Por Cristina Jurado
Daylight is nobody’s friend.
God comes in like a landlord
and flashes on
his brassy lamp.
— Anne Sexton
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Frame de Midsommar (2019). |
Você já se perguntou qual foi a
primeira vez que sentiu medo? No meu caso, eu devia ter uns sete anos e, mesmo
agora, enquanto escrevo, não consigo deixar de estremecer ao lembrar disso.
Acontecia à noite, quando ia dormir. Demorava-me o máximo possível para atrasar
aquele momento e, como já tinha aprendido a ler, usava os livros como desculpa
para ficar acordada o maior tempo possível. Mas chegava a hora que minha mãe vinha
me dizer que era hora de dormir e apagava a luz. Depois, eu ficava de olhos
abertos na cama, examinando as sombras. Nesse momento, minha imaginação notava
pequenos detalhes na escuridão do meu quarto: uma peça de roupa pendurada no
cabide que parecia assumir forma humana; o rosto do palhaço no topo da estante,
cujo olhar eu tinha certeza de que estava me seguindo, ou a porta do armário
que ameaçava se abrir para revelar algo assustador do outro lado.
Aquelas sombras me perturbavam
porque podiam se transformar em qualquer coisa para me atormentar. Não era capaz
de controlar meu coração acelerado, nem conseguia evitar de sentir arrepios na
espinha. Tinha medo, pura e simplesmente, um medo incontrolável, porque me
sentia à mercê daqueles seres imaginários. Fechava os olhos e tentava não me
mover, esperando que, se conseguisse não atrair a atenção deles, eles me deixariam
em paz por mais uma noite.
Refletindo sobre esta lembrança,
minha primeira reação foi atribuir meu medo ao escuro. Afinal, é um dos tropos
mais utilizados e reconhecidos que associamos às histórias de terror. Pensemos
nisso: um porão sombrio, uma cripta sinistra, um sótão cheio de teias de
aranha, uma floresta ao anoitecer, uma masmorra sem luz, o espaço escuro
debaixo da cama. Todos eles têm uma coisa em comum: a falta de iluminação, um
dos recursos mais evidentes do gênero.
Porém, à medida que me aprofundei
mais sobre, compreendi que o que alimentava o meu medo não era a escuridão em
si, mas a pouca luz que me permitia distinguir contornos e silhuetas. Era
aquela indefinição provocada pelo brilho dos postes de iluminação que se
filtrava pelas ripas das persianas ou pela luz do corredor que atravessava a
soleira.
Justamente esse efeito está
associado a um tipo de terror que em inglês é conhecido como daytime horror
e que se passa em cenários onde a luz domina a cena. Falamos de filmes como Midsommar
(Ari Aster, 2019) que contrariam, à primeira vista, as convenções do gênero.
O escuro, o elemento
iconográfico por excelência do terror
De acordo com o Dicionário
Merriam-Webster, um tropo é um tema comum ou um dispositivo usado com
frequência. No final da década de 1950, o crítico George Bluestone já o definia
como um pensamento simbólico, específico do domínio da imaginação, e o
descrevia como um recurso narrativo que poderia ou não ser disruptivo para a
história (neste último caso, constituindo o clichê).
Como todos os gêneros, o terror
depende de seus próprios tropos — clichês ou não — que seu público reconhece
com certa facilidade e que cumprem uma função catártica definida. Trata-se de
procurar aquilo que, de forma clara e imediata, causa incômodo, desconforto,
inquietação e até angústia. Esses recursos nos ajudam a alcançar essa catarse,
processo conhecido desde a antiguidade como o que nos permite sublimar nossas
emoções negativas para nos libertar delas ou, pelo menos, mantê-las sob
controle.
Assim, quando lemos uma história
ou vemos filmes de terror, desafiamos se a nossa segurança não está realmente
ameaçada. Os sobressaltos, a taquicardia ou sudorese, embora nunca nos sintamos
em perigo e até percebamos um certo prazer fazem parte muitas vezes desse
sentimento. Nesse sentido, a teoria da transferência de excitação de Dolf
Zillmann reconhece os intensos sentimentos positivos que experimentamos quando,
no final das histórias de terror, o personagem ou personagens heroicos
triunfam. Resumindo: consumimos terror porque sabemos que são ficções, escritas
ou desenhadas nas páginas de um livro ou projetadas em forma de longa-metragem
ou série perfeitamente integradas à imaginação.
O escuro promete uma geografia
aberta à interpretação onde tudo pode encarnar-se ou acontecer. É por isso que
é usado para esconder aquelas criaturas que representam os traumas e medos da
sociedade. Esta plasticidade transforma-o num espaço liminar onde o conhecido e
o desconhecido coexistem, rodeados de sombras, como afirma o autor de fantasia
e terror Jesús Cañadas: “Andreu Martín disse que talvez associemos o lobisomem
à lua cheia porque as noites de lua cheia são claras o suficiente para ver o
monstro. Isso é a escuridão, é todos os monstros porque não é nenhum. É por
isso que é mais fácil (embora não seja tanto assim) se apoiar na escuridão para
criar o medo, porque o medo se baseia no desconhecido da própria escuridão”.
