Por David Toscana
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Edvard Munch. O Beijo. |
Catulo escreveu seus poemas quando faltavam seis décadas para o
nascimento de Cristo. Sentia uma grande atração por um menino chamado Juvêncio
e dedicou-lhe um poema para expressar seu desejo de beijá-lo trezentas mil
vezes. Aparentemente não conseguiu conter o desejo, pois num poema posterior
fala de ter roubado um beijo de Juvêncio enquanto brincava, um suaviolum
“mais doce que a ambrosia”. E ainda assim, o prazer se transforma em
sofrimento, pois “mas não impune pois por uma hora ou mais/ me vi na ponta de
uma estaca enfiado/ me desculpando, mas meus prantos não dobraram/ nem um
tantinho da maldade tua”.
Juvêncio havia enxugado os seus “lábios, úmidos de muitas/ gotas,
secaste com teus dedos todos,/ minha boca malsã não fosse qual saliva/ suja de
meretriz em que se mija”. A doçura se transforma em amargura, ele se sente
crucificado e aprende a lição: “Porque esta é a pena que atribuis a um triste
amor,/ eu beijos nunca mais hei de roubar”.1
Entre os beijos roubados, o mais famoso é o de Judas em Jesus, mas aqui
o problema nada tinha a ver com transgressão, muito menos quando o próprio
Nazareno havia admoestado Simão, o fariseu, alguns capítulos antes porque: “Não
me beijaste.” Agora tudo tinha a ver com uma traição. “Judas, é com um beijo
que entregas o Filho do Homem?” Vários artistas plásticos, como Giotto, pintam
Judas rodeando Jesus com os braços, parando o messias e aproximando-se
avidamente da boca divina. Se Giotto tivesse decidido pintar a cena um segundo
depois, Jesus e Judas teriam aparecido como Brezhnev e Honecker.
Pelo que me lembro, em Dom Quixote não há beijos na boca, talvez
nas mãos ou mesmo nos pés, salvo no caso das marionetas do Mestre Pedro: “Não
veem aquele mouro, que às caladas e pé ante pé, com o dedo nos lábios, chega
por trás de Melisendra? Vejam como lhe dá um beijo na boca, e ela principia a
cuspir e a limpar-se com a branca manga da camisa; e lamenta-se e arranca, de
pesar, os seus formosos cabelos, como se eles tivessem culpa do malefício.”
2
Um dos muitos contos do mestre Tchekhov é intitulado “O beijo”. O proprietário
de uma mansão oferece uma festa para alguns soldados de artilharia que por ali
passam. Riabóvitch fica um pouco entediado, perambula pela casa e se perde.
Entrando quase por acaso num quarto escuro... “Nesse ínterim, inesperadamente
para ele, ouviram-se passos apressados e um frufru de vestido, uma ofegante voz
feminina murmurou: ‘Até que enfim!’, e dois braços macios, cheirosos, indiscutivelmente
femininos, envolveram-lhe o pescoço; uma face tépida apertou-se contra a sua e,
ao mesmo tempo, ressoou um beijo.”
Riabóvitch não vê o rosto da mulher e sabe que recebeu o beijo por
engano. Mais tarde, no salão, ele tentará identificar a dona daqueles lábios.
Chega a hora de partir com seu regimento. Por um tempo, enquanto guarda o
acontecimento para si, aquele beijo parece lindo e carregado de significado
para Riabóvitch. Quando ele decide contar, torna-se um fato trivial.
Inevitavelmente, volta a sonhar com aquele momento. Com aquela mulher.
Meses depois, retorna com seus companheiros ao mesmo lugar. Riabóvitch deseja
ser convidado a voltar àquela mansão e estar novamente diante da mulher que o
beijou. Mas passam distante e chega o final belamente tchekhoviano.
“E o mundo inteiro, toda a vida, pareceram a Riabóvitch uma brincadeira
incompreensível, sem objeto… Mas, afastando os olhos da água e olhando o céu,
lembrou novamente como o destino, na pessoa de uma mulher desconhecida,
acarinhara-o sem querer, lembrou seus devaneios e imagens do verão, e a vida
que levava pareceu-lhe tosca, miserável, incolor…” Por isso, quando lhe abrem as
portas da casa de outro general para que o grupo jante: “Por um instante, a
alegria acendeu-se no peito de Riabóvitch, mas ele a apagou imediatamente,
deitou-se na cama e, por pirraça ao seu destino, como que desejando fazer-lhe
birra, não foi à casa do general.”3
A fera ou o sapo precisam de um beijo para se tornarem belos príncipes,
e em outras ocasiões os belos príncipes têm o poder de quebrar feitiços com um
beijo. Certamente, se alguém sofrer uma maldição tal que seja condenado a
dormir cem anos na floresta, terá que se preocupar em como irá se alimentar, se
seu corpo envelhecerá, se as formigas virão picar, se a cada inverno seu corpo
terá que ser congelado para descongelar na primavera, se depois de algumas
décadas as roupas se desfazem, se os vermes lhe tomam, se os lobos festejam com
um banquete, se os músculos atrofiarão. Nesse caso, um beijo seria recebido
como uma pessoa que está se afogando recebe uma reanimação cardiopulmonar?
