“Som da liberdade”, o filme de extrema direita que nos convida a perguntar o que é a propaganda
Por Alonso Díaz de la Vega
Há algumas semanas, o romancista Juan Pablo Villalobos tuitou que Oppenheimer
(2023) é uma peça de propaganda política estadunidense por atingir seu clímax
no primeiro teste da bomba atômica, e não na destruição de Hiroshima e
Nagasaki. Além de ser outro argumento a favor da pornografia da violência —
muitos progressistas insistiram que era melhor assistir ao massacre para
moralizar, em vez de evitar a sua espetacularização —, a posição assume que
toda representação politizada é propaganda. É claro que o filme se filia à
ideologia libertária de seu diretor, Christopher Nolan, obcecado em livrar o
gênio homônimo. Claramente, seu objetivo ao mostrar J. Robert Oppenheimer usado
e perseguido é nos dizer que se ele pudesse ter inventado num mundo onde a
ciência não dependesse do poder político, ele teria contribuído muito, em vez
de ter sido cúmplice do extermínio. Será que esta conclusão, e especificamente
uma das raras decisões éticas de Nolan, faz de Oppenheimer uma peça de
propaganda?
Vale a pena perguntar sobre o significado deste conceito ante a estreia de
Som da liberdade (2023). O filme é produzido pelo radical cristão
Eduardo Verástegui e dirigido por Alejandro Gómez Monterde, que já fez sucesso
entre protestantes e católicos — e mais ninguém — com Bella (2006) e Little
Boy (2015). Som da liberdade tem sido objeto de uma guerra feroz
travada por tuítaços entre o progressismo estadunidense e a ala reacionária
porque os primeiros o veem como ligado às teorias da conspiração como
Pizzagate, que afirma a existência de sacrifícios de crianças realizados por
Hillary Clinton, enquanto o outro lado iniciou essas associações graças ao
protagonista, Jim Caviezel, e a Tim Ballard, o homem que interpreta: ambos
acreditam nessas ficções tresloucadas — o ator é até associado ao grupo QAnon —
inventadas em fóruns de extrema direita no 4Chan. Soma-se a tudo isso a
acusação infundada de que as redes de cinemas dos Estados Unidos assustam os
espectadores com sofisticadas táticas de tortura, como desligar o ar-condicionado
dos cinemas, mas, rebeldes, os conservadores permanecem nelas. Acontece que um
gringo azucrinante é tão revolucionário quanto um vietnamita colonizado.
Apesar do escândalo, o próprio texto do filme não menciona Pizzagate,
nem 4Chan, nem QAnon, nem Donald Trump. Os moralistas do voyeurismo que tanto
questionaram Oppenheimer não perceberiam os verdadeiros problemas do
filme porque não parecem se importar com a forma como as coisas são
representadas, mas apenas com quem, o quê e por que razões o faz.
Som da liberdade
conta a história exagerada e às vezes inverossímil de Tim Ballard, um ex-agente
do Escritório de Investigações de Segurança Nacional. Vale a pena saber que
este é um ramo do infame Serviço de Controle de Imigração e Aduanas (ICE, na
sigla em inglês), que nos últimos anos se tem dedicado a enjaular crianças
migrantes e a separá-las das suas famílias. No filme, Caviezel representa o
oposto com seus cabelos tingidos de loiro, a iluminação dramática que tende a
iluminá-lo e os maneirismos que evocam seu papel titular em A Paixão de
Cristo (2004), de Mel Gibson. A sua versão de Ballard é a de um agente
dedicado e corajoso que supera as restrições da burocracia estadunidense e a
falta de jeito das agências de segurança na Colômbia, onde investiga uma rede
de traficantes de crianças para fins de turismo sexual. É evidente que há uma
campanha para limpar a imagem pública não só de Ballard mas também do ICE, um
aspecto que dificilmente foi mencionado pelos críticos nos Estados Unidos,
distraídos pelas filiações de Verástegui, Caviezel e Ballard.
Contudo, voltando à nossa questão sobre o que constitui uma peça de
propaganda, O poderoso chefão (1972) também faz parte de uma campanha de
relações públicas da máfia. Sob pressão da Liga Ítalo-Americana dos Direitos
Civis, a Paramount forçou Francis Coppola a retirar de seu roteiro seus
aspectos mais sórdidos. Esta organização foi fundada pelo chefe de uma das
cinco famílias da máfia nova-iorquina, Joe Colombo, e claramente a razão pela
qual os membros da Cosa Nostra preferem este filme aos de Martin Scorsese é
porque não os mostra como sociopatas agressivos, misóginos e autodestrutivos,
mas como herdeiros de Sêneca que falam com cuidado e eloquência sobre a
importância de permanecer estoico. Ninguém acusou o filme de ser propaganda,
talvez porque a crítica não conhecesse esses detalhes, mas atrevo-me a pensar
que isso se deve ainda mais ao fato de a propaganda não ser uma mera questão de
representação mas de formas.
