I.
(a partir da tradução de Donald
Keen)
num velho templo
nas profundezas de Takano
na província de Ki
1
passei a noite escutando
as gotas da chuva caindo dos
cedros
II.
(a partir da tradução de Steven
Carter)
a nossa vida neste mundo:
a que poderei compará-la?
é como um eco
ressoando através das montanhas
diluindo-se no vazio do céu
III.
(a partir da tradução de Donald
Keen)
não deverás supor
que nunca me misturo
com o mundo da humanidade
— simplesmente prefiro, sozinho
desfrutar da minha própria
companhia
IV.
(a partir da tradução de Burton
Watson)
tenho um cajado de caminhante
nem sei por quantas gerações foi
sendo passado
a casca estalou e há muito que
caiu
nada sobra, apenas um miolo
robusto
em anos anteriores, testou a
profundidade de ribeiros
e quantas vezes retiniu sobre
íngremes trilhas rochosas!
agora, encosta-se à parede do lado
poente
negligenciado, enquanto os anos
passam
V.
(a partir da tradução de Nobuyuki
Yuasa)
tenho casa nos mais profundos recantos
da floresta
a cada ano que passa, as heras
crescem mais que no ano anterior
vivo sem pesos, sem a perturbação
dos assuntos mundanos
as canções dos madeireiros
raramente chegam até aqui
enquanto o sol brilha, remendo as
minhas roupas rasgadas
virado para a lua, leio em voz
alta, só para mim, os textos sagrados
deixem que dê aos crentes da minha
filosofia um conselho:
não necessitas de muitas coisas
para desfrutar da imensidão da vida
VI.
(a partir da tradução de Nobuyuki
Yuasa)
desde que comecei a trilhar o
íngreme caminho da disciplina
vivo detrás duma cancela e
centenas de colinas
antigas árvores, negras,
acorrentadas por heras, erguem-se sobre mim
as rochas parecem frias nas
encostas meio cobertas pelas nuvens
as traves da minha casa foram
arruinadas pelas chuvas nocturnas
o meu manto feito em farrapos pela
neblina matinal
nenhuma notícia minha os meus
familiares e o mundo se interessaram em receber
ano após ano, desde que aqui vivo
VII.
(a partir da tradução de Burton
Watson)
toda a minha vida fui demasiado
preguiçoso para tentar o que fosse
deixo tudo à verdade do céu
na minha bolsa, três medidas de
arroz
junto ao fogão, um molho de
pauzinhos
— para quê perguntar quem é
iluminado e quem não é?
que saberia eu sobre essas
poeiras, o ganho e a fama?
noites chuvosas, aqui na minha
cabana de palha
esticando as minhas pernas como
bem entender
_____
Eizo Yamamoto nasceu no ano de
1758 na vila japonesa de Izumozaki, um lugar frio e remoto, onde o seu pai
ocupava um cargo de liderança administrativa, uma espécie de “chefe de aldeia”.
Não existem muitos detalhes sobre a infância de Eizo, mas sabe-se que teve uma
educação prendada, que o tornou versado nos grandes clássicos japoneses e chineses.
O seu pai, diga-se, também exercitava a prática do haiku.
Embora tímido e estudioso, terá
sido o Don Juan da aldeia quando a idade lhe despertou tais apetites. A
confissão feita num certo poema não permite muitas dúvidas: terminava, frequentemente,
os idos dias da juventude num “pavilhão do prazer”. Porém, pelos vinte anos,
sentiu um profundo apelo que o levou a uma decisão drástica: renunciar ao mundo
dos homens e receber instrução num templo budista das redondezas, que seguia a
via Soto
2. Empenhado na decisão, rejeita a herança familiar e
entrega-se totalmente aos preceitos da sua nova vida.
A dada altura, um mestre Zen, à
época muito conceituado, visitou o templo onde Eizo se internara. Numa comunhão
imediata, ocorrida para além de qualquer palavra, ambos ficaram muito
impressionados um com o outro. Então, Eizo pediu permissão para ser seu
discípulo. Uma vez concedida, os dois encaminharam-se para o mosteiro donde o
mestre viera, em Tamashima
3. Será neste lugar que, segundo se conta,
Eizo atingirá o estado designado por
satori (equivalente ao Nirvana, no
Hinduísmo), ou iluminação, isto é, a real e suprema compreensão da verdadeira
identidade do Homem, o despertar para a verdade de todas as coisas.
No ano seguinte o seu mestre
morre, e Eizo decide partir numa longa peregrinação. Teria já obtido licença
para dirigir o seu próprio templo, mas preferiu encetar uma deambulação pelo
país inteiro. Seria quase uma década de errância. Embora pareça que o grande
instigador da sua partida fora o falecimento do mestre Kokusen, vários
estudiosos apontam um desacordo entre Eizo e o abade daquele mosteiro, Gento, que
na altura empenhava-se em reformular os preceitos do Soto, desenvolvendo-o às
suas origens.
A partir deste momento, quase até
à sua morte, a “vida monástica” de Ryokan
4 resume-se a uma existência
de isolamento e comunhão com a natureza, tornando-o, com o tempo, num célebre
ermita. Continuará o estudo dos preceitos budistas, a prática da arte da
caligrafia (tornando-se um dos seus maiores mestres) e, claro, da poesia (para
muitos, o mais amado poeta do Zen que até hoje viveu). Granjeou notoriedade em
vida, os seus poemas eram apreciados pelas gentes mais humildes e procurados
por escolásticos, mas rejeitou sempre qualquer convite para dirigir templos ou
sequer ser aceite no meio artístico como “poeta”. Optou por uma existência
simples e tranquila, o que se reflectiu na sua poesia, pautada por apontamentos
naturalistas, reflexões e um profundo humanismo, exalando beleza, compaixão e
um enorme respeito por toda e qualquer forma de vida.
