Viena, Paris e Grécia: algumas horas caminhando com Jesse e Céline

Por Andrea Calamari





Uma melodia doce e barroca na tela escura: Ethan Hawke, Julie Delpy. É a abertura de Dido e Enéias, de Henry Purcell, e os violinos entram urgentes com a imagem das avenidas, o som da máquina acrescenta intensidade. De dentro avista-se o verde do campo, as casas isoladas, as árvores de verão, uma ponte, o rio azul, até que os últimos acordes nos deixam dentro do trem. Vamos ver uma história. Paris
 
Em O sentido de um fim, Frank Kermode diz que as pessoas, assim como a poesia, rapidamente param a meio do caminho: in medias res. Para que tudo, ou pelo menos alguma coisa, faça sentido, precisamos de uma ordenação temporal, de um antes e depois, de correlações fictícias com as origens e os fins. E para isso servimo-nos da narrativa. A vida flui sem pausas ou interrupções, nunca começa nem termina, é um amálgama de histórias que se cruzam. A vida não se importa com personagens, a ficção sim. É o simulacro narrativo que dá ordem e, portanto, sentido a essa desordem da realidade através da organização temporal de começo e fim, de causa e efeito.
 
O encontro de dois personagens num trem que atravessa a Europa é o início de algo que continuará vivo: voltamos a encontrar os personagens nove anos depois em Paris e, depois de mais nove, na Grécia. O que teria acontecido com suas vidas? Entusiasmamo-nos tanto com as regularidades temporais de Richard Linklater que esperamos mais nove anos, mas 2022 passou por nós e não tivemos notícias deles. O jogo e a ordenação temporal de Antes do amanhecer, Antes do pôr do sol e Antes da meia-noite são claros. Repetem-se como uma fórmula: um filme a cada nove anos, algumas horas para acompanhar os personagens, que se transformam entre um e outro — os atores também. A estrutura ticking clock organiza a narrativa de cada filme e da trilogia: os espectadores têm uma efêmera janela temporária para ver os protagonistas até que ela se feche novamente.
 
A sensação de estar no meio das coisas não envolve apenas o tempo, mas também o espaço. A experiência de estar no mundo e com os outros é uma navegação constante, procuramos não nos sentir à deriva e para isso utilizamos qualquer tipo de coordenada — real ou fictícia — que nos permita encontrar a nossa direção. No final das contas nada mais é do que nos orientar e nos permita encontrar sentido pata os nossos movimentos. É por isso que necessitamos de certos ajustes geográficos, de correlações fictícias entre aqui e lá, dentro e fora, perto e longe. Nós nos orientamos no espaço e assim colocamos ordem em meio ao caos.
 
Linklater traça a cartografia das cidades onde os protagonistas se encontram, podemos vê-la e fazer cada percurso com eles. No começo existe um trem europeu e dois personagens. Ela é francesa, ele é estadunidense. São jovens, olham-se, procuram-se, falam das fantasias, dos projetos, dos empregos possíveis e desejados, falam da passagem do tempo, da infância e da morte. Descem na estação de uma cidade que poderia ser — quase — qualquer lugar. Passarão juntos as horas restantes até o amanhecer. A câmera os segue. São os últimos anos do século e o filme é filho do seu tempo. Em 1995, o cinema indie está em alta e Richard Linklater tem um orçamento baixíssimo: dois personagens, um roteiro, uma montagem comum.
 
Calvino queria tirar peso da sua escrita porque sabia que as coisas, e não apenas as palavras, são leves. Seu livro mais leve é, talvez, As cidades invisíveis. As cidades que imaginou não são uniformes e intercambiáveis, têm identidade e são pessoais — têm nomes femininos — não são susceptíveis de serem analisadas com a razão, respondem à lógica da paixão e das ilusões. Atrás da superfície das ruas, praças e edifícios estão os intercâmbios. “As cidades são um conjunto de muitas coisas: memórias, desejos, signos de uma linguagem; são lugares de trocas, e essas não são apenas de bens, mas também de palavras, de desejos, de memórias.
 
Viena
 
“Acho que isso é Viena”, diz ela.
“Vamos visitar a cidade”, diz ele.
 
