Coleção de areia, de Italo Calvino
Por Alfonso D’Aquino
Italo Calvino. Foto: Emilio Ronchini. |
Borges considerava a leitura uma
das formas da felicidade. Este livro de Calvino confirma essas palavras e
estende seu significado a todas as coisas relacionadas à arte e à escrita: é
uma coleção de leituras e traduções para a linguagem das palavras, ou melhor,
para a linguagem da literatura, de alguns “textos” e fragmentos deste grande
livro sem palavras que os deuses e os homens escreveram ao longo do tempo,
formando com a sua parte a realidade e a cultura da humanidade: a coluna de
Trajano e a árvore de Tule, o espaço ocupado pela cidade de Itália e os seus letreiros
públicos, os jardins japoneses, o fogo zoroastrista... “Leituras visuais do
mundo” Calvino as chama com sua habitual precisão, e não nos resta mais do que
assinalar a sua função celebrativa e ofertante: estes objetos e lugares marcados
e salvos da dispersão pela palavra são novamente entregues ao mundo nessa
coleção por excelência que é um livro, uma coleção, como o próprio mundo,
aberta.
Revelar, decifrar e ordenar alguns
fragmentos dessa linguagem geral — não a confusão das línguas, mas a das linguagens
e das artes — é o que Italo Calvino parece ter se proposto ao escrever estes
artigos. Mas não só isso. A multiplicidade e a transcendência — disse-nos Jacob
Burckhardt — daquilo que uma obra de arte pode preservar e revelar é, ao mesmo tempo,
o que permite a sua conservação e permanência, mesmo que de forma fragmentada,
bem como o que lhe dá a possibilidade de revitalizações posteriores nos casos
em que a obra parece perdida. Há na arte, na sua essência, um caráter anônimo e
indefinido que possibilita a passagem de uma forma artística para outra. Um
artigo de jornal não é uma obra de arte, mas se consegue transmitir à
posteridade um testemunho duradouro de algumas grandes conquistas da humanidade,
e assumir dentro da sua forma mais ou menos restrita o conteúdo dessas obras,
então transcendeu os seus próprios limites passageiros e estreitos e, como
neste caso em que são notáveis a fantasia e a habilidade narrativa e
descritiva do autor, atinge uma importância e um brilho comparáveis aos das
obras a que se refere, pois algo dessa substância imperecível da arte corre por
suas linhas, que para o fervoroso mestre de Basileia é, junto com a poesia,
“uma segunda criação ideal, afastada da temporalidade determinada e concreta em
que surge uma linguagem para todas as nações, terrenalmente imortal”.
Com uma escrita espontânea e por
vezes hesitante, o autor percorre a página de forma semelhante à forma como o
viajante percorre o mundo, e tal como dissemos dele, que transforma a realidade
em ficção, também podemos dizer que tudo o que ele vê ele converte em escrita.
Isso me faz lembrar de repente outro desses livros onde a escrita se confunde
com um caminho: El mono gramático, de Octavio Paz. Vou procurá-lo e abro ao
acaso, página 47: “Hanuman sorri de prazer com a analogia que acaba de lhe
ocorrer: caligrafia e vegetação, bosque e escrita, leitura e caminho.
decifrando um pedaço do mundo. A leitura considerada como um caminho para... O
caminho como leitura: uma interpretação do mundo natural? Ele fecha novamente
os olhos e se vê, em outra época, escrevendo (no papel ou na pedra , com caneta
ou cinzel?) o ato de Mahanātaka descrevendo sua visita ao bosque do palácio de
Ravana." Há na Coleção de Areia algumas páginas admiráveis sobre os
jardins japoneses e sua relação com a poesia japonesa na medida em que ambos
podem transmitir e prolongar "cenas de profunda calma" desde que
intraduzíveis, pois como diz Calvino: "são coisas que quando "se você
tente explicá-los demais, eles falham."
Porém, em outra parte, ao narrar
sua visita à árvore do Tule e à árvore de Jessé na abóbada da igreja de Santo
Domingo, em Oaxaca, Calvino, como seu alter ego fantástico Cosimo Piovasco di
Rondò, o barão das árvores, propõe-se a ler literalmente ambas as árvores e
extrair delas sua mensagem. A segunda leitura, a da árvore barroca, oferece
poucas dificuldades porque o método que segue é semelhante ao da crítica de
arte, com a ressalva de que Calvino, além de refazer e elevar imagens, as
transforma ou torna possível sua transformação através da fantasia; por outro
lado, quando se trata da árvore viva, cuja mensagem é a sua própria
constituição, a sua forma pura, indiferente às diversas linguagens humanas que
tentam apreendê-la de alguma forma para significar a árvore, então cai numa armadilha
de palavras que ele mesmo armou ao tentar aplicar à árvore os esquemas
gramaticais que em outros casos garantem a leitura. Dizer uma árvore é
reduzi-la; tentar traduzir a sua linguagem inefável leva, no máximo, a
verificar que são linguagens incompatíveis. Mas Calvino pensava que “Desde que
a linguagem surgiu no universo, o universo assumiu o modo de ser da linguagem,
e não pode manifestar-se senão seguindo suas regras.” Esse pensamento nos
parece revelador de certa forma de contaminação que podemos chamá-la intelectual
amplamente aceita por todas as partes, tendente a antropomorfizar tudo, sem
atentar para a redução que implica ao fazer isso. É o que acontece, por
exemplo, com a “humanização” imposta pela maioria das pessoas ao comportamento
dos animais e às suas formas extralinguísticas de comunicação. Há coisas que se
dizem por si mesmas; há qualidades que escapam à arte e às palavras, nelas
reside a indiferença das coisas.
