Por Amancio Sabugo Abril
|
Italo Calvino. Foto: Elisabetta Catalano |
1 Realismo paródico ou a
transfiguração da realidade
A paródia é uma reflexão sobre a
realidade, ou seja, um olhar em perspectiva irônica. Parodiar é escrever por
sobre a escrita, no distanciamento desmistificador. Um irônico é um intelectual
escritor. Os melhores romances de Italo Calvino são literatura e perspectiva,
distanciamento irônico e reflexão. Escrever é um ofício, ou um benefício,
dependendo de como se encara o assunto; um sofrimento ou uma alegria pessoal. É
possível espantar os demônios interiores, elevando-os a estátuas de perfeição,
mitificando-os sobre a podridão pessoal ou reduzindo-os a espantalhos, palhaços
da própria caricatura. Italo Calvino opta pelo distanciamento de seus elfos
interiores, transformados em bonecos bufões pela arte da palavra.
A história, a grande e humana, e a
pessoal, mínima, pode ser uma epopeia, um drama ou uma comédia. Italo Calvino
prefere vê-la como um épico cômico. A invenção já estava em Cervantes e seu Dom
Quixote, uma perspectiva romanesca aqui esquecida e que abriria as portas aos
romances anglo-saxões e, em geral, a qualquer tentativa séria de modernidade.
Calvino leva ao limite a disfunção entre realidade e fantasia, entre
cavalheirismo e bufonaria. O heroísmo da armadura vazia permanece na
desproporção do papelão, no nada dos feitos sublimes e ridículos. (Pois em todo
ato heroico há uma pose de ridículo e na bufonaria, o heroísmo de superar o
ridículo e abalar a seriedade dos poderosos.) O escritor conseguiu
“transformar” a sociedade através da ironia, do sarcasmo, da bufonaria, e não
pela crítica séria, os tratados e as dedicatórias. O poderoso se ria das “ocorrências”
do bufão e as aplaudia. Era como seu
alter ego, a crítica dentro de
casa, a piscadela do seu outro eu, vilão e engraçado, canalha e zombeteiro.
Essas piadas eram toleradas pelo bufão, mas não pelo conselheiro, pelo amigo.
Para Italo Calvino, história,
civilização ou cultura, como se queira chamar essas entidades-palavras, são
matéria de reflexão, não de estudo erudito e sério, de que já se encarregam
historiadores, pensadores e críticos, mas de re-leitura irônica, de re-escrita
paródica. A história, grande e pequena, não pode ser levada a sério, mas sim
como uma piada. Se levado a sério, é mitologizado, desproporcional até se
tornar uma estátua petrificada. Se for tomada como brincadeira, se resgata o
passado, se faz presente, vida. Estes são os poderes do escritor que são
negados ao historiador sério, se ele não quiser tornar-se um romancista. Italo
Calvino não tem mais que retomar a história medieval, detida numa armadura, dar
corda ao carrossel e todos os soldados de chumbo, cavaleiros de armaduras
brilhantes e capacetes dourados, recuperarem a vida automática dos nossos dias.
E vemos aparecer
O cavaleiro inexistente, com todo o brilho heráldico e
o vazio interior de um executivo moderno. Também os códigos cavalheirescos, a
paz espiritual da missão cumprida, atingem as estruturas e os absurdos da nossa
sociedade padronizada, burocrática, robótica, alienada de códigos e sinais, mandamentos
absurdos. A leitura da história antiga torna-se uma leitura do presente.
O realismo seria negado à escrita
de Italo Calvino? O que é realismo? Tirar a pele da realidade, deixá-la em
carne viva? Isso seria uma estética da crueldade; também da superficialidade. O
realismo irônico de Italo Calvino vai além. Onde a seriedade não pode entrar, o
humor penetra. As instituições são castelos bem protegidos, como as verdades
absolutas. O que um rei não permitia ao seu amigo, consentia ao bobo da corte.
