Por Pedro Fernandes
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Juan Pablo Villalobos. Foto: Jonathan Saldaña |
Foi em 2015 que
Submissão,
de Michel Houellebecq arrastou o escritor francês para uma dessas encruzilhadas
armadas, sabemos, por um público renovadamente intolerante ao discurso
literário; entre as acusações pesou a de islamofobia devido a narrativa,
recuperando a teoria da grande substituição, antevia a tomada da França por um
poder centrado na lei islâmica. Quase uma década mais tarde, é possível pinçar
o tema em
A invasão do povo do espírito, de Juan Pablo Villalobos.
O caso é atenuado porque ao realismo futurista de Houellebecq, o escritor
mexicano propõe um futurismo realista e a substituição, nesse caso, do
americano pelo oriental aparece diluída no interior de uma trama feita de
teoria da conspiração, especulação científica, o seu já conhecido fino humor e
contada pela perspectiva de um protagonista extremamente higienizado, como se
desenhado pela enjoativa cartilha do tipo politicamente correto desses capaz de
gerir a vida animal como extensão da vida humana ou que ao remédio industrializado
prefere o natural.
Mas, não sabemos em quais linhas
podemos enquadrar essa figura batizada de Gastón, um nome próprio fidedigno às
suas várias nuances de significação — se francesa, nobre; se germânica, o
hóspede, receptivo, franco, conciliador. Isso porque, embora sua natureza reafirme
determinadas feições do certinho, seu papel escapole aos limites dos que iguais
a ele se acreditam ser, figurando muitas vezes como uma caricatura desse tipo. O
homem interessado na vida natural e capaz de zelar pelo saneamento do
sofrimento do seu cão Gato se demonstra insensível aos apelos de uma família
que julga capitalista e interesseira, para citar um exemplo; ainda que essas
duas dimensões não pertençam ao mesmo conjunto, porque uma diz respeito a um
modo de estar no mundo e a outra a uma escolha individual, elas se contradizem quando
alinhadas ao vislumbrado modelo de irmanação entre os diferentes. E lemos isso
que pode muito bem ser resumido apenas como uma das qualidades universais do humano
como matéria para, pelo menos, uma dupla condição dessa personagem, porque o peculiar
narrador de Juan Pablo Villalobos em algum momento evidencia a impossibilidade
de uma narrativa asséptica como quer os falsários da leitura sensível.
O narrador de
A invasão…
muito recorda o modelo oferecido por romances como
Se um viajante numa noite
de inverno, de Italo Calvino. Descrevendo-se como autorizado a contar o que
conta apenas pelo ponto vista exterior e interior de Gastón, colocando-se no
presente da narração e por vezes simulando a consciência do leitor do livro,
guiando-o inclusive a aceitar que o fio aí desenvolvido pertence unicamente ao
plano da narrativa, incluindo-se entre toda a parafernália usual nesse tipo
textual, a alternativa de Villalobos amplia seu tratamento experimental com o
romance como notamos desde títulos como
Festa no covil e
Ninguém
precisa acreditar em mim, para citar outras duas das suas excelentes obras.
Tal modelo também se situa como parte do jogo evidenciado acima, da
indecibilidade do protagonista, uma vez querer atender e simultaneamente
reeducar os tais sentidos sensíveis agora incapazes de distinguir autor e
narrador. Nas duas composições, da personagem principal e da voz narradora,
observamos um escritor arguto capaz de realizar literatura com os escassos
recursos da fria era que habitamos, sem endossar, modelos e perspectivas.
No mais, essa voz narrativa
coletivizada na primeira pessoa do plural, conjugando as instâncias do narrador
e do leitor, é parte indissociável do mistério do narrado: afinal, e se os extraterrestres
fôssemos nós, se nós fôssemos apenas criaturas de uma experiência de um modelo
mais avançado de criador? A inversão da lente, desarticulando-nos de uma
posição centralizadora colocada pelo próprio homem desde o advento da razão,
nota-se, expande a teoria da substituição, desfazendo-se de sua raiz xenofóbica
advinda da herança maldita dos nacionalismos e colocando como uma força imaterial,
parte indubitável na mobilidade das tectônicas civilizacionais.
