Por Pedro Fernandes
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Carlos Drummond de Andrade nos anos 1950. |
Um livro pode se prolongar mesmo
depois de concluído. Os casos na literatura são muitos e alguns bem conhecidos,
como o
Livro do desassossego, cujas edições mais recentes não apenas
aparecem remodeladas na organização do seu primeiro conteúdo como alimentadas
de novos textos encontrados pelos pesquisadores no que parece ser o arquivo infinito
de Fernando Pessoa. Este é um desses livros que cada leitor por escrever à sua
própria maneira e os pessoanos são os primeiros a reafirmarem isso toda vez que
se lançam ao trabalho de reivindicar a versão mais apropriada, como se pudessem
também assumir o posto de adivinhos — ou, quem sabe, iluminados para contatos
de terceiro grau — capazes de acessar o que nem foi claro para o seu autor,
outra instância, aliás, problemática: é o poeta português ou o ajudante de guarda-livros
Bernardo Soares?
No Brasil, outro poeta, que não
nos legou uma arca sem fundos, outro poeta que até transitou por uns exercícios
de duplicação mas sem resultar em estados civis próprios, outro poeta situado no
mesmo panteão onde se encontra Fernando Pessoa, outro poeta que não deixou um
livro do desassossego. Deixou, isso sim, um livro em desassossego. No âmbito do
projeto de restauro editorial da sua obra foram aos arquivos desse poeta para
trazerem a público os materiais que talvez servissem para uma nova versão desse
livro cujo motivo de estender fora demonstrado entre a primeira e a segunda
edição. O poeta é Carlos Drummond de Andrade. E o livro,
Viola de bolso.
O livro foi publicado pela
primeira vez no âmbito da coleção Os Cadernos de Cultura, então editada pelo Serviço
de Documentação do Ministério de Educação e Saúde com textos de natureza
variada, mas voltada para o texto ensaístico. A presença de um livro de poesia foi
ideia de Simeão Leal; dessas publicações de governo, muito provavelmente os
nomes que nela saíram possuíam trânsito livre pelo meio ou amigo de alguém nessa
condição. No caso do poeta mineiro, sabemos que nas décadas anteriores à
publicação, ele integra o primeiro grupo: sua presença no serviço público se
aprofunda quando, em 1934, é nomeado para a chefia de gabinete de Gustavo
Capanema, amigo desde os tempos de faculdade e empossado como ministro da Educação
e Saúde Pública, um cargo ocupado por Carlos Drummond de Andrade até os alvores
da crise que significaria o fim do governo e de Getúlio Vargas. Essa primeira
edição reuniu 37 poemas.
Na segunda edição, saída apenas três
anos depois, em 1955, agora pela Livraria José Olympio Editora e com o título
de Viola de bolso novamente encordoada, o autor acrescentou mais 54
novos textos, demonstrando o pendor do poeta para a poesia de circunstância. Saída
graças aos incentivos de José Olympio e Athos Pereira era sóbria e singela como
quase todos os livros publicados no Brasil da época: trazia na capa em cores
brasileiras uma violinha moderna desenhada por Lilyan Schwartzkopf. Embora, se
registre apenas essas duas edições até 2023, o inventário do poeta contabiliza
outras tiragens da publicação de 1955: no mesmo ano, por exemplo, sai 100 exemplares
pela Philobiblion com o acréscimo do “Soneto da buquinagem” já aparecido numa tiragem
íntima por incentivo do mercador de livros Carlos Ribeiro; e em 1967, pela José
Olympio, com o título “Viola de bolso II”, sai em José & Outros; na Poesia
completa organizada por Gilberto de Mendonça Teles para a Nova Aguilar e
saída em 2003, os poemas se designam por Viola de bolso I, II e III.