Walter Benjamin, numa daquelas
imagens douradas pela memória que são as suas Sombras breves, conta que
esteve debaixo de uma árvore, da qual até se esqueceu a que família pertence, e
de ter testemunhado subitamente, diz ele, o casamento da linguagem com a
árvore, que tem mais a ver com galhos e folhas, sombras e vento, e certamente
com imaginação, do que com palavras. Acredito que o que aconteceu com Calvino, independentemente
de ser “um homem de livros”, é que ele sempre foi muito racionalista, muito
rigoroso até com a imaginação, ele mesmo dizia isso, sempre contido nos limites
da consciência, e da consciência são palavras; por isso não foi poeta; por isso
é tão objetivo e tão formal e alguns de seus artigos podem parecer simples
jogos eruditos, embora sempre apaixonados. Entidades tão abstratas como o ócio
e o acaso estavam em sua obra como essas regiões geográficas desconhecidas na
antiguidade, que em mapas antigos aparecem marcadas com o sinal Hinc
abundant leones ou antropófagos.
A passagem de uma forma artística
para outra, a sua perda de identidade e a emergência da sua substância anônima
e inefável, tão semelhante e tão diferente da natureza, são alguns dos motivos
latentes deste livro, explicados mais claramente nos artigos referentes à
relação entre as artes plásticas — “o grafismo pictórico” — e a escrita.
Calvino, porém, em “Escritores que desenham” é cauteloso e até desconfiado ao
falar dessa relação, digamos natural entre duas artes, pois considera que
fazê-lo só é válido no plano geral, pois se se tentasse estabelecer uma relação
entre o estilo de um escritor e o de seus desenhos “deve no mais das vezes
render-se ao fato de que, para os desenhos, é a ausência de estilo o que salta
aos olhos”. Não obstante, essa falta de estilo é insuficiente para descartar ou
relegar a referida relação. Por acaso essas tentativas de alguns escritores não
manifestam a necessidade de prolongar uma afinidade que era constante? E
precisamente porque num plano geral é um tipo de relação indissolúvel, é independente
do estilo ou da ausência de estimo, mas ainda, é independente de qualquer
autoria que o determine. Por um lado, a palavra escrita requer imprescindivelmente
elementos figurativos: toda escrita é visual, cada letra é uma forma; e por
outro, trata-se de uma relação que não pode circunscrever-se a uns quantos
escritores que tenham desenhado, mas ver-se a escrita e o grafismo pictórico através
do tempo em sua evolução complementar, em que uma arte não substitui
necessariamente a outra, mas prolonga-o ou torna-o transparente, graças ao seu
poder analógico; é a mesma relação que existe, por exemplo, entre um artigo
jornalístico e as fotografias que o acompanham.
Collezione di sabbia é o
título italiano deste livro; sabbia, segundo o dicionário significa “areia,
pó de escrita”. Disse no início destas notas que Calvino, ao descobrir e criar
uma literatura com esses pontos-chave em que as fronteiras são subitamente
apagadas, formava uma figura feita de palavras que é ao mesmo tempo um mapa. É
também um guia fantástico pela Cultura —não apenas por algumas culturas. E como
qualquer livro de viagens, informa-nos tanto sobre o exotismo dos locais
visitados como sobre a capacidade do autor em captar esse exotismo (cf.
Segalen). Contudo, não me propus aqui a seguir os vestígios dessa viagem;
alguém pode tentar e dar como instantâneos que foram cortes transversais
através das circunstâncias externas, a pessoa de Calvino e seu pensamento, as
reflexões, as coincidências... Por que não poderia haver, de certa maneira,
perguntava-se Calvino, uma nova ciência para cada objeto? Uma Mathesis
singularis (e já não universalis)? Da minha parte, limitei-me a
assinalar alguns dos motivos que, em minha opinião, estão na origem desta Coleção
de areia, pois “O fascínio de uma coleção está nesse tanto que revela e
nesse tanto que esconde do impulso secreto que levou a cria-la.” O livro
termina, de forma muito significativa, com um artigo sobre eternos caminhantes
esculpidos em pedra — as múltiplas cenas dos relevos de Persépolis — e uma
tribo de nômades em movimento que o autor encontrou no mesmo dia. Entre as duas
multidões, Calvino hesita, “Num caso e no outro, é da morte que se quer escapar.
Num caso e no outro, é a imutabilidade que se quer alcançar [...] Em ambos os
casos, algo me detém; não encontro o vão em que poderia introduzir-me para
acomodar-me na fila. Só um pensamento me faz sentir à vontade: os tapetes. É na
tessitura dos tapetes que os nômades depositam sua sapiência”. Qual era essa
figura que Calvino procurava e descobria? A da obra e o das obras de arte nas
suas diversas formas. As obras de arte como mapa secreto do que a arte pode
revelar.
______
Coleção de areia
Italo Calvino
Maurício Santana Dias (Trad.)
Companhia das Letras, 2010
Italo Calvino
Maurício Santana Dias (Trad.)
Companhia das Letras, 2010
232 p.
Você pode comprar o livro aqui
Notas da tradução:
1 As citações referentes ao livro de Italo Calvino aqui em leitura são da tradução de Maurício Santana Dias (Companhia das Letras, 2010).
* Este texto é a tradução livre de
“Colección de arena de Italo Calvino” publicado na revista Vuelta em
agosto de 1988.
1 As citações referentes ao livro de Italo Calvino aqui em leitura são da tradução de Maurício Santana Dias (Companhia das Letras, 2010).
Comentários