo tão óbvio quanto
enfadonho. De sua visita à Guerra Civil Espanhola não só nos deixou a referida
peça, como também o faria com algum outro conto como uma estranha história como
“O velho na ponte”, bem como um considerável romance, Por quem os sinos
dobram.
Se existe um recurso que estrutura
cada uma das obras citadas, é o que se mantém nos diálogos. Seus personagens se
expressam com a mesma vibração que um metrô deixa na superfície da rua. Entre
outras coisas, porque são homens e mulheres que mantêm o seu discurso do lado obscuro.
Nunca amam durante o dia. Só fazem isso quando chega a noite.
A quinta-coluna é uma obra
desenvolvida no Hotel Florida durante a guerra, em Madri, cidade onde todos
sabiam de tudo, antes mesmo de acontecer. Jornalistas, delatores, prostitutas,
traficantes, contrabandistas e os melhores de cada casa ficariam hospedados no
referido hotel junto com espiões de dupla cara. Todos misturados entre trocados,
contrabando de pesetas e de informações falsas. Com esses materiais surgem
diálogos apoiados em figuras retóricas que consistem em fingir que se quer
omitir o que está sendo dito.
Quando se trata de encenar a relação do homem com a guerra, Hemingway mantém o mesmo cenário. Com isso ele consegue o mais difícil, ou seja, demonstra que não existe um conteúdo diferente para cada guerra, mas sim uma forma diferente de considerar o conteúdo. Todas as guerras são a mesma guerra. Todos os beijos são o mesmo beijo. “Se você sente necessidade de devanear, mantenha-me fora de seus devaneios”1, diz o personagem Philip Rawlings, uma imitação literária do próprio Hemingway, tão apaixonado por cebola crua quanto ele e como aquele outro personagem, protagonista de Por quem os sinos dobram, o dinamitador Robert Jordan.
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Ernest Hemingway em registro de documentário que escreveu com Jon Dos Passos sobre a Guerra Civil Espanhola. |
Foi durante um intervalo na
guerra, numa manhã de fm de maio. Céu límpido e vento morno que acariciava os
ombros, quando Robert Jordan tirou uma cebola do bolso da jaqueta onde também guardava
as granadas. Então ele abriu seu canivete e começou a cortar.
— Tu sempre comes cebola no café
da manhã? — perguntou Agustín.
— Quando tem.
— Todos no teu país fazem isso?
— Não — disse Robert Jordan. — Lá,
isto é malvisto.
— Fico contente. Sempre achei que
a América fosse um país civilizado.
— O que tu tens contra acebola?
— O cheiro. Nada mais. Fora isso,
é como uma rosa.
— Como uma rosa — disse ele. — Pujante
como uma rosa. Uma rosa é uma rosa é uma cebola.2
Assim, num dos capítulos,
Hemingway faz com que Robert Jordan pratique o exorcismo recitando uma ladainha
sibilante, a coisa mais próxima de um réptil mitológico que com seu silvo faz
derreter a crosta de neve; o branco sobre a pedra com a qual a primavera
receberá o sangue. Um repertório de rosas que se identifica com a singularidade
de uma cebola que, por sua vez, foi plantada num campo de tensão. O perfume
vanguardista que Hemingway absorveria no salão de Gertrude Stein, antes de se
tornar o professor Hemingstein, quando Paris ainda era uma festa e uma rosa era
uma rosa era uma rosa era uma rosa. A mesma litania que o acompanhou até a
morte; fiel como o mau hálito.
Mas voltemos à guerra. Porque
todas as guerras são a mesma guerra e uma bala é uma bala, um beijo é um beijo
e é possível imaginar Hemingway conjurando palavras, para que o beijo da bala
nunca chegue ao seu colete de guerra. Como tantos outros durante a Guerra Civil,
Hemingway via-se mais como um combatente do que como um jornalista. Armado com
sua máquina de escrever, ele partiu em busca de um mito com o toque de uma
tecla. E conseguiu, sabendo que qualquer correspondente que tenha coberto uma
guerra tem algo a esconder. Por isso mesmo, Hemingway costumava expressar o que
vivenciava com silêncios, como se estivesse disposto a renunciar à inocência e
beber o trago da culpa até ser queimado por ele.
Uma mistura de aventura e ofício
que se completou na Guerra Civil Espanhola, quando Hemingway aproveita a
possibilidade que o conflito lhe oferece para nos revelar os seus aspectos mais
ocultos. Ele sabia por experiência própria que mesmo as coisas mais sombrias
brilham claramente em tempos de guerra, digamos com a mesma pureza que só pode
ser vista no coração do gelo.
O barulho dos seus despachos de
guerra para a agência NANA soava com a convicção de quem constrói um mito a
partir de certas descobertas que lhe chegam ao seu encontro. Perguntas para as
quais o nosso conflito sempre foi a resposta. Essa convicção o acompanharia
desde que os Estados Unidos, numa feliz tentativa de entrar na história,
conseguiram fazê-lo participando na Grande Guerra com Hemingway no seu interior
como motorista de ambulância.
Na noite de 8 de julho de 1918, um
morteiro feriu suas pernas às margens do rio Piave, na região esverdeada do
Vêneto. “A morte é algo muito simples”, escreveria mais tarde ao pai numa
carta. Confiante na realidade nua e crua, o professor Hemingstein começava a
construir o seu próprio mito. Daqui em diante, o correspondente de guerra se
tornaria a coisa mais próxima de uma infecção benigna que infectaria tudo,
exceto o medo. A tarefa seguinte, como se fosse um Hércules, seria narrar a sua
aventura por terras espanholas, escrevendo a visão mais lúcida da guerra civil,
conflito que explicaria escondendo a pergunta.