Embora o livro não tenha permanecido
no esquecimento, nem sempre a edição encordoada é a que prevalece nas outras
tiragens. Pelo menos na Nova reunião com 23 livros do poeta em edição
única de 2015 da Companhia das Letras, o que aí encontramos é livro tal como
fora publicado em 1952, isto é, sem os 91 poemas que passou a carregar em 1955.1
A razão para isso é desconhecida e um bom motivo de pesquisa àqueles interessados
em investigar a história do livro, incluindo suas mudanças e as possíveis motivações
do autor. Um motivo não é, certamente, a especificidade da antologia editada na
José Olympio, afinal, embora não seja informada a quantidade de exemplares
confeccionados, este é um livro até o presente fácil de se encontrar e com preços
módicos entre os livreiros no Brasil. A segunda parte desse argumento não quer
dizer muita coisa, se considerarmos que os mercadores de livros usados, ao
menos os educados pelo modelo virtual, praticam o comportamento de manada e o preço
que entregam nem sempre condiz com o valor devido, agora, o que chama atenção é
a constância dessas primeiras edições no caso de uma obra de um poeta como
Carlos Drummond de Andrade, porque ainda que este seja um livro menor no
conjunto da sua obra, tudo dele, pela raridade, é logo visado pela ambição do
capital.
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Primeira e segunda edição de Viola de Bolso. Acervo particular. |
Tratando-se das edições que se
fazem por acréscimo, o que o livro de 2023, traz de novidade além da leve variante
titular — Viola de bolso mais uma vez encordoada — e da pertença à José
Olympio, selo congregado na casa editorial que se mostra no restante do novo
projeto da obra do poeta mineiro? Esse motivo, resulta fácil, é uma maneira singela
de registro dos estreitamentos assumidos entre Carlos Drummond de Andrade e a editora
do amigo, algo que na conjuntura atual tem um aroma do efeito de mercado — foi o
trunfo utilizado pelo Grupo Record quando passaram a albergar outra vez a obra
de um dos mais importantes poetas de língua portuguesa.
A terceira encordoada traz 25
poemas inéditos e o livro tem, agora, 116 poemas. São textos que o próprio autor
na altura em que preparou as duas edições anteriores preferiu não publicar e
outros textos juntados numa pasta intitulada manuscritamente como “Viola de
bolso (nova)”. Não são rascunhos, nem matérias para poemas gorados; apenas
textos que aparentemente não passaram no crivo do seu autor para se fazerem
públicos. Sabe-se que Carlos Drummond de Andrade foi muito cioso no cultivo do
seu próprio arquivo e, graças a isso, os editores puderam oferecer com esta
edição a contraprova dos materiais agora revelados como Viola de bolso: mais
uma vez encordoada.
A leitura dos poemas dessa pasta
parece antever que esses textos não foram propriamente sobras das duas edições
anteriores e sim algo como um pequeno garimpo de todo escritor ao qual sempre é
possível regressar, revendo, cortando, ampliando; no caso drummondiano, como
quem afina as cordas da viola, para nos valermos do campo semântico aqui
evocado, até encontrar o tom adequado de tornar público os novos sons então
criados. Os textos, em sua grande maioria, datiloscritos, estão prontos — assim
veem as rapinas do dinheiro e os leitores mais desavisados —, mas aos olhos de
um poeta cioso não apenas com seus arquivos, talvez as coisas não fossem bem
assim. Os textos de agora talvez revelem os caminhos que resultaram na
preservação dos poemas de 1952 nas antologias subsequentes, os livros de ampla
circulação entre os leitores. Quer dizer, seriam os poemas da viola
novamente encordoada uma resposta ao apelo editorial tal como as tiragens
especiais e restritas um apelo de amigos?
O que tratam os poemas dessa
antologia agora em expansão, ao que parece, sempre meio à revelia bondosa do
poeta? No texto de orelha de Viola de bolso novamente encordoada encontramos
uma resposta convincente: trata-se de um instrumento menos requintado “capaz de
transmitir-nos adequadamente uma poesia mais íntima, mais perto do coração, do cotidiano
que une as criaturas pelas cordas da estima, uma poesia enfim que é mais
sensibilidade imediata do que inteligência e reflexão interior”. Ora, essa
constatação finda por oferecer alguma justificativa, pela natureza aberta e
receptiva e logo susceptível às expansões que se fizeram ao livro, além da sua
qualidade de antologia.
