Uma melodia doce e barroca na tela
escura: Ethan Hawke, Julie Delpy. É a abertura de
Dido e Enéias, de
Henry Purcell, e os violinos entram urgentes com a imagem das avenidas, o som
da máquina acrescenta intensidade. De dentro avista-se o verde do campo, as
casas isoladas, as árvores de verão, uma ponte, o rio azul, até que os últimos
acordes nos deixam dentro do trem. Vamos ver uma história. Paris
Em
O sentido de um fim,
Frank Kermode diz que as pessoas, assim como a poesia, rapidamente param a meio
do caminho:
in medias res. Para que tudo, ou pelo menos alguma coisa,
faça sentido, precisamos de uma ordenação temporal, de um antes e depois, de
correlações fictícias com as origens e os fins. E para isso servimo-nos da
narrativa. A vida flui sem pausas ou interrupções, nunca começa nem termina, é
um amálgama de histórias que se cruzam. A vida não se importa com personagens,
a ficção sim. É o simulacro narrativo que dá ordem e, portanto, sentido a essa
desordem da realidade através da organização temporal de começo e fim, de causa
e efeito.
O encontro de dois personagens num
trem que atravessa a Europa é o início de algo que continuará vivo: voltamos a encontrar
os personagens nove anos depois em Paris e, depois de mais nove, na Grécia. O
que teria acontecido com suas vidas? Entusiasmamo-nos tanto com as
regularidades temporais de Richard Linklater que esperamos mais nove anos, mas
2022 passou por nós e não tivemos notícias deles. O jogo e a ordenação temporal
de
Antes do amanhecer,
Antes do pôr do sol e
Antes da
meia-noite são claros. Repetem-se como uma fórmula: um filme a cada nove
anos, algumas horas para acompanhar os personagens, que se transformam entre um
e outro — os atores também. A estrutura
ticking clock organiza a
narrativa de cada filme e da trilogia: os espectadores têm uma efêmera janela
temporária para ver os protagonistas até que ela se feche novamente.
A sensação de estar no meio das
coisas não envolve apenas o tempo, mas também o espaço. A experiência de estar
no mundo e com os outros é uma navegação constante, procuramos não nos sentir à
deriva e para isso utilizamos qualquer tipo de coordenada — real ou fictícia —
que nos permita encontrar a nossa direção. No final das contas nada mais é do
que nos orientar e nos permita encontrar sentido pata os nossos movimentos. É
por isso que necessitamos de certos ajustes geográficos, de correlações
fictícias entre aqui e lá, dentro e fora, perto e longe. Nós nos orientamos no
espaço e assim colocamos ordem em meio ao caos.
Linklater traça a cartografia das
cidades onde os protagonistas se encontram, podemos vê-la e fazer cada percurso
com eles. No começo existe um trem europeu e dois personagens. Ela é francesa,
ele é estadunidense. São jovens, olham-se, procuram-se, falam das fantasias, dos
projetos, dos empregos possíveis e desejados, falam da passagem do tempo, da
infância e da morte. Descem na estação de uma cidade que poderia ser — quase —
qualquer lugar. Passarão juntos as horas restantes até o amanhecer. A câmera os
segue. São os últimos anos do século e o filme é filho do seu tempo. Em 1995, o
cinema
indie está em alta e Richard Linklater tem um orçamento
baixíssimo: dois personagens, um roteiro, uma montagem comum.
Calvino queria tirar peso da sua
escrita porque sabia que as coisas, e não apenas as palavras, são leves. Seu
livro mais leve é, talvez,
As cidades invisíveis. As cidades que
imaginou não são uniformes e intercambiáveis, têm identidade e são pessoais —
têm nomes femininos — não são susceptíveis de serem analisadas com a razão,
respondem à lógica da paixão e das ilusões. Atrás da superfície das ruas,
praças e edifícios estão os intercâmbios. “As cidades são um conjunto de muitas
coisas: memórias, desejos, signos de uma linguagem; são lugares de trocas, e
essas não são apenas de bens, mas também de palavras, de desejos, de memórias.