A história é uma assinatura, e uma vida arqueológica, presa, dissecada, muito
respeitável. A mitologia também. Os mitos eam a alma da história, entendida
como mestra, mãe e namorada. Quando esses mitos ruíram, desmantelados pela
ciência, a história se tornou uma disciplina séria e enfadonha; livro didático
de economia, dialética, estatística. Talvez tivesse perdido a verdadeira
realidade, a verdade evanescente. Quem confundiria romances como
O barão nas
árvores,
O visconde partido ao meio ou
O cavaleiro inexiste
com a história? E, no entanto, são história e vida, mitificação e
desmitificação, literatura. O escritor pode escrever a história de um dia ou a
literatura de um século. Pode escrever-viver o passado como presente e fugir do
presente em direção ao passado ou em direção ao futuro.
Italo Calvino desmistifica os
grandes títulos, os nomes sonoros, sejam eles condes ou barões, os cavaleiros
do Santo Graal ou Carlos Magno. É irreverente? O escritor épico eleva os homens
mortais à categoria de heróis ou semideuses. Ou seja, desumaniza-os a ponto de
torná-los irreconhecíveis, pois estão além do bem e do mal. Ao escritor épico
se opõe o escritor irônico que desce o herói das alturas, onde ele é estátua e
deus, e o torna humano e risível. Pois o riso nasce na desproporção, do herói
para o homem, na ascensão mais grotesca e na queda mais piedosa. Assim, o
escritor irônico é realista, devolvendo os personagens ao seu lugar normal, sem
máscaras ou subterfúgios, qualidade que Italo Calvino insistiria repetidas
vezes em seus ensaios críticos.
Há uma história ampliada, povoada
por heróis e estátuas ilustres. Essa história é irreal. Teatro petrificado,
maquetes do marmorista. Os grandes personagens muitas vezes escondem atrás de
suas máscaras a tragédia dos homens fracassados, convertidos em símbolos. Ao
ironizar os heróis, algo que suscita tantas paixões vãs, não é uma degradação,
mas antes um ajustamento da realidade à falsa situação histórica.
Italo Calvino lê a história a
partir da ironia do intelectual. Elege tipos entre os nomes gloriosos e constrói
seus personagens. Às vezes é só a roupa, a armadura ou a máscara; outras são
tão humanos que seus adornos ornamentais são desnecessários. Calvino não quer
despertar paixões nacionais e não escolhe nomes históricos e conhecidos ou
heróis nacionais. Ninguém pode reivindicar a honra de seus antepassados por
parodiar Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni ou Cosme Chuvasco de Rondó.
(Nesses nomes e disfarces altissonantes de heróis reais há também uma grande ironia.)
Italo Calvino é um escritor com
obra consolidada e sugestiva:
A trilha dos ninhos de aranha,
Por
último vem o corvo,
A entrada na guerra,
Marcovaldo,
O
barão nas árvores,
O visconde partido ao meio,
O cavaleiro
inexistente,
As cosmicômicas,
O dia de um escrutinador,
A
especulação imobiliária,
Assunto encerrado,
Se um viajante numa
noite de inverno…
Da sua obra que começou no
neorrealismo, continuou na transfiguração fantástica, esta última direção é
mais interessante. O neorrealismo foi a sua aprendizagem, da qual Italo Calvino
não negou, mas superou. Há nele uma brasa nostálgica dos seus anos de juventude
e de compromisso político; sua amizade com Cesare Pavese e sua admiração por
Vittorini. Ele não renega o seu caminho inicial; mas se justificativa contra
aqueles que suspeitam que ele “traiu” a realidade.
O neorrealismo italiano já conta
com os grandes mestres; Calvino chega a esta escola na condição de discípulo. Nela,
se ensaia como escritor, como aprendiz. Mas começa a ser ele mesmo e a consolidar
a sua fama internacional, quando descobre a sua forma pessoal de interpretar a
história e a vida e consegue encontrar uma imagem transfiguradora da realidade.
