A identidade quando a memória se esvai: Fechar os olhos, de Víctor Erice

 Por Ione Monje Martínez




 
Um detetive solitário se apresenta na mansão de um rico e triste velho que precisa de algo antes de morrer. O cinismo do detetive, a cigarreira, seu passado sombrio mas moralista... Existe tudo o que precisa existir em um filme noir. Embora este não o seja, porque quando Julio Arenas, personagem interpretado por José Coronado, sai, ouvimos uma voz que nos é familiar, a do próprio Víctor Erice, que nos diz que estas imagens não pertencem à realidade da ficção, mas a outra ficção dentro dela, já que fazem parte das últimas sequências filmadas por Arenas antes de desaparecerem naquela mesma noite para não voltarem novamente por décadas.
 
Essa trapaça cinematográfica dá uma guinada interessante no primeiro ato. Mudamos o tempo para um mais próximo da realidade, embora não tão próximo. Erice decide nos colocar temporariamente com um episódio que é ao mesmo tempo engraçado e constrangedor para o espectador espanhol e que logo reconhecerá ao assisti-lo. Este é um dos vários chistes encontrados no filme. Erice em 2023, tal como fez durante a ainda ditadura em 1973, posiciona-se claramente na política com este fragmento documental que todos reconhecem.
 
Durante o presente narrativo acompanhamos Miguel Garay (interpretado por Manolo Solo). Ele é o diretor da sequência de abertura, que agora se tornou um desconhecido. Ele se encontra com o apresentador de um programa de mistério sensacionalista. Precisa de dinheiro e por isso aceita falar sobre o desaparecimento do seu amigo, Julio Arenas.
 
Este é um dos pontos mais interessantes, porque é possível estabelecer claramente algumas ligações entre o diretor do filme e o diretor que aparece no filme. Miguel Garay e Víctor Erice fizeram (provavelmente) menos filmes do que gostariam. Além disso, o filme que Garay está rodando quando seu amigo desaparece é uma clara referência a El embrujo de Shanghai, filme para o qual Erice escreveu um roteiro e queria filmar, mas não conseguiu. Além disso, com todos os efeitos, a sequência de abertura de Fechar os olhos fala do gesto da sua ex-amante, citando claramente O expresso de Xangai (1932), de Josef von Sternberg, filme cuja cinematografia fascina o próprio Erice.
 
A melhor sequência é aquela que pertence à imaginação de Miguel Garay. Tal como a cena mais emblemática de El sur, é constituída por uma memória impossível da protagonista, a do pai com o pêndulo ao lado da mãe grávida. Neste caso, a melhor sequência pertence a uma construção ficcional que o diretor Miguel Garay faz das possivelmente últimas horas de Julio Arenas antes do seu desaparecimento. Ele imagina que o amigo foi para longe, para ficar sozinho, estacionou o carro perto do litoral. Tirou os sapatos, porque gosta de andar descalço, e deixou que a chuva entrasse e inundasse os seus sapatos... Esta sequência está repleta dos planos que o público esperava ver no último filme do diretor espanhol. Porém, é enquadrado em uma sequência que não avança a trama, em um encontro entre um personagem do passado do protagonista e o desaparecido que, após o reencontro, permanece no passado.
 
A história avança novamente quando o apresentador do programa liga para Garay porque recebeu a notícia do paradeiro de Julio Arenas: uma assistente social, interpretada por María León, diz que o reconhece entre seus moradores, embora agora o conheçam como Gardel.
 
Garay viaja para a residência das freiras e se reencontra com seu amigo, embora não seja mais ele. E este filme também fala sobre velhice e identidade. Parece um filme testamentário, como Madadayo (1993), de Akira Kurosawa, ou Fedora (1978), de Billy Wilder.
 
O filme nos pergunta quem somos através do personagem José Coronado. Porque quando alguém não tem mais lembranças, ainda é o mesmo? É muito interessante como Julio ainda tem algumas das características que o tornaram quem ele era em sua vida, mas isso não basta, porque não é ele. Ele não tem mais memórias.
 
