Por Paola Dada
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Italo Calvino. Foto: Arquivo Rcs. |
De modo especial, a literatura de
Ítalo Calvino é espiralada. Foi um escritor versátil que trabalhou o romance, o
conto, o ensaio, a crônica e o jornalismo. Apesar de ter utilizado diferentes
métodos literários, sua escrita é uma linha contínua e interminável que, como
uma grande teia de aranha, tenta apreender o universo. “A obra literária é uma dessas
mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um
sentido, que não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade
mineral, mas tão vivo quanto um organismo”, escreve em
Seis propostas para o
próximo milênio (1988).
1
Neste livro se apresenta cinco das
seis conferências que proferiria para a Universidade de Harvard, no ciclo “Charles
Eliot Norton Poetry Lectures”. Ele morreu pouco antes de fazer a viagem em 19
de setembro de 1985.
2
Antes de completar sessenta e dois
anos, Calvino consegue nestas propostas resumir qual foi a sua obra. Cada
capítulo desenvolve um valor literário para o século XXI. Como se estivesse
dentro de uma elíptica teia de aranha, Calvino fala sobre suas preferências
literárias e dá exemplos do que conquistou com sua escrita. Esta espiral,
tecida em torno da Leveza, da Rapidez, da Exatidão, da Visibilidade e da
Multiplicidade, na verdade desvenda o mistério da criação literária.
Ele escolhe a Leveza como ponto de
partida porque se surpreende com o acaso com que as coisas se tornaram o que
são. Existe um fio tênue que mantém o universo unido. Mas este não é um valor
novo em Calvino; já desde 1972, em
As cidades invisíveis descreve
algumas cidades que gozam do privilégio da Leveza. Estas cidades inexistentes
com nomes de mulheres, que Marco Polo conta ao Grande Khan, flutuam no
imaginário do viajante e do leitor, tornando-se metáforas e alegorias não só de
cidades reais, mas de personagens e atitudes.
A segunda proposta literária para
o milênio é a Rapidez. Neste conceito Calvino centra a importância do tempo
narrativo, do ritmo com que flui um texto, que nas suas próprias palavras é a
“busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável”.
Em Exatidão, terceiro valor, Calvino
pretende resgatar aquela terra prometida “onde a linguagem se torna o que
realmente deveria ser”. A literatura, nesse sentido, deve ser definida, clara,
precisa. “A partir do momento em que escrevi esta página percebi claramente que
minha busca se bifurcava em duas direções. De um lado, a redução dos
acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitisse o cálculo e a
demonstração de teoremas; do outro, o esforço das palavras para dar conta, com a
maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas.”
Essa busca particular pode ser
percebida no romance
Palomar (1983), último livro de Calvino publicado em
vida. É uma espécie de romance modular, que descreve com precisão as
experiências do Sr. Palomar. Não é gratuita que o personagem leve o nome de um
observatório. Ele observa tudo e divide cada experiência em uma descrição
“científica” ou exata do que é observado; depois faz um relato com visão
antropológica onde a linguagem, os significados e os símbolos são o elemento
importante; finalmente, o personagem medita sobre esses temas e sua relação com
o cosmos, o tempo e o infinito. Nas palavras do autor, trata-se de “uma espécie
de diário sobre os problemas do conhecimento minimalístico, sendas que permitem
estabelecer relações com o mundo, gratificações e frustrações no uso da palavra
e do silêncio”.
Porém, Calvino reconhece que, em
termos de Exatidão, sua maior conquista está em
As cidades invisíveis porque
conseguiu “concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões,
experiências e conjecturas em um único símbolo; e também porque consegui
construir uma estrutura facetada em que cada texto curto está próximo dos
outros numa sucessão que não implica uma consequencialidade ou uma hierarquia,
mas uma rede dentro da qual se podem traçar múltiplos percursos e extrair conclusões
multíplices e ramificadas.”
Para a quarta proposta ele
escolheu a Visibilidade. Aceita que, quando criança, antes de saber ler, sua aproximação
ao mundo se dava por meio das tirinhas nos jornais. Assim, a imagem tornou-se estímulo
para histórias que criava para além do que poderia ser lido nos balõezinhos dos
diálogos. Para o autor, a imaginação visual deve tornar-se um repertório de potencialidades,
ou seja, “a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar
cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma
página branca, de
pensar por imagens”. O livro
O castelo dos destinos
cruzados (1973) é um exemplo dessa capacidade. Italo Calvino pegou um
baralho de tarô, distribuiu-o sobre a mesa e começou a recriar as histórias
evocadas pelas imagens.
Por fim, como última proposta
escolheu a Multiplicidade. Nela ele vê o romance contemporâneo como
“enciclopédia, como método de conhecimento e, principalmente como uma rede de
conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo”. Todos os
livros mencionados cumprem esta função. Seja com metáforas de cidades, seja com
imagens provenientes de um jogo de tarô, seja com experiências pessoais
observadas no mundo real. Os seus livros contêm uma estrutura cumulativa,
modular, combinatória... Como ele próprio confessa através de uma personagem de
O castelo dos destinos cruzados: “Talvez haja chegado o momento de
admitir que o tarô número um é o único que representa aquilo que consegui ser:
um prestidigitador ou ilusionista que dispõe sobre a banca de feira um certo número
de figuras e, deslocando-as, reunindo-as ou trocando-as, obtém um certo número
de efeitos.”