A escuridão representa a noite em
que se escondem criaturas ameaçadoras, a morte que habita cemitérios e
mausoléus, os segredos que nos atormentam, as doenças físicas ou mentais que
nos afligem, os sentimentos de isolamento ou alienação em relação à nossa
comunidade, os impulsos indizíveis ou socialmente instintos inaceitáveis.
“Caroline, não vá em direção à
luz”
Talvez agora a icônica frase
repetida pela médium e mãe da menina sequestrada em Poltergeist (dirigido
por Tobe Hooper em 1982) ganhe pleno sentido: a luz também pode ser uma fonte
de ameaça. São inúmeras as obras audiovisuais e literárias que assim
demonstram, e que se passam em cenários diurnos repletos de perturbadoras
referências solares. Entre os primeiros estão filmes como O homem de palha
(Robin Hardy, 1973), O massacre da serra elétrica (Tobe Hooper, 1974), Tubarão
(Steven Spielberg, 1975) e Quadrilha de sádicos (Wes Craven, 1977).
Há quem aponte, como Michaela
Barton, o aumento de serial killers como uma das causas que explicaria o
surgimento dos longas-metragens de terror na década de setenta. Depois de
alguns anos em que os movimentos contraculturais exigiram mais liberdade e
desafiaram o estilo de vida tradicional, o crime de Ted Bundy ou o crime da família
Manson conseguiu incutir medo na sociedade, contribuindo para que ninguém se
sentisse seguro durante o dia.
Uma parte dessas histórias tem
raízes em mitos pagãos que nunca desapareceram completamente do imaginário
coletivo, apesar das tentativas das religiões institucionalizadas. Os ritos
evocados em O homem de palha e Midsommar referem-se a crenças
ancestrais, organizadas em comunidades, que encarnavam o medo da sociedade
relativamente aos cultos que surgiram pouco antes e durante o movimento
contracultural. Isto é o que, no início dos anos 2000, levaria ao folk
horror, um terror que abunda nas tradições do passado e nas ideias
religiosas anteriores ao cristianismo e as transplanta para o presente. Esses
tipos de histórias expõem comportamentos repreensíveis do ponto de vista
social, seja porque abordam cultos hoje ultrapassados, mas que já reinaram em
diversas regiões, seja porque exibem cerimônias que fogem do que é considerado
normativo.
O multipremiado Experimental
Film (ChiZine Publications, 2015), da canadense Gemma Files, vencedora do
prêmio Shirley Jackson de melhor romance de terror e do Sunburst, é uma das
obras literárias que se aprofundam neste tema. Sobre a Dama do Meio-dia,
divindade eslava na forma de uma jovem vestida de branco que caminhava pelas
plantações quando o sol estava mais alto armada com uma foice, a própria autora
afirma que ela representa a luz e o calor: “Não esperamos que uma figura com um
halo ofuscante no rosto seja assustadora, mesmo que esteja carregando um enorme
par de gadanhas. Gosto de como inverte as nossas expectativas em relação à
iconografia do terror e que represente a musa devoradora, o impulso criativo
tão puro e concentrado que poderia cauterizar o seu cérebro como o sol faria
através de uma lupa.”
Dentro do atual renascimento do folk
horror, o célebre Midsommar descreve eventos que acontecem numa
comunidade sueca onde, durante o sol da meia-noite, é celebrado um ritual
ligado a crenças pagãs. A paisagem bucólica, os planos superexpostos e as cores
dessaturadas potencializam a sensação de inquietação, com momentos em que tanto
o espectador quanto os personagens são obrigados a piscar os olhos devido ao
excesso de luz. Nada permanece oculto. Tudo é mostrado. Existem análises
realizadas com inteligência artificial, segundo Josephine Holmström, para
estabelecer a pegada emocional deste longa-metragem na forma de gráficos que
medem o nível de estresse, bem como as respostas positivas e negativas dos
espectadores associadas às cores que predominam em cada cena.
Este filme me fez lembrar o
curta-metragem Ynys-y-Plag, do inglês Quentin S. Crisp. Nele aproximamo-nos
dos medos íntimos, como a loucura e a alienação, através do olhar profissional
de um fotógrafo que, em primeira pessoa, conta suas experiências avassaladoras
em um jardim. A sua falsa frieza e aparente objetividade opõem-se à paisagem
diurna e à profundidade das emoções descritas.