Sem dúvida, as obras que mais fama lhe deram, onde melhor mostra a sua
originalidade narrativa, são
O cavaleiro inexistente,
O visconde
partido ao meio e
O barão nas árvores, uma trilogia unida pelo mesmo
estilo paródico, fábulas morais, entendidas por seu autor como experiências da
condição humana, modos de perceber-se como homem: em
O cavaleiro inexistente,
a conquista do ser; em
O visconde partido ao meio, a aspiração à
plenitude acima das mutilações impostas pela sociedade, em
O barão nas
árvores, um caminho para a plenitude, e autodeterminação individual. São
três perspectivas de vida, itinerários de liberdade, obras abertas na concepção
de Umberto Eco tão cara a Italo Calvino. Elas podem
ser entendidas como uma árvore
genealógica, como etapas da história do homem: na Idade Média, na Idade do
Iluminismo (Iluminismo/revolução).
A trilogia paródica trouxe-lhe
fama; mas não se esqueça que em 1963 ganhou o prêmio internacional do romance
com a sua obra:
O dia de um escrutinador. A política sempre esteve entre
as preocupações de Calvino: sua filiação ao Partido Comunista, sua atividade
jornalística em
L’unitá. O social atua nele como um pano de fundo de
consciência do qual não se pode fugir e que ele tenta justificar, creio que em
vão, quando explica as fábulas morais que parecerão anacrônicas, “irrealistas”,
para um crítico doutrinário, que confundiria a política com literatura.
Em Italo Calvino, como em outros
intelectuais de esquerda, que pertenceram um dia aos quadros do Partido
Comunista, é perceptível esta hesitação, de não saber se ainda está no caminho
certo do compromisso. Querem explicar que não cederam ao “veneno” capitalista,
que não se tornaram reacionários. Na solidão do escritor livre, sem sectarismo
nem sacristias, preocupado com a liberdade do homem, com a sua dignidade, em
todos os lados. Mas não podem evitar as obsessões juvenis, aquelas que foram
paixões e formaram o compromisso.
Calvino é um escritor intelectual.
Ele é um criador puro, liberto de seus demônios interiores quando escreve suas
paródias históricas, suas fábulas morais. Mas se notam os desgarramentos interiores,
quando se aprofunda na temática social, na reflexão ensaística. Como buscar o
prazer da criação e não cair no esteticismo? Como é possível querer ser um
escritor puro e não ser tachado de reacionário pelos velhos correligionários?
Estas questões estão, sem dúvida, no seu percurso de escrita, nas suas
hesitações. Ele deve ter meditado muito sobre a realidade. O que se entende por
realidade? Entre o realismo “real” e o realismo fantástico, a transfiguração da
realidade, existe um espaço vazio, um espelho que reproduz imagens reais e
falsas. Os realistas caem na repetição e no clichê. Os fantásticos na
contradição: identificar objeto real e imagem; realizar a imagem sem a
realidade; distorcer a imagem; considerar a deformação como a verdadeira
realidade. Paca Calvino a realidade transfigurada permanece realidade. (Este é
um salto qualitativo?)
Há poetas que precisam de
comentários sobre a sua obra (de San Juan de la Cruz a Góngora, que deveria
tê-los escrito); poetas que são seus críticos, Salinas, Guillén, Eliot. Existem
também escritores que precisam de uma explicação crítica de seus escritos. São
os intelectuais. Eles escrevem declarações de consciência ou ensaios abordando
seu trabalho. O volume
Assunto encerrado, de Italo Calvino, é um livro
essencial para compreender a sua literatura: as relações entre a criação
poética e o compromisso político, a realidade e a fantasia, o sentido de
humor... Aqui estão as suas explicações, as suas meditações sobre a sociedade de
seu tempo, seus julgamentos refinados sobre a literatura italiana, em
particular, e a literatura contemporânea, em geral. Reflexões sobre a
linguagem, as utopias... Um ensaio que ultrapassa os níveis da crítica para ser
uma meditação atual.