A esse arquivo é sempre possível
acrescentar aqueles poemas que seguem um curso próprio, meio rebeldes à dicção
original do seu autor mesmo assim incapazes de sua renegação. “Carlos Drummond
de Andrade envereda a seguir por serenas rotas banhadas no calor gerado de
velhos afetos, poesia circunstanciada que o itabirano, virtuosisticamente,
eleva ao nível das suas autênticas possibilidades. [...] já não importa ao
autor desta Viola de bolso qual seja o instrumento a ferir porque todos
afinal não lhe hão de alterar a melodia desatada em sons puros que os ouvidos
recolhem, ou em palavras que os olhos penetram em mergulhos cada vez mais
fundos, mais fundos até nelas se afoguem em compreensão e em total adesão.” Lê-se
ainda no texto acima referido.
Sabe-se da extensa rede de afetos
do poeta que quase nunca deixou de responder quem os procurava com uma carta,
uma dedicatória, um cartão, um pequeno bilhete, um versinho, um poema. Existe
um fio da biografia do autor nomeado por ele mesmo como versos de
circunstância, preservados ao menos em três cadernos nos quais — no mesmo
tratamento criterioso — anotava toda essa sorte de linhas enviadas a
familiares, amigos e figuras públicas. Parte desse material, aliás, foi compilado
pelo também poeta Eucanaã Ferraz numa belíssima edição que preservou a designação
drummondiana para esse ofício de uma literatura dos afetos. Pois bem, é possível
filiar os poemas de sua viola, agora três vezes encordoada, entre
essas produções uma vez prevalecer essa dicção meio encomiástica.
Aqui, entretanto, cabem além dos
poemas dedicados a alguém, os que fez aos desconhecidos, à maneira de registro
de acontecimentos corriqueiros, de ambientes rurais e urbanos, de lugares, de
leituras, de livros, de objetos, de filmes, de outros registros plásticos etc. Um
rico catálogo capaz de ampliar a concepção segundo a qual Carlos Drummond de
Andrade não apenas exercia um ofício de poeta, mas era poeta integral, de uma
vida inteira, uma qualidade que o deixa fora da lista dos burocratas da palavra
porque dotado de um ponto de vista continuamente iluminado pela poesia, sendo
esta, sua lente de ver as coisas. Eucanaã Ferraz nos escreve no referido livro
organizado por ele que: “Na poesia drummondiana, tudo parece animar-se pelo
motor do acontecimento e da memória. Volta à vida até o que se dava por
perdido, estático, morto.” Isso se designa, repetimos, como afeto.
O afeto, tal como vislumbramos,
não é deriva do eu, confundindo-se com o sentimento de afeição, de disposição
por algo ou alguma coisa; também não é o simples exercício de se demonstrar emotivo
ou motivado; o poeta recorre ao sentido raiz da palavra, afficere, fazer
algo, agir sobre, manejar. Isto é, não estamos diante do que atua sobre o eu
mas o que o eu é capaz de afetar, e ao fazê-lo tornar parte sua, imiscuindo-se
por entre o que ele próprio maneja. Assim, as manifestações nesse museu de tudo
são criações pela palavra que mostrando o que designa, revelam as múltiplas
feições do poeta.
A nova edição de
Viola de bolso
se completa ainda com as marcas que Carlos Drummond de Andrade fez nos poemas
já publicados nas duas primeiras publicações; nos inéditos essas marcas
somam-se às de quem datilografou os textos. A oficina do autor se completa com
algum rastro de obsessão que pareceu propiciada pelo título desta antologia;
são textos como “Viola de bolso”, publicado no
Correio da Manhã, no
mesmo ano da segunda edição do livro, uma crônica que, claro, refere-se ao seu
poemário, e “Violinha de bolso”, do
Jornal do Brasil, em 1971, um
conjunto de pequenos poemas que bem poderiam integrar a antologia em destaque
neste texto. Acrescenta ainda dois manuscritos: do já citado “Soneto da
buquinagem”; e do “Soneto inglês” modificado pelo poeta para “A José Olympio”. Bom,
mas crônica carece uma breve atenção aqui.
