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Salman Rushdie. Foto: Franck Ferville. |
Existe um tipo de escritor que
parece gerar uma realidade particular: a sua vida é quase o seu romance. Não é
fácil: é necessária força literária, mas não é suficiente. Tampouco é
necessariamente feliz e, na verdade, quase nunca é. Um exemplo é Michel
Houellebecq: poderíamos imaginar outro romancista que grava um filme pornô
(após assinar um contrato), se arrepende, entra com uma ação judicial e declara
que se sente uma mulher violentada? Outro é Salman Rushdie: a
fatwa, a
perseguição, sua vida e ataque que sofreu misturam literatura e história,
descolonização e globalização, reviravoltas improváveis e fatalidade, o
pós-moderno e o medieval, uma realidade que não exclui o incrível e o fanatismo
religioso: alguns dos temas centrais de seus romances. Em agosto de 2022, o
escritor quase foi assassinado em Nova York e, nos últimos meses, dois de seus
livros foram publicados entre os leitores de língua portuguesa.¹
O primeiro,
Cidade da vitória,
é um romance que Rushdie entregou aos editores um pouco antes do atendado. É
apresentado como a tradução resumida de um poema escrito pela “milagrosa,
profetisa e poetisa cega Pampa Kampana” no final de seus 247 anos de vida, o
Jayaparajaya, que conta o início, a verdadeira cidade da vitória e não Bisnaga,
sua ascensão e queda, da fundação no século XIV. É uma homenagem à tradição
literária indiana, com alusões e paralelos com obras como o
Ramayana, e
o uso abundante e eficaz de um imaginário herdado e de fontes documentais.
Ao mesmo tempo, a sociedade de
Bisnaga é pluralista, protofeminista e contrária a todos os tipos de fanatismo;
os dogmáticos sempre colocam em perigo esse espírito liberal. O romance é uma
espécie de saga, com confrontos familiares, guerras, exílios e aventuras.
Combina o conhecimento dos fatos históricos e da mitologia com anacronismos e
apartes deliberados: apesar da extensão, o romance opta pela leveza; nem o
autor nem o narrador assumem uma posição frívola ou cética em relação ao que contam,
mas o livro tem senso de humor e espírito lúdico. (Por exemplo, nos apartes:
“Somos de opinião que este tipo de passagens não deve ser interpretado
literalmente”², diz o narrador que resume; o artifício é cervantino embora o
romance esteja mais próximo da trama complicada e vertiginosa de
Os
trabalhos de Persiles e Sigismunda do que à ambivalência irônica e
reflexiva de
Dom Quixote).
Este é um livro que tem algo de
festim: às vezes podemos ficar um pouco desorientados, mas o autor sabe para
onde está indo, e admiramos tanto sua habilidade quanto seu empuxo narrativo. É
um romance sobre contar; em muitas ocasiões, esta obra da maturidade lembra o
tom e a inventividade dos primeiros romances do escritor, como
Os filhos da
meia-noite ou
Vergonha.
Também tem algo de alegórico:
baseia-se numa civilização que realmente existiu, fabula sobre uma rivalidade
entre diferentes religiões (especialmente hindu e muçulmana), mostra uma
atitude receptiva para com o estrangeiro, retrata as dinâmicas do poder e os
seus abusos, e sua defesa do pluralismo se aplica à história e ao presente de
seu país natal, evitando um tom doutrinário:
Cidade da vitória nunca
deixa de ser um romance de aventura.
Linguagens da liberdade é
uma coletânea de ensaios e artigos dedicados a explicar, sobretudo, sua ideia
de literatura. Às vezes fazem pensar num autor com quem Rushdie teve muitas
diferenças — divergência que alguns leitores também encontram refletida em
Cidade
da vitória: V. S. Naipaul, mas também em romancistas como Saul Bellow ou os
autores do
boom e em particular Gabriel García Márquez.
Um elemento essencial do conjunto —
bastante irregular no equilíbrio de textos importantes e peças ocasionais, por
vezes emocionantes, muito úteis para melhor compreender as chaves da estética
do romancista — é a construção de uma tradição íntima: dela, faz parte a
literatura clássica da Índia, mas também, de forma muito visível, a ideia de se
aproximar de uma literatura muito consolidada, com uma linguagem muito
poderosa, da periferia. Rushdie, como os autores nos quais mais se concentra,
renovou e enriqueceu o que era central em relação ao que há muito era marginal.
Outra linha é a defesa da ficção,
da autonomia da imaginação. Articula-se contra a estreiteza do realismo
convencional, porque Rushdie, que segue as lições de Kundera em
Os testamentos
traídos e
A arte do romance, defende uma narrativa muito livre,
emancipada, não limitada ao código realista: o caminho de Cervantes e Lawrence
Sterne. Ele escreve que descobriu “muito cedo que o naturalismo cotidiano é
apenas uma forma, e talvez muito limitada, de descrever o mundo”. E ele também
defende o valor da imaginação contra a tendência às vezes preguiçosa da
autoficção.
Os textos de
Linguagens da
liberdade não são de grande voltagem teórica, nem pretendem sê-lo, mas são
inteligentes, explicam com precisão uma forma de compreender a literatura e são
profundamente estimulantes.
Há também retratos e leituras
interessantes de criadores que ele admira, como Philip Roth, Eudora Welty, Kurt
Vonnegut, Harold Pinter ou Samuel Beckett. Ou ataques que mostram o humor
sardônico de Rushdie, como a desconstrução de
Slumdog millionaire. E o
volume inclui, sobretudo nos textos que escreveu para o PEN Clube, uma
eloquente e emocionante defesa da liberdade de expressão. Como escreveu num
desses textos: “Preservem as liberdades pelas quais lutam; perdem-se as
liberdades que são negligenciadas. A liberdade é algo que alguém está sempre
tentando tirar de você. E, se você não a defender, a perde.”
384 p.
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