O ensaísmo é a etapa sucessiva ou
complementar: o escritor neorrealista, o criador irônico, o ensaísta
meditativo. O ensaio é o gênero sem gênero; ensaiar é testar formas,
experimentar. Nele tudo cabe: a narrativa fragmentária, a poesia, a divagação;
cartas, conferências, diário íntimo. O ensaísmo é a escrita total, onde se unem
e se destroem os gêneros. Foi o ensaio que partiu o coração do romance,
universo mítico e épico, ou foi o contrário? Os romancistas mais profundos
mergulharam além da narrativa, nos limites da poesia e da prosa, na filosofia.
Veja Virginia Woolf ou José Lezama Lima; Hermann Hesse ou Ernesto Sabato; Günter
Grass ou Italo Calvino…
Para os leitores dos romances de Italo
Calvino faltavam seus ensaios, que são como seus complementos. As direções
neorrealista e paródica são assim preenchidas, arredondadas, sem que isso
signifique que o seu objetivo tenha sido concluído. Seus ensaios são mais do
que memórias, gênero-testamento, que tanto proliferam desde seu tempo. Grandes
escritores geralmente não escrevem memórias de vitrine, reservadas a políticos,
celebridades e artistas; quando o fazem, escrevem anti-memórias,
auto-obituários ou diários íntimos.
Assunto encerrado é um
livro complementar que ilumina a farsa calvinista, povoada por cavaleiros,
damas, condes e marquesas, bonecos e máscaras humanas, que não degeneram em
marionetes.
2 O ensaio ou a visão
perspectivista
Italo Calvino é um romancista
intelectual, poeta romancista; não é um romancista repórter. Essas distinções
são tão óbvias quanto importantes, porque determinam os respectivos escritos.
Da relação entre romancista e intelectual e de suas implicações mútuas, nasce o
livro que Calvino intitulou
Una pietra sopra e que a tradutora Roberta
Barni, na edição brasileira da Companhia das Letras chamou de
Assunto
encerrado, com a designação de
discursos sobre literatura e sociedade.
Sem dúvida, esta mudança de nome deve-se mais do que a uma atitude “traidora”,
na conhecida tradição da tradução, a uma intenção editorial, comercial. O
título italiano não sugere quase nada aos leitores fora do seu idioma. Mas
Assunto
encerrado, refere-se de alguma maneira à tarefa de escrever pelo indicativo
do discurso concluído. Também indica o ponto final indica mudança, ruptura,
recomeço. As relações entre literatura e sociedade parecem remeter às leituras
de Lukács, Goldmann ou Escarpit e a sua incidência como moda de ontem
transformada em costume no grande público de agora.
Há romancistas que hoje se
redescobrem como ensaístas e quero citar o caso de Juan Valera cujos ensaios
críticos ainda recentes são de maior interesse que seus romances um tanto antiquados;
e, ao contrário, ensaístas famosos na vida e glória, cujos artigos exaltados
hoje são esquecidos e seus romances, então ignorados ou desvalorizados, são
resgatados. É o caso de Leopoldo Alas “Clarín”. No ficcionista Italo Calvino, já
estava implícito o ensaísta. Calvino não é um puro narrador, um “contador de
histórias”, nem um Borges. Ele é um narrador intelectual e irônico, assim como
Borges é um narrador poético e metafísico. No escritor italiano há sempre uma
leitura dupla, ou mais leituras, se preferir: a leitura “real” de seus romances
e a leitura irônica, perspectivista, imagem paródica da realidade. Nesta etapa,
do escritor que escreve ao escritor que reflete, está a vocação ensaística de
Calvino. Portanto, não é estranho que ele admire autores de prosápia
semelhante, como Thomas Mann ou Aldous Huxley, na hora de escolher suas leituras
ou mestres.
Assunto encerrado reúne
textos que são algo mais do que ensaios de justificativa ou de explicação. (O
escritor não precisa explicar nada, sua obra está aí e sobram os comentadores.
