Por Pedro Fernandes
A literatura é mentir de maneira
que seja verdade.
— Jon Fosse
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Jon Fosse. Foto: Tom A. Kolstad |
É provável que muitos leitores
brasileiros tenham lido o nome de Jon Fosse pela primeira vez com Karl Ove Knausgård.
O nome e de outros escritores nórdicos aparece no grandioso romance Minha luta,
cuja estrutura parece dever alguma coisa das obras do agora Prêmio Nobel de
Literatura: uma série composta por seis volumes como dois dos mais emblemáticos
títulos de Fosse, Trilogia e Septologia, considerado pela crítica
até agora a sua Magnum Opus. O curioso é que, quando a obra do assim
referido Proust do século XXI chegou neste país de elevada carência editorial,
alguns poucos já conheciam um livro de Fosse: o díptico Melancolia.
Mas, no nosso idioma, ainda era possível
encontrar uma generosa variedade de títulos no âmbito dos dois gêneros mais bem
praticados por Jon Fosse: na prosa, os romances É a Aless (grafado sem
um s na tradução que se publica agora em 2023 no Brasil), Manhã e
noite, Trilogia e as primeiras partes de Septologia; e, no
teatro, as peças Sou vento, Sono, O homem da guitarra, Lilás,
Inverno, A noite canta os seus cantos, O nome e Sonho
de outono, algumas dessas alguma vez encenadas por aqui.1
Quando no meio da tarde que
antecedeu o dia do anúncio do galardoado pela Academia Sueca, chegava entre nós
a confirmação de um novo romance, recente, feito depois do aclamado Septologia:
Brancura. A pré-venda desse livro somada às especulações das casas de
apostas prepararam a quase certeza de que, sim, em 2023, o Prêmio Nobel de
Literatura seria atribuído a Jon Fosse, um norueguês nascido em Haugesund, em 1959, usuário da nynorsk, uma das duas formas de escrita da língua em seu país e considerada o novo norueguês em relação à bokmål, a mais antiga e a mais utilizada pelos noruegueses. Na manhã seguinte, descobrimos que estávamos certos ou pelo menos desta vez não
existiu uma roleta da sorte para apontar um escritor ou o júri voltou ao senso sem
querer afagar a imensa variedade de identitarismos que infesta o literário
neste tempo de triunfo irrevogável do neoliberalismo.
Jon Fosse reata uma ocasião quando
a Academia Sueca premiou escritores exclusivamente comprometidos com o ofício
da palavra e com o uso dessa invenção chamada literatura como um mecanismo de
investigação das múltiplas dimensões que conformam nossa condição humana; estão
nessa tradição, inclusive, vários nomes que há muito são utilizados para definir
a literatura de Fosse, como Knut Hamsun, William Faulkner, Harold Pinter, Henrik Ibsen ou
Samuel Beckett, este último apontado pelo próprio Fosse como a figura essencial
do seu paideuma.2
O presidente do comitê para o
Prêmio Nobel de Literatura Anders Olsson, acrescentou ainda à linhagem de Jon Fosse,
nomes como George Trakl e Thomas Bernhard, aproximando-se desses e dos outros
autores referidos pela perspectiva negativa mas distinguindo-se deles por não
fazer da sua particular visão gnóstica uma postura niilista para com o mundo: “há
grande cordialidade e humor na sua obra e certa ingênua vulnerabilidade ante
suas cruas imagens da experiência humana.” Exemplo disso pode ser pinçado de Trilogia:
sem casa e em busca de um refúgio onde passar a noite, dois jovens caminham
pela neve enquanto falam do futuro, imaginam-se numa condição melhor e se
abraçam. A imagem não apenas terna; ela encerra toda beleza que reside nas ligações eu-outro, desfazendo-se da lógica L'enfer c'est les autres. Nela, talvez se singularize ainda o que Karl Ove Knausgård, que foi aluno de escrita criativa com Fosse, designa como “a voz inconfundível” do
escritor.
As palavras de Olsson findaram
ainda por restaurar qualquer fagulha da persistente chama do modernismo quando
designou que a obra de Jon Fosse se encontra articulada pelas tensões da
tradição e da modernidade, estas que presenciamos ora nas articulações dos usos
linguísticos muito particulares com as técnicas artísticas de curso vanguardista,
ora nas interlocuções entre a mística cristã e o misticismo escandinavo, ora da
narrativa escrita e da oralidade, ora ainda da mentalidade existencial e seus
conflitos com o inexplicável. Talvez possamos compreender melhor como isso se
processa olhando para a estrutura de É a Ales, cuja narrativa aparece desenvolvida,
algo recorrente na ficção de Fosse, num único fluxo do começo ao fim do livro, nesse
caso, quebrado apenas em algumas passagens pela disposição dos diálogos. Repete-se
certa técnica conhecida entre nós com Guimarães Rosa em Grande sertão:
veredas, em que o escritor é uma espécie de atravessador capaz de capturar
o em-curso de um acontecimento sempre revelado como narrativa e fixá-lo
como instante para o olho próprio e o alheio.
Ao dizer isso, recuperamos o que
se descreve com recorrência sobre seu romance mais reconhecido. Septologia
é um grande monólogo em que um artista já velho fala consigo como se fosse outra
pessoa, um Asle pintor asceta e um Asle artista alcoólatra, repetindo isso que
dissemos de É a Ales, uma narrativa que se desfia como infinitamente, feita
de idas e vindas, de acontecidos e possíveis; uma longa meditação passando em
revista uma ou duas vidas e interrogando-se sobre o pequeno cotidiano e o inefável.
Cada uma das sete partes — não nos detemos, mas apontemos a vasta simbologia desse
número para as várias culturas, incluindo o cristianismo — abre e fecha com a
mesma oração a Deus, repassando o gesto circular da tradição católica a qual
Fosse se filia depois da sua conversão em 2012.