Yasunari Kawabata é tomado com suas belas adormecidas por instintos
éticos mais aguçados. Eguchi já é um homem velho, mas lembra que na juventude
se sentira incomodado com o que lhe disse enquanto dançava uma mulher de meia-idade,
“uma mulher que detinha a fama de ‘esposa exemplar’: “— À noite, antes de pegar
no sono, eu fecho os olhos e tento contar os homens pelos quais gostaria de ser
beijada. Eu os conto dobrando os dedos. É tão divertido! E, se não consigo
contar dez, sinto uma tristeza…”
Já para Eguchi “parecia-lhe que, sem saber, tornara-se um
brinquedo na imaginação daquela mulher de meia-idade, e isso lhe provocou a
sensação de indecência.”
O tempo passa e agora Eguchi dorme com jovens adormecidas.
“Era óbvio que naquela casa o
cliente tinha a liberdade de beijar as garotas. Não devia haver nenhuma
proibição quanto a isso. Por mais decrépito que seja, um velho consegue beijar.
No entanto, a garota não pode evitar, nem tomar conhecimento, nunca.”
Pensa em como seria beijar uma mulher morta. Ele lamenta sua própria
senescência sombria.
“Contudo, a forma incomum da boca
dessa garota seduzia ligeiramente o velho Eguchi. Encantado com o insólito de
sua forma, tocou de leve, com a ponta do dedo mínimo, o meio de seu lábio
superior. Estava seco. A pele parecia grossa. Então, ela começou a lamber os
lábios e não parou enquanto não ficaram umedecidos. Eguchi retirou o dedo. ‘A
menina beija enquanto dorme?’”4
José José também fala com uma bela adormecida ao
dizer “Me perdí en tu vientre
cuando aún dormías/ La sorpresa abrió tus ojos y se hizo el día/ Encerré un
beso en tus labios, por si acaso me reñías”, o rosto da mulher perde a cor e “Sé que
estabas enfadada, pero no dijiste nada/ El que calla otorga…”. Seja
como for que você entenda a música, é importante a voz de José José.5
A canção mais misteriosa de bela adormecida, e com voz igualmente boa, é
a de Raphael: “Cierro mis ojos,/ para que tú me quieras libremente.../ para que
corran,/ tus dedos por mi piel.../ Yo no te veré, yo no te veré,/ puedes hacer lo
que quieras conmigo…”
E por falar em boa música, não sei o quão experiente Elvis Crespo é em
etimologias latinas, mas segundo meu dicionário, cantar “suavemente beija-me”
seria algo próximo de dizer “um beijinho doce” entre os latinos. E antes de
redundante, soa poético. O beijo na boca, o suavium, tem sua raiz em suavis,
doce, delicioso, agradável.
É por isso que no mundo eslavo recém-casados escutam a cantilena de
“Amargo, amargo!”, para que se beijem como se fosse essa noite a última vez e
tudo seja doçura, ma non sempre.
Notas da tradução:
1 Citado de
Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina,
antologia organizada e traduzida por Raimundo Carvalho, Guilherme Gontijo
Flores, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior e João Angelo de Oliva Neto (Grupo
Autêntica, 2017).
2 Da tradução de Conde de Azevedo e António Feliciano de Castilho,
disponível
aqui.
3 As citações do conto de Tchekhov
são da tradução de Boris Schnaiderman em
O beijo e outras histórias
(Editora 34, 2014).
4 As citações do romance de Kawabata
são da tradução de Meiko Shimon (Estação Liberdade, 2022).
5 José José, cantor e ator
mexicano. A música referida é “Buenos días, amor” e uma tradução livre dos
versos aqui citados é: “Me perdi em teu ventre quanto ainda dormias/ A surpresa
abriu teus olhos e se fez o dia/ Dei um beijo em teus lábios, caso me repreendias”
e “Sei que estavas cansada, mas não dissestes nada/ E quem cala consente...”
6 Raphael, cantor e ator espanhol.
Uma tradução livre dos versos citados aqui, é: “Fecho meus olhos/ para que tu
me queiras livremente.../ para que corram,/ teus dedos por minha pele.../ Eu não
te verei, não te verei,/ podes fazer o que quiseres comigo...”
* Este
texto é a tradução livre de “Como si fuera esta noche la última vez”, publicado
aqui, em Letras Libres.
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