Mas é a hora do leitor, como disse o crítico esperto, do comentário do texto e
da exegese; também do tédio. A crítica, necessária ou supérfluo, é hoje um
problema insolúvel, com muita sabedoria e pouca graça). Italo Calvino, a quem
nada do social lhe é estranho, aceita sair de trás do quadro criativo, onde
move as suas marionetes com um sorriso irônico, e explica ao grande público as
peripécias da farsa, seu modo de ficcionalizar. Para Calvino, “nos narradores da
geração mais jovem [de escritores italianos] o personagem do eu-lírico-intelectual
não existe mais, parece ter sido drasticamente abolido. O mundo real, o mundo
dos ‘outros’, chega ao primeiro plano” É um escritor “social”? Não diríamos
tanto, embora pareça se justificar como tal. O intelectual não deve ser
desenraizado, mas “se sentir integrado à sociedade, como parte funcional dela,
sem ter de evadir-se de si ou dela, de disfarçar-se ou castigar-se.” (Um poeta
cívico?) Calvino não é tampouco um intelectual puro. Aqui a intelectualidade,
eu ia dizer a nata da intelectualidade, pode discordar do autor italiano. Acima
de tudo, se levarmos em conta que o intelectual deve ser um crítico de qualquer
sociedade; um instigador, às vezes incômodo, na paz e na guerra. O intelectual
que mergulha no sistema, cândido avestruz, excessivamente interessado ou
confiante, deixa de ser um intelectual e passa a ser um coautor, um comparsa,
um bajulador. O intelectual deve ser crítico, lúcido, mesmo em democracia;
também quando seus códigos estéticos e ideológicos estão no poder. Caso
contrário, torna-se uma sombra do que era, uma estátua. E qualquer sistema, sem
críticas, é um balão inflado que facilmente estoura.
No julgamento do romance, Calvino
possui algumas raízes e leituras lukacsianas, como no ensaio “Natureza e
história no romance”. Consideremos os estudos de Lukács sobre o romance
histórico e sua visão do romance como um épico moderno. “Indivíduo, natureza,
história: na relação entre estes três elementos consiste aquilo que podemos
chamar de épica moderna”. Logo, ele confessa suas inclinações por aqueles
escritores do passado e do presente em que “nos quais os termos natureza e
história (ou sociedade, se preferirmos) parecem copresentes”. Entre seus
autores de ação destaca: Balzac, Flaubert, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov,
Conrad, Stendhal, Twain, Stevenson, Hemingway, Lawrence, Malraux; e Faulkner,
Kafka, Camus, Pavese, Sartre, Robbe-Grillet, Butor...
No ensaio “Três correntes do
romance italiano hoje” estuda as direções do neorrealismo e do hermetismo,
elegíaco, dialetal, e entre os autores italianos de sua devoção leitora e
reflexão crítica, destaca Cesare Pavese e Elio Vittorini; e depois a Vasco
Pratolini, Carlo Cassola, Giorgio Bassani, Carlo Levi, Rocco Scotellaro,
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Pier Paolo Pasolini, Carlo Emilio Gadda, Alberto
Moravia; por todas estas razões, este capítulo constitui uma introdução lúcida
à literatura italiana contemporânea, através da qual o leitor pode entrar em
contato com autores e obras para depois lê-los. Calvino escreve a partir de
outra direção estética, do que chama “a da transfiguração fantástica”. Estuda
os precedentes da literatura italiana de iluminações fantásticas, neste século,
de Palazzeschi a Landolfi, Buzzati ou Elsa Morante; mas suas origens são
transferidas para os romances de cavalaria ou para os grandes poemas da
Renascença. Confessa sua paixão por Ariosto, que não se cansa de ler. Em
Ariosto, e nos personagens Orlando, Angélica, Ruggiero, Bradamante, encontraria
a origem daqueles que são uma réplica histórico-moderna, irônica, Agilulfo, O
cavaleiro inexistente, Medardo di Terralba, O visconde partido ao meio,
Cosme, O barão nas árvores. E figuras como Gurdulu, Bradamante, Sofrônia,
a menina dos Marqueses de Ondariva, a irmã Battista, Eneas Silvio Carreaga etc.
