Finalmente consegui obter um
exemplar do livreto
Tolstói on Shakespeare, publicado pela The Free Age
Press, em Londres, em 1906, por um admirador estadunidense do conde russo,
Ernest Howard Crosby. Mas antes de ler qualquer coisa de
Tolstói sobre Shakespeare,
vale a pena lembrar que a fortuna de Shakespeare, como a de qualquer outro
clássico, nunca foi estática. Tudo começou da pior maneira para aqueles
governantes de gosto que eram os franceses até que, da outra margem do rio
Reno, apareceu o romantismo, rejeitando-os com tudo e ao seu imperador Napoleão
e à sua Revolução de 1789. Voltaire, depois de alguma hesitação, já tinha condenado
Shakespeare por sua vulgaridade e mau gosto. Considerava-o típico dos
“selvagens britânicos”, apresentando-o sempre em desvantagem face aos autores
dramáticos do Grande Século. Mas Tolstói observa que foi G. G. Gervinus
(1805-1871), um historiador que os russos acusam de ser um “livre-pensador”,
que acabou reivindicando o autor de
Macbeth como um tonificante do gênio
alemão que até então se apresentava por trás da máscara da nação.
Stendhal havia se tocado, em
Racine
et Shakspeare (portanto, sem o primeiro, ele o escreveu) reivindicar
Shakespeare contra o neoclassicismo, considerando que os privilégios da
imaginação bastavam para mandar ao diabo as regras teatrais dos emperucados clássicos
do século de Luís XIV. Nesse estudo, o primeiro romantismo francês que ousa
dizer o seu nome é o de Stendhal, impondo uma distinção segundo a qual os
românticos são os jovens que estão no auge do seu tempo e os clássicos são os
nossos antepassados de uma fama tão incontestável quanto estrangeira. Na sua
época, Dante era romântico, diz Stendhal, e em 1824 — data de seu livrinho — o
toscano já era, e sempre há muito, um clássico.
Racine e Molière,
argumenta aquele que leva o nome civil de Henri Beyle, eram românticos por
volta de 1670, mas já não dizem nada ao novo público do século XIX, deixando em
dúvida (aqui Stendhal evita ser categórico) se permanecerão no Olimpo dos
clássicos. O romantismo como temperamento e não como estilo, forjado na ordem
diacrônica, apesar de sua simplicidade, tem tido sucesso. O catalão Eugenio d’Ors
escreveu que o nosso primeiro romantismo foi o barroco e que precisamente por
isso, como neoclássico, os franceses daqueles séculos anteriores a 1800 não o
tinham nem o compreendiam.
Shakespeare, argumenta Stendhal,
amaldiçoado pelos neoclássicos, é seu contemporâneo e o será alguns anos depois
de Victor Hugo; pertence ao partido da juventude porque apresenta de forma
brilhante os ideais e pesadelos do novo século, farto de luzes ofuscantes e
necessitado de claro-escuros para descanso, aborrecimento e morbidez da mente.
Embora se desenhássemos um quadro político grosseiro da literatura mundial,
tanto Tolstói como Stendhal pertenceriam à esquerda, neste ponto não está claro
para mim quem era o moderno e quem era o antimoderno.
Tolstói, um romancista
arrependido, está associado ao cristianismo herético que anseia pela pobreza
evangélica, não acredita na técnica, prega o pacifismo e a castidade, fica
horrorizado tanto com o governo quanto com a arte e prega o anarquismo, a
cooperação entre iguais. Stendhal, por outro lado, não se interessa muito pela
existência de Deus, é libertino sem hipocrisia; colecionador de mulheres e escasso
em amores, sente-se confortável na classe média, “prefere morrer pelo povo a
viver com ele” (dizem que disse isso na Revolução de 1830) e enquanto o perturbem
na ópera, espera que seus amigos governem se eles conseguirem cargos remotos,
mas decentemente remunerados. Tolstói narrou a derrota de Bonaparte para os
russos em
Guerra e Paz, enquanto
A cartuxa de parma, de Stendhal,
celebra a campanha italiana do jovem Napoleão como uma comédia de enredos.
Oficial intendente na Rússia, Stendhal entrou em Moscou, uma cidade fantasma,
em setembro de 1811 e retirou-se dolorosamente junto com todo o exército
derrotado. Dessa aventura ele deixa apenas algumas frases. Assim que regressou
a Paris, parecia melhor a Stendhal que começasse a escrever a sua História da
Pintura em Itália, que pretendia dedicar ao czar vitorioso. O francês deixou de
amar Napoleão quando se tornou imperador, enquanto Tolstói, 60 anos mais jovem,
curvava-se hegelianamente perante a História.