A teoria motriz nesse romance é
riquíssima porque seu transfundo encontra base simultaneamente no pensamento científico,
em certo imaginário fabular e nas muitas linhas da conspiração distendidas pela
web, a dimensão agora inseparável da vida comum pelas extensões alcançadas
nos aparatos tecnológicos. Como vivemos agora, no mundo de A invasão do povo
do espírito, a existência de todos aparece articulada pelos fios invisíveis
que se materializam nas trocas verbais ou visuais numa tela de smartphone, isto
é, os espíritos que nos observam não estariam exatamente agora agindo por você
que lê este texto, decidindo que você saia à cata do livro do escritor mexicano
tratado neste texto, substituindo ou fazendo-se suas faculdades humanas?
A paranoia deixou, pelo menos em
parte, de ser um tempo alheio ao que nos acostumamos designar como realidade
para ser nossa própria realidade. E é por isso que adotando o tema da
substituição atado ao da vida extraterrestre mas transmudando o extra em
intra, o estrangeiro não como o alheio mas como o familiar, que Juan
Pablo Villalobos consegue um romance a um só tempo uma história comum e um
delírio capaz de nos confrontar com as múltiplas imagens desse Narciso preso
numa redoma de espelhos. A vida tornada grande simulacro parece ser a máxima consequência
da ascensão do indivíduo egocêntrico.
Não à toa, as personagens que
transitam pela narrativa desse romance encontram-se, cada uma ao seu modo,
presas de suas próprias obsessões mas integralmente, ou em vias da, solidão
mais profunda. Gastón apega-se ao trabalho como lavrador, às suas crenças na vida
primitiva, natural, ao cão de estima Gato e ao Max, enquanto tudo isso corre o
risco de deixar de existir entregando-o para a solidão absoluta como a que vive
o amigo, traído, à espera da confirmação do fim da vida que levava como parte
num bar cuja propriedade foi vendida às suas costas atendendo a imensa especulação
imobiliária em que os orientais são os novos proprietários de tudo; Pol, o
filho de Max, parte num projeto científico de fachada que visa esconder do
restante do mundo a descoberta de que os extraterrestres somos nós e por isso o
fugitivo com um segredo quase mortal; o pai de Max, um foragido da justiça
acusado de corrupção; Yu com sua família acuados com a crescente xenofobia no
estrangeiro onde vive e trabalha; mesmo a adormecedora, uma charlatã que se
apropria do interesse de gente como Gastón, interessado em oferecer uma morte
digna para o animal de estima, logo se reconhece no lavrador pela mesma
condição de solitária nesse mundo em desencanto.
É com os rebotalhos dessas vidas
ou essas vidas em rebotalhos, assinaladas pelo dessentido, que o romance Juan
Pablo Villalobos arma o que poderíamos designar como uma comunidade centrada na
diferença e gerenciada por Gastón. Suas qualidades servem ao modelo: aquele que
recusou a unidade familiar porque era uma comunidade centrada na inveja, na
usura, na intriga adjacente dos interesses financeiros; o da vida primitiva,
como evidenciamos; e de atitudes nobres como o estabelecimento de uma rede
familiar baseada na ajuda mútua, como notamos no seu esforço por encontrar uma
alternativa capaz de recompor a propriedade de trabalho do amigo; e, sem o
bairrismo, imperativo que parece assomar uma parte essencial de onde mora, encontra
nos seus estrangeiros o que não encontra em muitos dos seus semelhantes, a
confraternização possível.
Assim, A invasão do povo do
espírito repete o tema de Michel Houellebecq, mas ao invés de dirigir a
ideia de substituição como uma qualidade negativa, de degradação dos povos, aposta
— se é que um romance se interesse para tanto — na multiplicidade cultural,
chamemos assim, como alternativa necessária à existência; nossos pares, notamos
aqui na relação pais e filhos da família de Max, sempre são problemáticos e é
no alheio que podemos encontrar algum repouso ou sentido. Assim, talvez a
invasão não seja apenas inevitável mas necessária como matéria de continuidade
da vida.
Ligações a esta post:
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A invasão do povo do espírito
Juan Pablo Villalobos
Sérgio Molina (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
224p.
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