Para isso, ele usaria o “método do
iceberg”, onde o espírito que emerge com impulsos de gelo branco não é o que
importa. O que importa é o que não se vê, assim como o que se evita dizer e
Hemingway não diz. É aí que reside o segredo. A chave é o que mantém a ponta do
gelo flutuando, o casco com o qual o leitor colide até fazer a pergunta. De
qual resposta esta dureza é uma provocação?
Portanto, ninguém como Ernest Hemingway
escreveria um romance tão claro sobre a Guerra Civil Espanhola. Narrado do lado
republicano, com os crimes ali cometidos, o escritor estadunidense lança a
pergunta com um silêncio provocador que carrega aberto o interrogador: como foi
a agressão militar que o povo humilde sofreu para fazê-lo se levantar desta
forma brutal?
Ao seu valor como narrador,
Hemingway acrescenta o valor do protagonista, Robert Jordan, das Brigadas
Internacionais e que carrega cebolas e romãs no bolso. A coragem, como comer
cebola, era um costume para ambos. Talvez tenha sido também por isso que Hemingway
se apaixonou novamente durante a Guerra Civil; para expressar sua coragem e
também pelo hábito de travar breves escaramuças entre as explosões de uma
guerra que seria a morte de seu casamento.
Em dezembro de 1936, quando a
guerra na Espanha já durava alguns meses, Hemingway ainda estava ao sul da
Flórida, à beira da Corrente do Golfo. Em seu bar em Key West, o famoso Sloppy
Joe’s Bar, o escritor estava de pé, encostado no balcão. Comia cebola crua e molhava
os lábios no uísque. Com a língua ardente, olhou para as duas mulheres que
acabavam de entrar no ambiente. Uma delas era viúva de um ginecologista. A
outra, a filha.
Meses depois, numa noite em Madri,
quando uma explosão atingiu o tanque de água quente e os hóspedes do Hotel
Suécia abandonaram apressadamente os quartos, foram revelados alguns dos
compromissos mais inesperados. O mais notável foi o de Hemingway e Martha
Gellhorn, filha do ginecologista que chegara como correspondente de guerra da
revista Collier’s Weekly. Com uma cena assim, é possível afirmar
corretamente que há momentos em que a culpa se torna uma armadilha mortal
armada por falta de cuidado, e que a culpa que acompanha Philip Rawlings
durante todas as cenas de A quinta-coluna é a mesma culpa que aquece o
suficiente para queimar a inocência do professor Hemingstein, embora a questão
não seja essa, mas saber como lidar com o seu ataque — o ataque à inocência —
quando a crosta do solo vibra como um metrô e imediatamente o teto desaba e
então você tem que sair da cama o mais depressa possível. Porque numa guerra é
sempre preciso esperar que pelo menos o tapete fique um pouco manchado.
A quinta-coluna foi
concluída pouco antes da tomada de Teruel, onde o professor chegou a tempo,
trazendo consigo uma cópia do texto. Assim que o viram, os militares o
confundiram com um oficial russo e o encharcaram de vinho até que ele vomitasse
sobre o manuscrito. “Mas um homem inteligente algumas vezes é forçado a ficar bêbado,
para conseguir desperdiçar o seu tempo com idiotas”, parece ser o que
Hemingstein disse após a diversão, depois que o macaco dormiu. Na verdade, até
então, Hemingway tinha sido identificado pelos esquerdistas como um homem sem
consciência social.
Todas as noites pede à filha do
ginecologista que conheceu em Sloppy Joe’s em casamento e todas as manhãs ele
diz que não foi isso que quis dizer. O professor Hemingstein chegava a ser tão
assustador quando se mostrava bom e cativante quando bebia; tão mágico que era
impossível imaginá-lo morto. Por esta última razão, onde quer que fosse na
guerra, uma legião de homens, mulheres e crianças o seguia. Um gigante com
aparência estrangeira que cobrira a vitória republicana em Brihuega e
Guadalajara, um especialista em assuntos militares que — depois de ter
inspecionado as defesas de Madrid e de as ter considerado adequadas — garantira
que o general Franco nunca tomaria a capital.
Embora a verdade na vida e a
verdade na literatura nunca tenham sido idênticas, o professor Hemingstein se
empenhou por identificá-las em cada uma das suas ações, desde que houvesse
alguém à sua frente. Porém, mais do que mostrar, o que ele fazia era conseguir que
sua personalidade uma obra-prima de ocultação onde sempre escondia o que há de
mais importante, ou seja, a parte do gelo que reside em sua base.
Com dissimulada frieza, o
professor agiu como se só a morte pudesse alterar os cálculos do mapa. Basta
lembrar que, depois que uma granada atingisse o teto, ele sacudiu a poeira dos
ombros, renunciando por um momento à inocência, como se o capitão do Titanic
tivesse dito: “Não se assustem, não tenham medo, paramos apenas por um momento
para pegar gelo”.
Notas da tradução
1 A tradução deste excerto é de
Ênio Silveira (Bertrand Brasil, 2015).
2 A tradução deste excerto é de Luiz
Peazê (Bertrand Brasil, 2013).
* Este texto é a tradução de “Una rosa
es una cebolla”, publicado aqui, em Jot Down.
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