A paleta de cores acompanha as oscilações do sol e da noite, Viena dá tom e textura à narrativa, a fotografia repousa na cidade. O primeiro filme possui a forma da deambulação e da errância, Jesse e Céline são flâneurs. O que há para ver?, se perguntam. Talvez monumentos, museus, exposições. Têm um pequeno guia que não utilizam, deixam-se levar por uma cidade fora do tempo: a Viena de Antes do amanhecer poderia muito bem ser aquela que Stefan Zweig retratou em O mundo de ontem: vasta, aberta, universal, a cidade das artes, da ciência, dos cafés literários, centro nevrálgico da Mitteleuropa que se espalha além das fronteiras como o Danúbio. A Europa nunca foi mais rica, nem mais bonita, nem mais forte, nem mais livre: “viver aqui era maravilhoso”, diz Zweig, e os intemporais viandantes de Linklater parecem sentir isso. Sobem e descem do bonde, não há direção nem itinerário, não há mapa: uma ponte, a roda gigante, uma igreja, um pequeno cemitério de mortos anônimos, um café, os palácios e monumentos de pano de fundo. Eles em primeiro plano. Viena é a desculpa para passar essas horas juntos. Vemos seus olhares e gestos, procurando-se e encontrando-se, enquanto transcorre a cidade nos seus entornos. Eles não estão sozinhos, falta um pouco para isso. No primeiro capítulo da trilogia, os protagonistas se deparam com pequenos personagens singulares como se quisessem fazer andar as coisas: os atores que fazem o papel de vaca, a mulher que lê o futuro nas mãos, o homem à beira do rio que pede palavras e devolve um poema.
 
Não há música incidental para direcionar e sublinhar emoções, apenas o que emerge de sua jornada quando compartilham um disco na cabine, dançam numa feira, param na frente de uma dançarina, entram numa boate. A trilha sonora é a da cidade, com as suas vozes indiferenciadas, as muitas línguas, os sons da rua, o trânsito tênue, as ruas desertas. Eles são o homem — e a mulher — da multidão no conto de Poe.
 
Um acordeom e um violino passam pela mesa, mas eles não conseguem prestar atenção neles, falam pela primeira vez sobre o futuro imediato.
 
— É nossa única noite?
— É a única maneira, não?
 
A noite no parque traz silêncio, o amanhecer e os pássaros, um homem de outra época pratica seu cravo, eles dançam na rua. Ele lembra da voz de Dylan Thomas: “Os anos passarão como coelhos”; ela escuta, e então a narrativa volta a deixá-los na estação de trem. É 16 de junho, como aquele dia que retratou os périplos de Leopold Bloom por outra cidade europeia, e eles dizem que daqui a seis meses se encontrarão novamente.
 
Outra vez o som do cravo. A câmera leva-nos por cada um dos lugares onde estiveram, a cidade começa a despertar, algumas coisas começam a se colocar em marcha e outros espaços estão vazios; uma velhinha atravessa o parque sem perceber a garrafa e os copos que ficaram no gramado. Caso não tenhamos notado no percurso, Linklater revisa sua cartografia.
 
Paris
 
Antes do pôr do sol tem oitenta minutos de duração. É o tempo que os personagens terão que ficar juntos, mas primeiro vem Paris. Ao som de um violão e da voz de Julie Delpy vemos instantâneos lentos da cidade, dos lugares por onde os protagonistas caminharão um pouco mais tarde. O filme começa com o local vazio do ponto de chegada da narrativa — a casa parisiense de Céline — e refaz sua jornada até chegar ao ponto de encontro, embora não possamos dizer que a história começa naquela cena da livraria.
 
Ele está ali falando sobre seu livro e, quando a câmera foca nela, sabemos que eles não se veem desde aquele 16 de junho em Viena. Jesse está terminando sua turnê europeia do livro que escreveu sobre aquela noite juntos. A última parada é na capital francesa e o espaço não é qualquer lugar. Shakespeare & Co é invenção de Sylvia Beach, muito mais que uma livraria, é a localização geográfica e simbólica de um espírito, o que reinava quando Paris era festa. Se na primeira década do século XX todos queriam estar em Viena, na segunda foram para Paris e a pequena livraria no número 12 da Rue de l’Odéon tornou-se um dos centros nevrálgicos da geração perdida: Ernest Hemingway, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, James Joyce, sob o olhar atento de Gertrude Stein.
 
Jesse e Céline gostam de respirar esse ar intelectual e boêmio mas não há tempo. Ela mora na cidade e isso é uma coisa cotidiana. Ele deve voar para casa.
 
— Quanto tempo tenho antes de ir para o aeroporto?
 
O avião sai em pouco mais de duas horas.
 
— Tenho algum tempo, diz ele.
 
