Por Sérgio Linard
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Milan Kundera. Foto: Václav Chochola |
A vida é repleta de imprecisões e
de incertezas que fazem com que levemos um bom tempo dela buscando criar algum
tipo de constância e/ ou de rigidez para um material que — tardamos a perceber —
é naturalmente maleável. Diuturnamente, escolhas precisam ser feitas e suas
devidas consequências acabam por ganhar aspectos que julgamos positivos e/ ou
negativos, como se todo o ser fosse somente uma disputa constante entre esses
dois polos.
Dentro dessa disputa entre o ser
bom e o ser ruim, o ser leve o ser pesado, o ser fácil e o ser difícil,
rachaduras imaginárias vão se consolidando e separando aquilo que moral e
socialmente elencamos como inadequado ou adequado e assim o fazemos de forma
repetida e constante. A bem da verdade, tem-se o fato de que nunca saberemos
como teria sido algo “se” fizéssemos de maneira distinta ou por caminhos
diferentes, tudo o fora disso é simples especulação. Para nossa sorte, porém,
temos a obra de arte com a potencialidade de ficcionalizar algumas mudanças
conforme escolhas vistas em perspectivas diferentes.
Grosso modo, a ideia de
Eterno
Retorno, de Nietzsche, defende que tudo o que está acontecendo agora
tenderá a se repetir de forma constante, salvo o caso de uma interrupção para
reavaliação dos valores estabelecidos, tendo-se, novamente, um eterno retorno
até que haja nova interrupção. Neste texto, não pretendo deter-me muito em
questões filosóficas, mas falar, pelo menos de forma situacional, sobre a ideia
nietzscheana supracitada é indispensável para um devido aprofundamento no
romance a ser aqui debatido.
A insustentável leveza do ser,
do tcheco-francês Milan Kundera, tem seu início justamente convocando o leitor
para essa reflexão inicial sobre as ideias do filósofo alemão. Este
romance-filosófico-histórico está dividido em sete partes e cada uma das partes
possui capítulos internos, sempre curtos, contendo, os maiores, não mais do que
cinco páginas. Aqueles que ainda não têm contato com textos filosóficos ou se
assustam somente com a ideia de precisar ter contato com eles não precisam
assustar-se com esta possibilidade, pois, há de se considerar que essa divisão
de pequenos capítulos é muito pertinente para a densidade dos conteúdos neles
tratados, de modo que a leitura é fluida para quaisquer níveis.
O narrador em terceira pessoa não
perde a oportunidade de demonstrar sua erudição, com o mérito (alguns podem
julgar como demérito, paciência) de não se fazer pedante em momento algum. As
histórias de Tomas, Sabina, Tereza, Franz, Kariênin e outros personagens
secundários vão sendo contadas e percebidas a partir de distintos aparatos
filosóficos, sem que, para isso, o leitor seja levado a uma confusão
interpretativa, bastante comum em textos dessa monta.
Assim como na vida, a narrativa vai
encaminhando as histórias para que se perceba a possibilidade das escolhas
feitas, alternando-se, porém, as perspectivas das consequências geradas por
essas mesmas escolhas. O romance trata de percepções que se confrontam e
constroem, na contradição e na incompletude, o todo:
“Marie-Claude sorriu: ‘o amor é um
combate. Vou lutar por muito tempo. Até o fim’.
‘O amor é um combate? Não tenho a
menor vontade de lutar’, disse Franz, e saiu.
Talvez, possamos cair no erro
comum de mui rapidamente julgar a fala de um ou de outro personagem acima,
pensando ser uma certa e outra errada, excluindo aquela que for contrária à
nossa escolha. Mas quando nos propomos a pensar de forma um pouco mais
aprofundada, podemos fugir desta escolha em que um seja bom e o outro mau. O
que se tem em jogo aqui são perspectivas distintas sobre um mesmo objeto e,
retomando a ideia do
eterno retorno — perseguida por todo o romance — não
há uma obrigatoriedade de se elencarem como boas ou más invariavelmente... As
consequências da interrupção é que poderão passar por esse tipo de escrutínio.
Este romance, responsável por
ascender Kundera a um reconhecimento universal, ocupa-se de narrar alguns
mesmos acontecimentos, com olhares distintos, mas sempre com o mesmo narrador.
Este condutor da história, por exemplo, inicia cada uma das sete partes do
livro com conhecimentos vários sobre linguagens, filosofia, espiritualidade e
outros aspectos da cultura humana. Aquilo que, inicialmente, pode parecer
desproposital no texto, dilui-se em cada um dos capítulos subsequentes,
chegando até o final da obra, materializando, na superfície textual, aquilo que
já foi anunciado desde o começo do texto:
“pensar que um dia tudo vai se
repetir como foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir
indefinidamente!”