Calvino começou como escritor sob
o neorrealismo predominante. Explica a sua passagem da estética da realidade
para a estética da fantasia, que não abandona a realidade (história-vida), mas
transforma-a sem trai-la, transfigura-a. Não há contradição entre seus
primeiros passos como escritor realista, comprometido e militante do Partido
Comunista e do seu realismo fantástico e paródico. Há uma progressão na arte de
escrever. A estética, única ética do escritor, impõe-se ao compromisso juvenil.
Não é por acaso que Calvino, um partidário das Brigadas Garibaldi, se separou
do Partido Comunista em 1956, após a invasão da Hungria. Entre esta invasão e a
da Tchecoslováquia, muitos intelectuais e escritores de esquerda compreenderam
que o compromisso com a escrita é maior do que político. Entre o esteticismo e
o panfletismo vazios, está a verdadeira realidade, real ou mágica, que o
escritor, sem limitações internas ou desvios externos, tenta apreender.
Calvino iniciou sua carreira
literária através da amizade de Cesare Pavese, um escritor fascinante, passada
a febre da Morávia. O autor de Assunto encerrado lhe dedica o artigo:
“Pavese: ser e fazer”, lema e resumo, definição e panegírico essencial e nos
surpreende com esta afirmação: “Pavese não era poeta por natureza nem por graça”
(O que era? Um sofredor? Um sentimental?) O ensaísta continua: “(…tinha de
parecer ao jovem para quem ter êxito numa obra de poesia ainda se afigura um heroísmo
sobre-humano, um milagre de concentração moral)”. Pavese fez do “ser
tragicamente” um ato lúcido. (O trabalho do escritor é escrever). Como Kafka, das
suas cinzas interiores, ruínas, conflitos, obsessões, elevou um novo universo.
É a vantagem do criador, o dom de construir com sonhos.
Em “Diálogo de dois escritores em
crise” Calvino afirma que não demonstra disposição para ver o lado trágico da
vida. Não tem o sentido unamuniano da existência. O humor o salva da tristeza
elegíaca ou do desespero cósmico; do poço interior e do labirinto. Ele superou
a realidade, mas não se deixa cair no vazio da tristeza nem foge da fantasia. É
demasiado heroico ser Pavese ou Kafka; forçado demais para ser Unamuno. Calvino
é discípulo de Ariosto; também de Cervantes. Sua ironia é agridoce, alegre;
embora escreva: “minha vocação é, antes, a da deformação grotesca, ou talvez
cômica, da realidade”, abordagens estéticas que, em teoria, são próximas às de
Valle-Inclán, na prática se separam, porque é um humor zombeteiro e divertido,
o de Calvino, e uma sátira cruel, deformada, a Valle-Inclán. Os personagens
daquele são cavaleiros armados e vazios, um estranho barão que vê o mundo pela
perspectiva dos galhos, confiante, que sobe em árvores e não em escadas
burocráticas ou regalias políticas. Ou o visconde excessivo. Em Valle-Inclán
também estão presentes os príncipes e as marquesas (lembre-se da sua sonata
italiana); mas no Vale grotesco, os personagens são bonecos deformados,
bizarros, degenerados, anti-heróis. Calvino se ri do heroísmo; sempre foi um
desejo humano compreensível, mas excessivo, com a sua face de glória e a sua
cruz de ridículo. (Como Cervantes explicou bem com o Quixote!)