Escrito com a pena da galhofa,
indissociavelmente drummondiana, a matéria registra o encontro de um cronista
coincidentemente chamado Carlos Drummond de Andrade — apenas se esses termos se
ajustarem às iniciais do autor, claro está, uma vez que C. D. A. pode designar
outra pessoa qualquer ou mesmo um homônimo — com o livro
Viola de bolso,
de Carlos Drummond de Andrade. Partindo desse acaso de identidade — o que
reafirma aquele interesse pelo
ser-outro evidenciado no início dessas
anotações
2 —, C.D.A. explica a razão do livro, a começar pelo
título, como uma resposta em modo de recusa ao tempo em que o silêncio é
usurpado pelo barulho, o som calmo e doce do instrumento de cordas começa a ser
a abafado pelo barulho desordenado do acordeão: “louvei-lhe a discrição; num
momento em que o pesado acordeão é a doença musical das famílias, e há
congressos e campeonatos de acordeão, ele se contenta com um instrumento de
algibeira, que mal não fará aos ouvidos de ninguém.”
Ora, essa observação visa reparar
o valor da poesia de nos reconduzir sempre para um tempo fora dos domínios
vigentes, nesse caso, o da delicadeza, em oposição ao aviltante, ao grosseiro.
Como essa viola ainda é o instrumento de espantosa valia para o tempo em curso,
quando a audição é o mais prejudicado dos sentidos! O cronista xará aponta àquela
qualidade que observamos alguns parágrafos antes: a
função dos afetos,
não sem o tom derrisório acerca desse tempo massificado, afinal tudo, no novo
livro é seccionado como nos “magazins” — “seção de amizades, de complicações
íntimas, boas-festas, dedicatórias etc.” O gesto, entretanto, é por boa causa:
talvez, assim, “industrializemos” a prática outrora cultivada por outros, “como
fazia Mallarmé e fazem Alfonso Reys e Bandeira”. O autor se prolonga cobrando a
nossa falta de fluência com a poesia numa época de império de prosa: “Não é bem
um ‘secretario poético’, mas sugere: mandem versinhos a seus afetos e relações.
Gostoso, simples, e andamos precisados de coração, já que não temos, nem
teremos nunca, juízo.”
A desautomatização da poesia e sua
intervenção no mundo da técnica são uma das marcas essenciais do poema
drummondiano, sempre utilizando-se, como jogo, dos mesmos recursos que nos desumanizam,
fazendo-nos coisas entre coisas. Ou seja, os poemas de
Viola de bolso se
passam à margem da grande poesia do poeta mineiro não são estrangeiros. É poesia
feita da mesma leveza de quem precisou se desfazer do peso ferino do seu tempo;
é, por fim, feita de certo peso do qual nenhum poeta, numa realidade cada vez
mais sombria, é capaz de escapar. E isso observa o cronista ao destacar do
livro não as “brincadeiras”, não o “divertissement”, mas um poema dolorido. O
que a terceira edição desse livro ainda nos revela é nada falta ou sobra no
universo desse poeta: a mínima aresta é logo integrada ao sistema de
significação da sua poesia. Coisa de cioso do seu ofício, repetimos, e tão
raros agora como escassos são o silêncio e a viola.
______
Viola de bolso: mais uma vez encordoada
Carlos Drummond de Andrade
José Olympio, 2023
280 p.
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Notas
1 O projeto
Reunião inicia
em 1969 numa edição prefaciada por Antônio Houaiss; em 1983 sai como
Nova
reunião, título adotado até agora. A edição aqui referida é a organizada pelos netos
Luis Mauricio e Pedro Graña Drummond.
2 Comentei um pouco sobre isso no
texto “Carlos Drummond de Andrade e as tentativas de ser outro”, publicado
aqui
no
Letras em 2019.
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