3
Mas esta multiplicidade, esta rede
tecida em torno de uma realidade verdadeira ou imaginada, acaba por se
concretizar de forma mais completa num romance cujo tema central é a própria
escrita. Em
Se um viajante numa noite de inverno... (1974), Calvino
consegue amalgamar em um mesmo livro sua preocupação pela literatura e seu
prazer pelo jogo e pela multiplicidade.
Se um viajante numa noite de
inverno... é um livro que trata da relação entre o escritor e o Leitor, que
é o personagem principal. Calvino se propôs a escrever o primeiro capítulo de
dez romances “apócrifos” escritos com enredo, estilo, personagens e mentalidade
diferentes dos seus.
Assim, o leitor se depara com uma
trama onde um Leitor, que conhece uma misteriosa Leitora, sofre ao perder a
possibilidade de terminar de ler um romance que havia começado... A busca para
finalizar sua leitura o leva a encontrar dez romances diferentes, ou melhor,
dez princípios de diferentes romances: o da neblina, o da experiência corporal,
o simbólico-interpretativo, o político-existencial, o cínico-brutal, o da
angústia, o lógico-geométrico, o da perversão, o romance telúrico-primordial e
o romance apocalíptico.
Essa angústia do personagem Leitor
é transmitida ao leitor que não só deseja terminar a leitura de dez romances,
mas também se pergunta como terminará esta, a de Calvino. Conclui de forma
brilhante, fechando sua rede como uma espiral mordendo o rabo.
Este final está diretamente ligado ao apêndice que escreveu
para as
Seis propostas para o próximo milênio: “A arte de começar e a
arte de terminar”.
4 O autor reconhece que há sempre um ponto de
partida e um ponto de chegada. Mas será que a espiral que ele tece com a sua
literatura vai do centro para a periferia ou da superfície para o centro das
coisas? Talvez, nas palavras de seu personagem, o Sr. Palomar, a resposta possa
ser encontrada: “Só depois de ter conhecido a superfície das coisas”, conclui,
“podemos aventurar e procurar o que está por baixo. Mas a superfície das coisas
é inesgotável”.
5
Diz-se que a sexta proposta, uma
conferência que não escreveu, seria Consistência. É provável que o último valor
que Ítalo Calvino atribui à literatura seja o que ele mais exerceu. Apesar da versatilidade
de seus textos, é um escritor consistente. Embora seus livros sejam muito
diferentes entre si, alguns neorrealistas, outros fantásticos, alguns baseados
em experiências e outros produto de sua imaginação, todos estão relacionados à
intenção do autor de desvendar a espiral da realidade para fazer circular a
hélice de sua escrita. Agora falta um
personagem Leitor, como aquele que
habita as páginas de
Se um viajante numa noite de inverno… que venha desembaraçar a
espiral de Italo Calvino para fazer a sua. Porque, como diz o senhor Palomar,
“o universo é o espelho em que podemos contemplar apenas o que aprendemos a
conhecer em nós”.
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Seis propostas para o próximo
milênio
Italo Calvino
Ivo Barroso (Trad.)
Companhia das Letras, 1990
144 p.
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Ligações a esta post:
Notas da tradução
1 A tradução deste e de outros
excertos de Seis propostas para o próximo milênio neste texto são as de
Ivo Barroso (Companhia das Letras, 1990).
2 Essas conferências só vieram a
público três anos depois da morte de Italo Calvino e saíram na Itália pela editora
Arnoldo Mondadori, de Milão. O escritor foi acometido por aneurisma cerebral no
dia 6 de setembro de 1985, passa doze dias internado e morre na madrugada do dia
18 para 19 no hospital Santa Maria della Scala, de Siena.
3 A tradução deste excerto de O
castelo dos destinos cruzados é de Ivo Barroso (Companhia das Letras,
1991).
4 Quando Italo Calvino começa a
esboçar as conferências reunidas em Seis propostas para o próximo milênio,
pensa neste texto que, nas edições italiana, espanhola e portuguesa é tomado
como parte do livro. Alguns críticos chegaram a admitir que essas anotações serviriam
à conferência que ficou por se realizar, enquanto outros, mas cautelosos,
preferem compreender que as anotações serviriam a Calvino para amadurecer o
itinerário, a forma o conteúdo das conferências. É possível ler melhor sobre
isso em “Seis ou sete motivos para o amanhã”, de Gustavo de Castro e Silva (Cronos,
Natal, v.3, n.1 p.57-62, jan./jun. 2002).
5 A tradução deste e de outros
excertos de Palomar é de Ivo Barroso (Companhia das Letras, 1994).
* Este
texto é a tradução livre de “Calvino: una red para atrapar al universo”
publicado aqui, no Semanario Universidad.
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