Salman Rushdie e a arte do romance

Por Daniel Gascón

Salman Rushdie. Foto: Franck Ferville.


 
Existe um tipo de escritor que parece gerar uma realidade particular: a sua vida é quase o seu romance. Não é fácil: é necessária força literária, mas não é suficiente. Tampouco é necessariamente feliz e, na verdade, quase nunca é. Um exemplo é Michel Houellebecq: poderíamos imaginar outro romancista que grava um filme pornô (após assinar um contrato), se arrepende, entra com uma ação judicial e declara que se sente uma mulher violentada? Outro é Salman Rushdie: a fatwa, a perseguição, sua vida e ataque que sofreu misturam literatura e história, descolonização e globalização, reviravoltas improváveis ​​e fatalidade, o pós-moderno e o medieval, uma realidade que não exclui o incrível e o fanatismo religioso: alguns dos temas centrais de seus romances. Em agosto de 2022, o escritor quase foi assassinado em Nova York e, nos últimos meses, dois de seus livros foram publicados entre os leitores de língua portuguesa.¹
 
O primeiro, Cidade da vitória, é um romance que Rushdie entregou aos editores um pouco antes do atendado. É apresentado como a tradução resumida de um poema escrito pela “milagrosa, profetisa e poetisa cega Pampa Kampana” no final de seus 247 anos de vida, o Jayaparajaya, que conta o início, a verdadeira cidade da vitória e não Bisnaga, sua ascensão e queda, da fundação no século XIV. É uma homenagem à tradição literária indiana, com alusões e paralelos com obras como o Ramayana, e o uso abundante e eficaz de um imaginário herdado e de fontes documentais.
 
Ao mesmo tempo, a sociedade de Bisnaga é pluralista, protofeminista e contrária a todos os tipos de fanatismo; os dogmáticos sempre colocam em perigo esse espírito liberal. O romance é uma espécie de saga, com confrontos familiares, guerras, exílios e aventuras. Combina o conhecimento dos fatos históricos e da mitologia com anacronismos e apartes deliberados: apesar da extensão, o romance opta pela leveza; nem o autor nem o narrador assumem uma posição frívola ou cética em relação ao que contam, mas o livro tem senso de humor e espírito lúdico. (Por exemplo, nos apartes: “Somos de opinião que este tipo de passagens não deve ser interpretado literalmente”², diz o narrador que resume; o artifício é cervantino embora o romance esteja mais próximo da trama complicada e vertiginosa de Os trabalhos de Persiles e Sigismunda do que à ambivalência irônica e reflexiva de Dom Quixote).
 
Este é um livro que tem algo de festim: às vezes podemos ficar um pouco desorientados, mas o autor sabe para onde está indo, e admiramos tanto sua habilidade quanto seu empuxo narrativo. É um romance sobre contar; em muitas ocasiões, esta obra da maturidade lembra o tom e a inventividade dos primeiros romances do escritor, como Os filhos da meia-noite ou Vergonha.
 
Também tem algo de alegórico: baseia-se numa civilização que realmente existiu, fabula sobre uma rivalidade entre diferentes religiões (especialmente hindu e muçulmana), mostra uma atitude receptiva para com o estrangeiro, retrata as dinâmicas do poder e os seus abusos, e sua defesa do pluralismo se aplica à história e ao presente de seu país natal, evitando um tom doutrinário: Cidade da vitória nunca deixa de ser um romance de aventura.
 
Linguagens da liberdade é uma coletânea de ensaios e artigos dedicados a explicar, sobretudo, sua ideia de literatura. Às vezes fazem pensar num autor com quem Rushdie teve muitas diferenças — divergência que alguns leitores também encontram refletida em Cidade da vitória: V. S. Naipaul, mas também em romancistas como Saul Bellow ou os autores do boom e em particular Gabriel García Márquez.
 
Um elemento essencial do conjunto — bastante irregular no equilíbrio de textos importantes e peças ocasionais, por vezes emocionantes, muito úteis para melhor compreender as chaves da estética do romancista — é a construção de uma tradição íntima: dela, faz parte a literatura clássica da Índia, mas também, de forma muito visível, a ideia de se aproximar de uma literatura muito consolidada, com uma linguagem muito poderosa, da periferia. Rushdie, como os autores nos quais mais se concentra, renovou e enriqueceu o que era central em relação ao que há muito era marginal.
 
Outra linha é a defesa da ficção, da autonomia da imaginação. Articula-se contra a estreiteza do realismo convencional, porque Rushdie, que segue as lições de Kundera em Os testamentos traídos e A arte do romance, defende uma narrativa muito livre, emancipada, não limitada ao código realista: o caminho de Cervantes e Lawrence Sterne. Ele escreve que descobriu “muito cedo que o naturalismo cotidiano é apenas uma forma, e talvez muito limitada, de descrever o mundo”. E ele também defende o valor da imaginação contra a tendência às vezes preguiçosa da autoficção.
 
Os textos de Linguagens da liberdade não são de grande voltagem teórica, nem pretendem sê-lo, mas são inteligentes, explicam com precisão uma forma de compreender a literatura e são profundamente estimulantes.
 
Há também retratos e leituras interessantes de criadores que ele admira, como Philip Roth, Eudora Welty, Kurt Vonnegut, Harold Pinter ou Samuel Beckett. Ou ataques que mostram o humor sardônico de Rushdie, como a desconstrução de Slumdog millionaire. E o volume inclui, sobretudo nos textos que escreveu para o PEN Clube, uma eloquente e emocionante defesa da liberdade de expressão. Como escreveu num desses textos: “Preservem as liberdades pelas quais lutam; perdem-se as liberdades que são negligenciadas. A liberdade é algo que alguém está sempre tentando tirar de você. E, se você não a defender, a perde.”


______
Cidade da vitória
Salman Rushdie
Paulo Henriques Britto (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
384 p.
Você pode comprar o livro aqui

Linguagens da verdade
Salman Rushdie
Isabel Lucas (Trad.)
D. Quixote, 2023
390 p.


Notas da tradução:
1 No Brasil, até a data de tradução deste texto foi traduzido apenas Cidade da vitória (Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 2023). Linguagens da verdade saiu em Portugal (Trad. de Isabel Lucas, D. Quixote, 2023).
 
2 Tradução nossa a partir do texto em língua espanhola. O excerto seguinte, de Linguagens da verdade, também.
 
* Este texto é a tradução livre de “Rushdie y el arte de la novela”, publicado aqui, em Letras Libres.

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