Um dos melhores textos deste livro
é, sem dúvida, “O desafio ao labirinto”, desde já com um título tão
significativo. É um ensaio intelectual filosófico, do escritor atento à
realidade cotidiana e à sua transformação. “A filosofia, a literatura e arte tiveram
um trauma da Revolução Industrial do qual ainda não recuperaram”. Trata de
explicar a relação entre o escritor e a civilização ocidental, sua aceitação ou
recusa, desde as profecias negativas como a de Huxley até as positivas como as
de Maiakovski. Para Calvino, as atitudes científica e poética têm coisas em
comum. Entre os extremos do cientificismo, do prosaísmo, do anti-humanismo e do
“esteticismo”, do “escapismo”, do “exotismo” ou do “decadentismo”, há um lugar
de encontro e compreensão, difícil de encontrar e não perder: “Enfim, ser
progressista e poeta é cada vez mais difícil”. O escritor medita sobre as
ideologias que sustentam o mundo industrial, a filosofia anglo-saxônica da
ciência, a comunicação e o materialismo histórico, ideologias que apontam para
o público com o esquecimento do “privado”. Diante dessa situação, emergem os
escritos labirínticos de Robbe-Grillet, Butor, Borges. E de Queneau, Gadda,
Nabokov, Günter Grass e Musil, a literatura como labirinto gnosiológico e
cultural. Calvino é moderno quando escreve: “(a tentação do romance global,
pan-ensaístico, vai se tornar por certo cada vez mais forte…)”.
Assunto encerrado é um
livro heterogêneo: junto com os temas estéticos, especialmente em torno do romance,
encontram-se preocupações com a classe trabalhadora, reflexões sobre a língua
italiana ou a antilíngua, a língua bárbara de advogados, funcionários, redações
de jornais, noticiários, conselhos de administração; a língua artificial, de
gíria internacional, que acabará com as línguas verdadeiras. Vittorini é um
escritor que lhe interessa e a quem dedica dois artigos; nele, se sente atraído
por sua estética, seu projeto e perspectiva; e sua ideologia antiautoritária.
Para um escritor intelectual não
poderia faltar um tema como “Filosofia e literatura”, suas complementaridades
na escrita total. Para Calvino “A relação entre filosofia e literatura é uma
luta”. Mas é nesta luta de amigos/ inimigos, condenados a compreender-se, que
reside a sua tensão criativa, a sua originalidade. Aí estão os exemplos de Dostoiévski
e Kafka, de Camus, Sartre ou Beckett. Enquanto a literatura “real” desmorona,
seus mecanismos de “atualidade” são desmantelados, a literatura simbólica
permanece no tempo. A modernidade de autores como Carroll, Queneau e Borges
reside na intemporalidade da sua metafísica literária, na essencialidade de uma
literatura simbólica, enriquecedora e de múltiplos significados, onde o
mistério, a imortalidade, parecem ao alcance, apreendidos pela razão e pela
falta de razão, pela palavra e pela parábola.
“Cibernética e fantasmas (Notas
sobre a narrativa como processo combinatório)” é um interessante ensaio-conto,
uma fábula moral que brinca com a narrativa como um processo combinatório: “O
narrador começou a articular palavras não para que os outros lhe respondessem
com outras palavras previsíveis, mas para experimentar até que ponto as
palavras podiam combinar-se umas com as outras e gerar-se umas às outras, para
deduzir uma explicação do mundo mediante o fio de todo discurso-narrativa
possível, do arabesco que nomes e verbos, sujeitos e predicados, desenhavam,
ramificando-se uns dos outros.” Parece linguística/ficção. Calvino estuda as
contribuições da gramática estrutural e da cibernética para a concepção do
mundo e as importantes mudanças a que isso levou. E pergunta-se “Qual seria o
estilo de um autômato literário?” E a resposta é: “Penso que sua verdadeira
vocação seria o classicismo”. (Resposta irônica.)
Nesta caixa de alfaiate que é Assunto
encerrado, não faltam correspondências, entrevistas, conferências, textos
que informam sobre a personalidade de Italo Calvino, seus juízos, experiências,
filias, fobias; interessantes, mas mesmo assim não conseguem atingir a
qualidade da página dos artigos anteriormente referidos.