Viena
“Acho que isso é Viena”, diz ela.
“Vamos visitar a cidade”, diz ele.
A paleta de cores acompanha as
oscilações do sol e da noite, Viena dá tom e textura à narrativa, a fotografia
repousa na cidade. O primeiro filme possui a forma da deambulação e da errância,
Jesse e Céline são
flâneurs. O que há para ver?, se perguntam. Talvez
monumentos, museus, exposições. Têm um pequeno guia que não utilizam, deixam-se
levar por uma cidade fora do tempo: a Viena de
Antes do amanhecer poderia
muito bem ser aquela que Stefan Zweig retratou em
O mundo de ontem:
vasta, aberta, universal, a cidade das artes, da ciência, dos cafés literários,
centro nevrálgico da
Mitteleuropa que se espalha além das fronteiras
como o Danúbio. A Europa nunca foi mais rica, nem mais bonita, nem mais forte,
nem mais livre: “viver aqui era maravilhoso”, diz Zweig, e os intemporais viandantes
de Linklater parecem sentir isso. Sobem e descem do bonde, não há direção nem
itinerário, não há mapa: uma ponte, a roda gigante, uma igreja, um pequeno
cemitério de mortos anônimos, um café, os palácios e monumentos de pano de
fundo. Eles em primeiro plano. Viena é a desculpa para passar essas horas
juntos. Vemos seus olhares e gestos, procurando-se e encontrando-se, enquanto transcorre
a cidade nos seus entornos. Eles não estão sozinhos, falta um pouco para isso.
No primeiro capítulo da trilogia, os protagonistas se deparam com pequenos personagens
singulares como se quisessem fazer andar as coisas: os atores que fazem o papel
de vaca, a mulher que lê o futuro nas mãos, o homem à beira do rio que pede
palavras e devolve um poema.
Não há música incidental para
direcionar e sublinhar emoções, apenas o que emerge de sua jornada quando
compartilham um disco na cabine, dançam numa feira, param na frente de uma
dançarina, entram numa boate. A trilha sonora é a da cidade, com as suas vozes
indiferenciadas, as muitas línguas, os sons da rua, o trânsito tênue, as ruas
desertas. Eles são o homem — e a mulher — da multidão no conto de Poe.
Um acordeom e um violino passam
pela mesa, mas eles não conseguem prestar atenção neles, falam pela primeira
vez sobre o futuro imediato.
— É nossa única noite?
— É a única maneira, não?
A noite no parque traz silêncio, o
amanhecer e os pássaros, um homem de outra época pratica seu cravo, eles dançam
na rua. Ele lembra da voz de Dylan Thomas: “Os anos passarão como coelhos”; ela
escuta, e então a narrativa volta a deixá-los na estação de trem. É 16 de
junho, como aquele dia que retratou os périplos de Leopold Bloom por outra
cidade europeia, e eles dizem que daqui a seis meses se encontrarão novamente.
Outra vez o som do cravo. A câmera
leva-nos por cada um dos lugares onde estiveram, a cidade começa a despertar,
algumas coisas começam a se colocar em marcha e outros espaços estão vazios; uma
velhinha atravessa o parque sem perceber a garrafa e os copos que ficaram no
gramado. Caso não tenhamos notado no percurso, Linklater revisa sua
cartografia.
Paris
Antes do pôr do sol tem
oitenta minutos de duração. É o tempo que os personagens terão que ficar
juntos, mas primeiro vem Paris. Ao som de um violão e da voz de Julie Delpy
vemos instantâneos lentos da cidade, dos lugares por onde os protagonistas
caminharão um pouco mais tarde. O filme começa com o local vazio do ponto de
chegada da narrativa — a casa parisiense de Céline — e refaz sua jornada até
chegar ao ponto de encontro, embora não possamos dizer que a história começa
naquela cena da livraria.