Com isso em vista, não percebemos,
durante todo o processo do viver, como as coisas se nos apresentam. Tudo nos
parece eterno; não se há ideia de fugacidade, nem mesmo da vida. Mas o romance
parece se construir justamente para apontar o contrário. Ora, se tudo aquilo
que hoje acontece acontecerá novamente, a preocupação deveria ser mínima, pois,
novamente acontecerá. A vida seria, deste modo, leve. Essa leveza, contudo, é
insustentável, especialmente porque, ao sabermos que cada um de nossos gestos
carrega uma responsabilidade para todo o sempre, por mais leve que seja o
gesto, ele pesa. É com esse jogo de pesos que o livro se constrói. Seja para
apontar o peso de uma ditadura ou a leveza de um amor compartilhado, as
personas são sempre percebidas como incapazes de mudar o presente porque para
isso precisariam modificar o que foi, atividade impossível para qualquer ser
humano.
O narrador, com sua erudição já
apontada, aponta as traições de Tomas, a fidelidade instransponível de Tereza,
assim como de Franz e de Sabina (não respectivamente), para, em seguida, abrir
uma seção do livro em que, a partir da história das personagens, conduzirá
reflexões sobre o significado de trair e de ser fiel. A nossa sorte enquanto
leitor está justamente aí: a visão panorâmica sobre o todo, permitindo-nos
perceber os distintos desdobramentos das perspectivas que cada um adota para
si. Tereza custa a perceber que sua invariabilidade é um aprisionamento. Tomas
rapidamente constata que sua liberdade o prende na obrigação do ser bon-vivant
e de manter esse posicionamento. O que é leve pesa. O que pesa é insustentável.
Em A insustentável leveza do
ser, o que se lê são os confrontos e as acomodações das possíveis
percepções sobre um mesmo objeto. Ao contrário daquilo que comumente pensamos,
o romance não está ocupado em mostrar como a vida é feita de certo e de errado,
ele se posiciona em demonstrar uma percepção a partir de várias outras
percepções para que se tenha cada um a sua, entendendo-se que as adequações do eterno
retorno são necessárias para a convivência com os ciclos. Tomas vê em seu
filho, Simon (nome de mesmo personagem em outros romances de Kundera) a
repetição de gestos, de manias e de posicionamentos, o que leva o narrador a
recorrer a Freud. Isso, porém, acaba por servir como uma reflexão para aquela
figura paterna que, agora em posição de visão privilegiada, compreende a
necessidade de que mudanças sejam empreendidas para que os mesmos erros não se
repitam. Contudo, ele, o pai, consegue observar isso. Conseguiria o filho?
Percepções.
Kariênin, a pequena cadelinha que
recebeu um nome “masculino” em homenagem a Anna Kariênina, de Tolstói,
diferentemente do homem, vive em plena paz porque a encontra na repetição
diária que envolve acordar, ir à padaria com sua tutora, correr para disputar
com Tomas um croissant, comê-lo rapidamente, dormir e reiniciar todo o ciclo. Para
os animais, fala o narrador, essa repetição é a própria vida em sua mais pura
normalidade e continuidade. Para nós, porém, é o nosso drama diário e:
“O drama de uma vida sempre pode
ser explicado pela metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo nos ombros.
Carregamos esse fardo, suportamos ou não, lutamos com ele, perdemos ou
ganhamos. [...] Seu drama não era o drama do peso, mas da leveza. O que se
abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.”
Aqui, permitam-me concordar com
Nietzsche, vemos como o romance se apropria pertinentemente daquilo que é a
consistência e a vulnerabilidade humana: o tempo. Esse elemento da vida faz com
encontremos em sua reta a maior das impossibilidades do homem que é a de
modificar aquilo que já foi; tal impotência, por seu turno, pode levar-nos a
pensar e a querer viver cada instante como eterno, levantando a possibilidade
de que a repetição não seja algo ruim, mas, pelo contrário, seja uma forma de redenção
de nossa inabilidade em busca de uma vida plena, normalizando este eterno
retornar.
O romance é sobre perspectivas, sobre
repetições, sobre ciclos. Sobre o tempo. Algo que parece leve, mas é insustentável.
É além-do-homem. A insustentável leveza do ser, obra de leitura
indispensável, revela-nos que a vida plena passa pela necessidade do
reconhecimento de que nossas incapacidades nos humanizam, mesmo diante de um
desumano tempo que já foi.
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A insustentável leveza do ser
Milan Kundera
Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca (Trad.)
Companhia das Letras, 2017
344p.
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