Em “O mundo às avessas” o ensaísta
se pergunta sobre o Carnaval; sobre sua perda significativa e o apelo que tem
para o crítico literário. Para Calvino, o carnaval o interessa por sua
concomitância com o pano de fundo de alguns de seus romances: “O rito do
Carnaval consistia em primeiro lugar na coroação de um rei da brincadeira e em
sua posterior descoroação”. O carnaval era um modelo paródico de sociedade; uma
zombaria permitida, uma breve vingança de humor na chata vida cotidiana. O erótico
também tem lugar, mas na perspectiva do riso: “Em literatura, a sexualidade é
uma linguagem em que aquilo que não é dito é mais importante do que o que é dito.”
Afirma também que na realidade toda
literatura é erótica como também é sonho. Passa em revista os grandes autores
do sexo: D. H. Lawrence e Henry Miller. Isso em “Definições de territórios: o
erótico (o sexo e o riso)”.
Seu ensaio sobre Fourier divide-o
em três partes: “A sociedade amorosa”, “O ordenador dos desejos” e “A utopia
pulviscular”. Um autor visionário como Fourier não poderia deixar de interessar
um escritor “fantástico” como Calvino. Além de suas utopias de falanges e
falanstérios, ele não pôde deixar de mover sua caneta irônica. Fourier pertence
ao tipo de sonhadores sublimes, desmedidos, assim como os cavaleiros e nobres
sobre os quais Calvino novela. (Interessa-se por em Huxley, Kafka; no entanto,
ele não escreve sobre Orwell e eu 1984). Compara Fourier com
Saint-Simon: “Comparado a Saint-Simon, Fourier permanece sento a absoluta inatualidade:
lúcido como era em sua crítica do presente, nada entendeu do que se passava.” O
ensaísta analisa a influência de Fourier em vários escritores.
Também podemos encontrar neste
volume crítica literária sobre Os noivos de Manzoni; ou uma constetação
a uma polêmica sobre o romance de sucesso, publicado no L’Espreso ou a
sua intervenção numa enquete. (Veja o artigo: “Os deuses da cidade”).
Um ensaio sugestivo, texto de uma
conferência, localizado no final do livro pode ser: “Usos políticos certos e
errados da literatura”, uma nova reflexão sobre as implicações mútuas do
intelectual, comprometido, e do escritor, criador. “Mas, num nível mais
profundo, tenho consciência de que o nó das relações entre política e
literatura, no qual tropeçamos em nossa juventude, ainda não se desmanchou; em
seus restos desfibrados e desgastados, ainda são nossos passos.” A obra
ensaística de Calvino parece, por vezes, motivada para explicar sua trajetória
narrativa, desde o neorrealismo de seus primórdios até o realismo fantástico ou
a paródia da história (da vida). É como se ele quisesse nos dizer que a sua
estética é também a sua ética; que não esqueceu o compromisso juvenil. Daí a
sua insistência, ainda, no social, no político. (Veja seu artigo, também no
final, “Notas sobre a linguagem política”).
O volume encerra com um ensaio de título
tão significativo: “Os níveis de realidade em literatura”, de uma realidade
total, não apenas “real”, onde também estão presentes o fantástico e o
simbólico, a dimensão metafísica e imaginativa. Para Calvino, a literatura não
conhece a realidade, mas apenas os níveis; a realidade dos níveis, conhecimento
que pode ser alcançado melhor por outros procedimentos. O verdadeiro
conhecimento não é dado apenas pelas ciências empíricas ou espirituais. A
literatura, que não é ciência, experiência-reflexão, mas criação, pode abrir
novos caminhos sobre a realidade desgastada, que não nos permite ver além.
______
Assunto encerrado
Italo Calvino
Roberta Barni (Trad.)
Companhia das Letras, 2009
392 p.
Notas da tradução
1 Todas as traduções de excertos
de Assunto encerrado são as de Roberta Barni (Companhia das Letras, 2009).
* Este texto é a tradução livre de “Narración
y ensayo en Italo Calvino” publicado em Cuadernos Hispanoamericanos,
n.412, out. 1984, p.149-158, disponível na Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes.
Comentários