O volteio da consciência, sempre
interferido pela matéria das muitas vozes que conformam o interior e o exterior
dos planos humanos, logo recorda ainda o valioso trabalho de António Lobo
Antunes, escritor que sabemos, impôs uma revolução à arte de contar histórias desde
as variações operadas por obras como a de Faulkner. Se o estilo notado em É
a Ales e na Septologia constituírem sua marca criativa, e
acreditamos que sim, logo saberemos como esses dois escritores estão irmanados,
uma vez que com o português as obras nascem de uma inquietação pessoal e se
organizam verbalmente como um redemoinho, uma procura, em crescendo e decrescendo, impondo
um ritmo próprio e desafiador aos leitores adestrados com o curso retilíneo das
coisas.
Outra qualidade que os aproxima é
como esses escritores buscam respostas para os dilemas humanos a partir de
personagens que se apresentam no limiar, alheias ao ruído e aos interesses mais
prementes do cotidiano, porque se fazem como os seus criadores, obcecadas por
esse elemento de nosso ser simultaneamente imutável e desconhecido. Isso afere
a justificativa pública oferecida pelo comitê do Nobel: as peças e a prosa de
Jon Fosse “dão voz ao indizível”. Nesse caso, o indizível ora é
natureza subjetiva da experiência humana, alguns dos elementos que dizem de
nossa condição, o núcleo do mistério artístico, incluindo o silêncio e a da
linguagem, ou ainda a manifestação de Deus.
Anders Olsson definiu o estilo de Jon
Fosse como minimalista pela maneira como a complexidade das questões ético-existenciais
aparece tratada em enredos precisos com poucas personagens e quase nenhuma ação.
O enredo de É a Ales passa em revista cinco gerações da família de Signe
enquanto a personagem encontra-se deitada num banco de sua casa no fiorde refletindo
o episódio de desaparecimento do marido Asle num dia quando saiu com seu barco
e nunca mais voltou; em Brancura, um homem conduz seu carro por entre a
floresta quando anoitece e começa a nevar, durée em que ele passa em
revista os motivos da sua errância; em Trilogia, Asle e Alise percorrem três
momentos distintos de suas vidas. Nesses três casos, os enredos objetivos lançam-se sobre temas profundos como a morte, o amor e a fé, temas que modificaram e continuam a modificar a própria permanência da humanidade como um dos estratos do milagre de existir.
Na entrevista ao jornalista
Ubiratan Brasil referida nas notas de fim, publicada no Brasil um ano depois da
chegada de Melancolia, Jon Fosse disse que conteúdo e forma, na
literatura, são “como alma e corpo no ser humano”. Pelo que dissemos até aqui, o
fluxo variado com o qual tece seus romances por vezes como se um salmo, ou as
pausas, interrupções e incompletudes na cena dramatúrgica, funcionam como puras
extensões das interioridades e das vidas de suas personagens e essas funcionam —
e a repetição dos nomes próprios nas suas designações provam — como criaturas arquetípicas
dessa humanidade que constitui matéria essencial dos autores da longeva tradição literária à qual se filia sua literatura.
Resta dizer que o Prêmio Nobel
abriu a oportunidade para uma obra feita não da borra mas do sumo da literatura,
interessada em nos colocar ante uma experiência em dupla dimensão simultaneamente,
o que é afinal ponto dorsal de toda arte: o confronto pelo estético e pelo
ético. A obra de Jon Fosse demonstra, rosianamente, que uma vez cumprida a travessia, devemos
chegar à terceira margem. A literatura é o que nos empuxa para o fora, quando enfim
nos é dado a perceber enquanto criaturas feitas do mesmo e do outro; a
literatura como um ponto de ruptura, o véu entre o interior e uma realidade.
Voltar a isso nos tempos que correm, quando querem o literário como panfleto, bandeira de uma causa, reflexo, meio para, numa era de inteiro assoreamento da palavra e da significação, de redução capital e prática das coisas, é, sim, um bonito
gesto de resistência. É uma pena precisarmos sempre repetir isso, mas agora é por um motivo nobre.
Para iniciar na obra de Jon Fosse
É a Ales
Guilherme Silva Braga, (Trad.)
Companhia das Letras, 2023, 112 p.
“Como os melhores trabalhos de Faulkner, É a Ales trata de nossa relação inescapável com o passado e do reverberar misterioso da história através das gerações. Por meio de vozes e narrativas que se interrompem e interferem umas nas outras, Fosse retrata a dor ― e o amor ― que nunca podem ser expressos em palavras.” (The Atlantic)
Brancura
Leonardo Pinto Silva (Trad.)
Fósforo, 2023, 64 p.
A primeira obra de Jon Fosse após
Septologia, o monumental romance que o consagrou entre os grandes nomes da literatura em curso e lhe rendeu um lugar no panteão literário ao lado de seus mestres Faulkner,
Woolf e Kafka.
Notas
1 Especificamente,
Sonho de
outono. Algumas das outras que foram encenadas no Brasil, ainda permanecem inéditas
em língua portuguesa:
Ein sommars dag (Um dia, no verão) e
Namnet
(Nome).
2 Em entrevista a Ubiratan Brasil,
o escritor disse que: “Beckett é mais ou menos meu pai literário, juntamente
com o escritor norueguês Tarjei Vesaas. E, como é frequente, você se rebela
contra seu pai. Minhas pausas e as pausas de Beckett são muito diferentes, minhas
pausas com frequência dizem o oposto.” É possível confrontar, de alguma maneira
o que Jon Fosse sublinha de Vesaas com a publicação de
O castelo de gelo
no Brasil.
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