E novamente para caminhar. Notre Dame se inclina contra o céu, eles não olham para a catedral, não estão fazendo turismo, nunca o fazem. Jesse e Céline personificam a aura de viajantes que dispensam roteiros, pontos de interesse e vistas panorâmicas para focar na experiência. Eles nunca tiram fotos. Na esquina, um homem toca acordeom, eles continuam pelas ruelas de paralelepípedos e atrás deles estão as pessoas, os pombos, os bares com suas cadeiras alinhadas na calçada. Os tons pastéis de suas roupas se misturam com os da cidade, às vezes ficam contornados sobre um fundo vermelho e rapidamente voltam ao tom. É uma Paris cotidiana, estreita e sem trânsito, as sirenes passam distantes e se perdem. Eles não olham em volta. De vez em quando, ela aponta e orienta “vamos por ali”. A primeira parada é um bar e, quando têm certeza de que o reencontro realmente aconteceu, ele mente: “adoraria conhecer mais Paris”.
 
Baudelaire caminhava pelas ruas parisienses para banhar-se na multidão, os dois caminham sozinhos. Depois de nove anos, eles abandonaram o espírito errante. A multidão não é interessante, nem as singularidades; não há pequenos personagens para apimentar o tempo juntos e a conversa. Eles se encontram e simplesmente caminham em direção ao ponto de chegada.
 
O lugar que a cidade ocupa no segundo filme é completamente diferente daquele do primeiro. Paris não é um caminho errante. Céline guia. Secretamente, podemos perceber, ela arrasta o amante para a sua casa —a dela — e para o seu destino — o dele. Sobem e descem escadas, caminham por um jardim, chegam ao Sena, ele a obriga a subir num barco turístico; “esqueci-me como Paris é linda”, diz ela e, depois de um tempo, os dois a esquecem novamente. Já na linha de chegada toca “Just in time” de Nina Simone. Ele a observa dançar e sorri. Não há tempo para um avião, ele vai ficar. Atrás das janelas, ao longe, na rua, está Paris.
 
Grécia
 
A Grécia em que se passa Antes da meia-noite não é uma cidade, nem um país, nem uma região. É o sul do Peloponeso, sim, um paraíso visual e turístico às margens do mar Jônico e, no entanto, é mais uma ideia do que um lugar. É mito e origem, berço da cultura ocidental, a glória que Homero cantou, as terras que Odisseu pisou, as águas que navegou. O local é um ambiente e uma paisagem, um território pouco urbanizado, o palco silencioso onde ressoam os protagonistas que, pela primeira vez, levantam a voz.




 
É verão, isso permanece. As configurações dos cenários Linklater são flexíveis e se adaptam ao ritmo dos amantes e ao que o tempo fez com eles. A presença primeiro de Viena, depois de Paris como pano de fundo para a viagem até ao destino, até finalmente se confundir na Grécia como um espaço aberto. O ambiente nos permite sentir o que ficou de fora da tela para os espectadores. Não há imagens dos locais visitados nem no início nem no final. À medida que a relação entre Jesse e Céline perde a leveza e, tal como Medusa, corre o risco de se transformar em pedra, os espaços que atravessam vão-se confundindo até se diluírem como pano de fundo.
 
Com eles vivenciamos a falta de coordenadas para não nos perdermos.
 
Como disse Heidegger: “na angústia nos sentimos inóspitos”. Há algo de inóspito que não tem a ver com um lugar: há anfitriões, jogos, crianças, banquete, vinho, comida e, também, há um andar errante por terras gregas, uma modesta odisseia que permite entrever a luta constante entre o local e o mundo.
 
“Nada é inventado. Apenas variações muito pequenas do que já foi dito, visto, ouvido, lido, escrito, esquecido”. Augusto Roa Bastos confiava em narrativas fragmentárias, sabia que a realidade do ser humano aparece sempre na forma de um espelho trincado: quebrado. Contar uma história, então, nada mais é do que juntar fragmentos como forma de esquecer a fragilidade do mundo e das pessoas com a ilusão de continuidade e sentido.
 
Falta tempo até meia-noite. Jesse e Céline passaram a última hora discutindo em um quarto impessoal de um hotel impessoal. Ela sai e a câmera se detém na xícara de chá que ela não bebeu, nas taças servidas com vinho, na cama que não usaram; é o ponto de vista dele.
 
A última cena num pequeno bar no sul do Peloponeso é o espelho quebrado. 


* Este texto é a tradução livre de “Viena, París y Grecia: unas horas caminhando con Jesse y Céline”, publicado aqui, em Jot Down.

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