José Coronado oferece uma de suas melhores atuações nesta segunda parte. Um velho e confuso, mas natural e até feliz. No entanto, isso contrasta com outras interpretações, talvez mais à distância, como a da diretora de Mia mãe (2015), de Nanni Moretti, que sempre pede aos seus atores que os vejam ao lado de seus personagens. Mas talvez isso não sirva tanto à história quanto à interpretação de Coronado.
 
Miguel Garay acredita que pode recuperar o amigo se conseguir tirá-lo da confusão, se conseguir mostrar-lhe que aquilo que acredita que o identifica, aquela peça de xadrez e aquela foto, não pertencem à sua vida, mas sim à de um de seus personagens. É por isso que ele organiza uma projeção para quebrar a maldição. Mas isso não nos dá uma resposta.
 
A coisa mais próxima de uma resposta está no pôster. A mão que acaricia o rosto da garota que interpreta Judith. Mas quem toca o rosto? Parece que é Miguel Garay, talvez dizendo adeus ao seu filme inacabado. Dizendo adeus às suas memórias e ao que não pôde ser.
 
Esta não resolução pode fazer parte do fato de a própria vida não ter uma resposta, não sabemos o que acontece quando morremos. Assim, Erice também quer fazer um símile da mesma falta de resposta da nossa existência em seu filme.
 
Um dos elementos mais interessantes do filme é que o velho confuso só tem quatro ou cinco pertences, sendo que dois são do filme que estava sendo rodado quando ele desapareceu. O rei de um tabuleiro de xadrez e a foto da garota que o detetive deveria procurar. Assim, a pouca identidade que resta a Gardel faz parte da ficção.
 
Esta é mais uma constante de Erice na sua filmografia. A relação entre o Frankenstein da ficção, que é real para a menina de O espírito da colmeia, e o nome artístico de Irene Ríos, Laura, que é o verdadeiro amor do pai do protagonista de El sur.
 
Erice introduz o elemento da ficção em seus filmes, mas com algo mais. Em todos eles, os filmes contam com algum tratamento médico, de cura. Ou seja, em todos eles tenta-se remediar a relação mal sucedida ou tumultuada entre pais e filhos através do cinema. Novamente, em O espírito da colmeia existe um monstro parecido com Frankenstein, que é o amor que a mãe perdeu e que a deixa infeliz. Em El sur, o pai reencontra seu verdadeiro amor coberto pelo nome de um artista, que é, de alguma forma, também um personagem fictício que também interpreta um personagem. Aqui, o personagem José Coronado perdeu a identidade por quase não ter lembranças, mas as poucas que tem são do seu personagem fictício. No último filme, as fronteiras entre ficção e realidade desapareceram completamente.
 
Além do estrutural, em termos de formalidade do filme, as sequências são divididas por fades que as transformam em “cartões postais”. Ou seja, cada pedaço de filme começa e termina com um fade to black. Esta forma acompanha a maneira como Erice vive as histórias. Ele transforma o filme em fotos ou cartões postais, daqueles que sempre aparecem e fazem parte do seu universo único.
 
Este é o ponto forte formal de Fechar os olhos. O que era esperado. Talvez a sua composição, a composição dos seus planos e a montagem não fossem tão esperadas. Sente-se que estes elementos são os que mais se diferenciam dos seus trabalhos anteriores. Que não fazem parte de uma evolução artística, mas pelo contrário, rompem com uma congruência narrativa de planejamento e montagem que outros filmes sem dúvida tiveram.
 
Também é simpático o gesto que Erice tem com os seus seguidores, com quem acompanhou a sua carreira e sabe que o filme que ele sempre quis fazer foi El embrujo de Shanghai e que é o filme que Miguel Garay estava a fazendo. Ou talvez mais do que uma piscadela, seja uma justificativa do filme que nunca o deixaram fazer. 


* Este texto é a tradução livre de “La identidad cuando los recuerdos se desvanecen: ‘Cerrar los ojos’, de Víctor Erice”, publicado aqui em Jot Down.

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