É natural que esta sua arte esteja
embebida de preceitos budistas, mas consegue atingir uma universalidade
indisputável, tornando-a válida para além de todo o estreito caminho que
qualquer religião apresente — ou tente impor. É uma poesia leve e
esclarecedora, mas também se prende nas miudezas do quotidiano, sendo
cintilante, por vezes, de tão banal. O discurso livre é polvilhado com humor,
de tempos a tempos, sempre focado no momento presente, não deixando muito
espaço ao pensamento ou a suposições filosóficas. É leve, como dissemos, mas
directa, intensamente contemplativa, capaz de tocar o espírito humano bem para
lá do alcance da mente tirana, levando-o a despertar dum torpor milenar — ou,
pelo menos, a agitar a sua letargia.
Apesar do isolamento que escolheu,
nunca se fechou no mesmo. São várias as histórias que até nós chegaram
atestando o carácter generoso e bem-humorado do poeta-monge-eremita. Por vezes,
esquecia-se de esmolar o seu sustento diário (sublinhe-se que era prática comum
na época, algo que até o próprio Buda fizera) de tão embrenhado que estava em
brincadeiras com as crianças das aldeias locais. Noutras, disfarçava-se de
mulher para frequentar festivais populares, eventos que os monges evitavam.
Porém, também sabia ser crítico na hora certa, especialmente de regras e
costumes religiosos, embora, em verdade, não se levasse muito a sério, nem a
ele nem ao mundo em si.
Embora outros o tenham seguido,
Ryokan firma-se na história como um dos últimos poetas-ermitas de maior
destaque, essa nobre estripe de vagabundos gentis que da leveza e fluidez de
carácter e princípios fazia a sua força maior, e que proliferou em terras
orientais durante séculos.
Por volta de 1826, Ryokan adoece e
fica impossibilitado de continuar no seu ermitério. Muda-se para a casa dum dos
seus maiores patronos e aí permanece ao cuidado duma jovem freira (não nos
termos católicos, entenda-se), de nome Teishin. Já no fim da vida, irá usufruir
duma inesperada e forte amizade com a sua cuidadora (há quem diga paixão), com
quem troca diversos haikus em estilo de correspondência. Foi um relacionamento
feliz que, segundo dizem, abrilhantou os últimos anos de vida do poeta. Será
esta jovem quem reunirá a poesia de Ryokan e a publicará, a título póstumo,
elegendo ao conjunto talvez o nome mais belo que conseguiu encontrar: “Gotas de
Orvalho Numa Folha de Lótus”.
Pelo que se conta, nos primeiros
dias do ano 1831 Ryokan sucumbe, enfim, à sua doença. De acordo com o relato
que a amiga freira nos deixou, o poeta sentara-se em pose meditativa e assim
falecera, como quem vai, pacificamente, entrar no sono. Antes, porém, deixara
nas mãos da amiga aquele que fora o último poema escrito em vida, um haiku —
que teremos o maior gosto em de seguida partilhar:
agora revela o seu lado oculto
e agora o outro
— assim tomba, uma folha d’outono
É importante, a nosso ver, não
encerrar esta publicação sem frisar aquela que provavelmente será a história
mais célebre envolvendo o poeta-eremita, e que, atestando o seu carácter aberto
e generoso, terá estado na origem dum celebrado poema que compôs.
Certa noite, Ryokan, ao regressar
à sua cabana no sopé duma montanha, surpreendeu um ladrão que, por sua vez,
muito surpreendido estava por ter entrado numa habitação que, embora humilde,
nada possuía digno de roubo. Compadecendo-se pelo pobre larápio, que teria,
decerto, feito um longo caminho para, afinal, ver os seus planos de furto
totalmente frustrados, Ryokan tira todas as suas roupas e oferece-as ao ladrão.
Este, absolutamente estonteado, pega na inusitada oferenda e abandona o local o
mais rápido que pode. O poeta sentou-se, depois, totalmente nu, a observar a
lua. E então terá proferido as famigeradas palavras: “Pobre homem… Quem me dera
que lhe pudesse oferecer esta bonita lua”.
Agora que relatámos o episódio,
deixamos o haiku nele inspirado:
o ladrão deixou-a para trás:
a lua
na minha janela
Notas
1 Antiga província japonesa,
localizada no sul do país. É hoje a prefeitura de Wakayama.
2 Escola japonesa derivada do
Budismo Zen. A principal diferença para as demais encontra-se no modo de
meditação. No fundo, simplifica a prática, ensinando a via de “apenas
sentar-se”, isto é, não foca a meditação num objecto em específico, permitindo o
livre fluir do fluxo de pensamentos e emoções, permanecendo o meditador como o
seu imparcial observador. A estes monges é permitido o casamento. Dentro do
Zen, é hoje a escola com maior expressão no mundo ocidental.
3 A actual prefeitura de Okayama,
outrora um lugar de intensa actividade cultural e intelectual.
4 Curiosamente, é o nome dado às
tradicionais hospedarias japonesas.
* As versões são a partir dos textos
antologiados em
Zen Poems (Everyman’s Library, 1999).
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