Em obras espanholas como Agujeros
de sol (Dilatando Mentes, 2020), de Nieves Mories, Carcoma (Amor de
Madre, 2021), de Layla Martínez, Pronto será de noche (Valdemar, 2015),
de Jesús Cañadas, ou Duramadre (Obscura , 2021), de Víctor Sellés, o
terror é exibido em plena luz em cenários que não precisam de sombras ou teias
de aranha para incutir medo. O sol, estrela mais brilhante, fonte de luz e
calor por excelência, tem especial relevância no romance de Mories. “O romance
significa muitas coisas”, explica a autora. “Representa a impunidade com que
muitos crimes são cometidos, muitas vezes protegidos por instituições
governamentais ou eclesiásticas, que se sentem acima do bem e do mal. E também
representa a brincadeira de duas crianças, [e] o sol como indicador [...] do
crime. A escuridão é um elemento protetor, onde o protagonista se refugia, mas
o sol é paisagem, motivo e moeda de troca”. Durante o dia não há onde nos
esconder daquilo que nos atormenta e a angústia permanece como uma segunda pele
nos personagens desta história de vingança, de crianças roubadas e de vidas
sufocadas pelas convenções sociais mais conservadoras.
A história que Layla Martínez
conta em Carcoma se passa em um ambiente rural onde segredos e traumas
intergeracionais servem para trazer à luz profundas desigualdades sociais.
Intimamente ligada à história da Espanha pós-Franco, encontramos mais uma vez
uma ficção protagonizada, como em Agujeros de sol, por mulheres. Para
Yolanda López Aguinaga, presidente da Associação de Fantasia, Ficção Científica
e Terror de Castela e Leão, leitora voraz de terror e blogueira do site Activos
Tóxicos, esse detalhe não deve passar despercebido, porque Carcoma e
Agujeros de sol “atacam dois pilares tradicionais profundamente enraizados
no patriarcado: a família como unidade estrutural social, e a mulher, por sua
vez, como pilar sobre o qual a família se sustenta. Essas obras corrompem esses
conceitos. Elas os pervertem ao tocá-los. Aqui as mulheres são vítimas,
algozes, heroínas, vilãs e monstros. O dia torna-se um espaço de terror não só
porque a violência é praticada, e é ainda mais evidente se possível, a qualquer
hora, mas porque extraí-la da noite permite que as desigualdades sociais e de gênero
sejam expostas com mais evidência. “Layla e Nieves [...] colocam os mortos como
quem pendura a roupa para secar ao sol”, acrescenta López Aguinaga.
A partir do título de seu romance,
Pronto será de noche, Jesús Cañadas aponta para um cenário em que os
personagens ficam presos em um engarrafamento infinito sob um sol de justiça. A
escuridão não existe como tela a partir da qual se podem dar forma aos medos
dos motoristas e passageiros, e o autor recorre a outros elementos
atmosféricos. “É por isso que é um desafio tão difícil e bonito fazer terror
sob a luz do sol”, diz o autor, que acrescenta que “ao escrever o romance, me
propus o desafio de fazer acontecer o medo em plena luz e com muito calor. Para
fazer isso é preciso confiar em sensações próximas ao medo: a agonia pelo
calor, o sufoco, a opressão. E essas sensações são evocadas com palavras, é
claro”.
Também em Duramadre, de
Víctor Sellés, o terror adquire conotações solares e, tal como no romance de
Cañadas, a luz combina-se com o calor para gerar uma sensação de sufocamento,
de bloqueio existencial, numa história onde os conflitos intergeracionais e os
segredos familiares, e onde o inferno não está localizado no mundo subterrâneo,
mas no verão escaldante da cidade.
O terror em Technicolor incorpora
o medo ao conhecido, ao familiar, ao que estamos acostumados, ao que nos ameaça
porque o reconhecemos como real, como parte de nossas vidas. Como se fosse um
exorcismo, precisamos arejá-lo, retirá-lo do local onde pode nos prejudicar e
deixar que o sol apague os vestígios daquilo que nos aterroriza. Porque não é a
escuridão que mais tememos, como não era o que me assustava quando criança, mas
sim o diferente horror da realidade.
Ligações a esta post:
>>>
Medo sob o sol
Referências
Sexton, Anne. Love Poems. Nova York: Houghton Mifflin Harcourt,
1999.
Bluestone, George. Novels into Film. Maryland: Novels into Film,
John Hopkins Press, 1957.
Zillmann, Dolf. “Transfer of excitation in emotional behavior”. In: J.
T. Cacioppo y R. E. Petty (eds.). Social psychophysiology: A sourcebook.
Nova York: Guilford Press, 1983.
Barton,
Michaela. “How Real-Life Crimes Brought About the Dawn of ‘Daylight Horror’”. Screen
Queens, 2019.
Leeder, Murray. “Every Movie is a Ghost Story: an interview with Gemma
Files”. Luma Quaterly, 2016.
Holmström, Josephine. “How the Movie Midsommar is Creepy
Despite not being Dark”. Vionlabs, 2020.
* Este texto é
a tradução livre para “Terror solar: los nuevos escenarios del miedo a plena
luz”, publicado aqui, em Jot Down.
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