Ele está ali falando sobre seu
livro e, quando a câmera foca nela, sabemos que eles não se veem desde aquele
16 de junho em Viena. Jesse está terminando sua turnê europeia do livro que
escreveu sobre aquela noite juntos. A última parada é na capital francesa e o espaço
não é qualquer lugar. Shakespeare & Co é invenção de Sylvia Beach, muito
mais que uma livraria, é a localização geográfica e simbólica de um espírito, o
que reinava quando Paris era festa. Se na primeira década do século XX todos
queriam estar em Viena, na segunda foram para Paris e a pequena livraria no número
12 da Rue de l’Odéon tornou-se um dos centros nevrálgicos da geração perdida:
Ernest Hemingway, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, James Joyce, sob o olhar
atento de Gertrude Stein.
Jesse e Céline gostam de respirar esse
ar intelectual e boêmio mas não há tempo. Ela mora na cidade e isso é uma coisa
cotidiana. Ele deve voar para casa.
— Quanto tempo tenho antes de ir
para o aeroporto?
O avião sai em pouco mais de duas
horas.
— Tenho algum tempo, diz ele.
E novamente para caminhar. Notre
Dame se inclina contra o céu, eles não olham para a catedral, não estão fazendo
turismo, nunca o fazem. Jesse e Céline personificam a aura de viajantes que dispensam
roteiros, pontos de interesse e vistas panorâmicas para focar na experiência.
Eles nunca tiram fotos. Na esquina, um homem toca acordeom, eles continuam
pelas ruelas de paralelepípedos e atrás deles estão as pessoas, os pombos, os
bares com suas cadeiras alinhadas na calçada. Os tons pastéis de suas roupas se
misturam com os da cidade, às vezes ficam contornados sobre um fundo vermelho e
rapidamente voltam ao tom. É uma Paris cotidiana, estreita e sem trânsito, as
sirenes passam distantes e se perdem. Eles não olham em volta. De vez em
quando, ela aponta e orienta “vamos por ali”. A primeira parada é um bar e,
quando têm certeza de que o reencontro realmente aconteceu, ele mente: “adoraria
conhecer mais Paris”.
Baudelaire caminhava pelas ruas
parisienses para banhar-se na multidão, os dois caminham sozinhos. Depois de
nove anos, eles abandonaram o espírito errante. A multidão não é interessante,
nem as singularidades; não há pequenos personagens para apimentar o tempo
juntos e a conversa. Eles se encontram e simplesmente caminham em direção ao
ponto de chegada.
O lugar que a cidade ocupa no
segundo filme é completamente diferente daquele do primeiro. Paris não é um
caminho errante. Céline guia. Secretamente, podemos perceber, ela arrasta o
amante para a sua casa —a dela — e para o seu destino — o dele. Sobem e descem
escadas, caminham por um jardim, chegam ao Sena, ele a obriga a subir num barco
turístico; “esqueci-me como Paris é linda”, diz ela e, depois de um tempo, os
dois a esquecem novamente. Já na linha de chegada toca “Just in time” de Nina
Simone. Ele a observa dançar e sorri. Não há tempo para um avião, ele vai
ficar. Atrás das janelas, ao longe, na rua, está Paris.
Grécia
A Grécia em que se passa
Antes
da meia-noite não é uma cidade, nem um país, nem uma região. É o sul do
Peloponeso, sim, um paraíso visual e turístico às margens do mar Jônico e, no
entanto, é mais uma ideia do que um lugar. É mito e origem, berço da cultura
ocidental, a glória que Homero cantou, as terras que Odisseu pisou, as águas
que navegou. O local é um ambiente e uma paisagem, um território pouco
urbanizado, o palco silencioso onde ressoam os protagonistas que, pela primeira
vez, levantam a voz.
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