Mas voltemos, em
Tolstói on
Shakespeare, à filípica anti-shakespeariana. Começa com a reintegração dos
argumentos neoclássicos contra o período elisabetano. Não é surpreendente, dada
a educação de estilo francês de um nobre russo, que Tolstói repita o cardápio
neoclássico contra Rei Lear, Hamlet e Macbeth, julgados como historicamente inverossímeis
e repudiados por idiotas graças a uma linguagem inconcebível em “verdadeiros
indivíduos”. Depois de rever com algum detalhe
Rei Lear, a obra que mais
irrita Tolstói, pai de tantos filhos dentro e fora do seu tempestuoso casamento
com Sofia Tolstaia, o romancista bate na mesa. Mesmo tendo lido e relido, ele
afirma: Shakespeare (em russo e na tradução alemã de August Schlegel), está
convencido de que tem razão: a bardolatria (o termo foi inventado para
descrever os idólatras de W.S., o bardo), é um erro comum a toda a humanidade, por
mais que pese para Dr. Johnson, para Shelley, para Hazzlit e para Swinburne.
Erro difundido pelos jornalistas, aquela maldição do mundo moderno que uma
verdadeira sociedade cristã tornará desnecessária, diz Tolstói, o primeiro
grande escritor a fazer uso abundante da imprensa.
É aqui que
Tolstói on
Shakespeare se torna verdadeiramente interessante. O que mais enfurece
Tolstói em Shakespeare é o que sustenta, em grande medida, a popularidade do
bardo desde o romantismo: sua falta de religião, sua descrença ou seu
agnosticismo, virtudes seculares que o levaram a se propor a ser o primeiro
bardólatra do século. passado (Harold Bloom) para considerá-lo, nada menos, do
que o próprio muito renascentista “inventor do humano”. Esta imoralidade,
originada no ateísmo (embora Tolstói tenha o cuidado de levar a acusação a esse
nível) transforma o repertório shakespeariano num catálogo de crimes e abusos,
onde é impossível encontrar a bondade humana ou divina, um caos sem Deus onde,
na verdade, mulheres e homens demonstram a sua ganância, a sua ambição ou a sua
acídia sem receber qualquer censura do seu inadvertido criador.
No final do livreto — ao qual
Crosby anexa suas próprias opiniões contra Shakespeare por ser o eco
aristocrático da inimizade contra as classes mais baixas junto com uma página
daquele outro anti-shakespeariano que foi Shaw — Tolstói não acusa Shakespeare
de não ser Shakespeare, pelo menos, mas de ter sido um saqueador de lendas
medievais das quais, com a habilidade de um traidor, escondeu toda a
religiosidade. E vai mais longe. Num ano de 1900 em que Tolstói vê desaparecer
o espírito humanitário da sua juventude, Sand e Sue são substituídos no romance
popular por Zola e poetas mais alegres por poetas decadentes como Baudelaire,
Verlaine e Maeterlinck; as teorias sociais de Fourier foram esquecidas e as de
Comte foram impostas contra Hegel; substituindo até mesmo Darwin pelo horrível
Nietzsche, o conde decide culpar a fama de Shakespeare por todos os pecados
modernos.
Sendo muito consequente e original
a conclusão de Tolstói, se olharmos de perto, podemos ver o dente verde da
inveja. Quem foi o grande escritor, filho dos neoclássicos e pai dos
românticos, que mais fez por Shakespeare? Goethe, sem dúvida, acusa Tolstói.
Todo o “absurdo filosófico” que elevou o bardo ao estatuto de profeta do
romantismo é culpa de Goethe, que o proclamou “o grande poeta”, com toda a sua
“autoridade de ditador”, lamenta o russo.
Goethe, finalmente, era o único
espírito à sua altura com o qual Tolstói queria lutar. Suponho que o homem que
foi Shakespeare observa do alto esse duelo de semideuses com atenção, mas tenho
certeza de que Stendhal, entediado com a disputa entre Antigos e Modernos, há
muito abandonou o espetáculo em busca daquela imaginação cujo consolo só é
oferecido conversando com as mulheres. Quanto a Shakespeare, Stendhal amava-o,
não sem certos receios críticos, uma forma de amor que só nele é possível.
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