Esta perspectiva se afirma considerando que toda criação está
condicionada pelos imaginários que a produzem. Um cineasta transfóbico fará um
filme transfóbico, assim como um misógino filmará imagens que injuriem as
mulheres, mas na maioria das vezes não é intencional ou vontade política, mas por convicção
internalizada: em bom mexicano, sacan el cobre. Não são a mesma coisa,
então, Quentin Tarantino ou Brian De Palma, Leni Riefenstahl e Veit Harlan. Os
primeiros são aliados automáticos da mitologia masculina; estes últimos são
propagandistas voluntários e oportunistas da Alemanha nazista, mas mesmo entre
eles existem diferenças.
Em A fábula cinematográfica, o filósofo francês Jacques Rancière
escreve: “O cinema de propaganda deve oferecer certeza sobre o que vemos, deve
escolher entre o documental, que nos apresenta o visível como realidade
tangível, e a ficção, que nos propõe o visível como um fim desejável.” Embora
Riefenstahl filme Adolf Hitler de forma idealizada e integre sua imagem à de
seu amoroso povo em Der Triumph des Willens (1935), não há narração que
interfira ou exponha as ações em tela de forma didática. Riefenstahl usou esta
ambiguidade a seu favor para dizer que apenas capturava os acontecimentos de
uma reunião anual do Partido Nacional Socialista Alemão em Nuremberg, e foi o
que permitiu aos críticos liberais resgatarem-na, apesar de um estilo
redundante que insiste repetidas vezes na grandeza do nazismo. Harlan, por sua
vez, relata na ficção Jud Süß (1940) uma história do século XVIII mediante
uma objetividade repugnante que por vezes culpa o protagonista judeu de
desestabilizar a Suábia manipulando seu duque, inventando os impostos e
executando seus inimigos em praça pública. Os personagens cristãos, brancos,
não perdem a oportunidade de chamá-lo de judeu ou de vincular suas ações à sua
origem étnico-religiosa.
Apesar do seu transbordante antissemitismo, Jud Süß não é tão
direto como alguns documentários da época, seja o também alemão Feldzug in
Polen (1940) ou a série estadunidense Why we fight (1942-1945), de
Frank Capra, que se lançam ao controle absoluto do espectador imaginário. Ao
contrário do que escreveu Rancière, o documental não era para estes filmes uma
tentativa de confundir as imagens com a realidade, mas sim de delimitar os fatos
para produzir uma consciência nacionalista através da objetividade das
ferramentas didáticas: informação, instrução, diálogos com maior interesse
retórico do que dialético. Esta é talvez a forma definitiva da propaganda, que
teve uma influência decisiva em certo cinema cristão, particularmente no do
infame Ron Ormond. O inferno em chamas (1974) ou The Believer’s
Heaven (1977) são filmes risíveis de baixo orçamento em que o reverendo
Estus Pirkle explica com absoluta certeza quais torturas nos aguardam no
inferno e como acessar as recompensas do céu. As cenas ficcionais, auge do
humor involuntário, retratam hippies sendo torturados por quatro ou cinco
vermes no rosto, com o objetivo de afirmar os valores dos crentes e aumentar
seus números. Mas embora muito cinema protestante, especialmente os mais
populares, se expresse desta forma, seria um erro pensar que todos os filmes
cristãos são propaganda.
Há algumas semanas, quando foi anunciado que Greta Gerwig faria uma
adaptação do romancista cristão C.S. Lewis, os ativistas de redes sociais
chegaram à conclusão de que toda representação religiosa é propaganda, mas, sem
saber, enunciaram as suas fobias, em vez de algum raciocínio crítico. O cinema
mais relevante feito a partir da fé foge à educação moral do espectador, como
nos casos de Carl Theodor Dreyer, Robert Bresson e até Moses und Aaron
(1975), do casal comunista formado por Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que
adapta a ópera homônima de Arnold Schönberg e mostra em sua primeira cena um
longo plano fechado de Moisés, filmado quase inteiramente por trás enquanto ele
conversa com a divindade. Nunca vemos o deus com quem ele conversa, cuja voz
irada soa como um coro de homens e mulheres: indefinida, infinita. Estes
cineastas não tentam convencer ninguém de nada, mas exprimem o enigma da
criação, da experiência humana diante de um deus cuja vontade, por vezes
violenta, por vezes benigna, escapa à razão humana e até parece ignorá-la: a
sua definição de fé é a do confronto diário com a dúvida, a contradição e o
silêncio.
Mas, voltemos a Som da liberdade, um filme na tradição de Jud
Süß que se exprime sob uma obviedade mais ou menos disfarçada, e mais ainda
agora, depois de um escândalo que nada tem a ver com os seus verdadeiros temas.
Já disse que a trama não mostra qualquer ligação com as fantasias da
extrema-direita sobre o tráfico de crianças, mas insiste num outro argumento
igualmente ativo nesses imaginários: a urgência do intervencionismo estadunidense
na América Latina. Imprevisivelmente, o filme termina com o bem-humorado
Ballard resgatando as crianças em coordenação com as autoridades colombianas e,
mais tarde, arriscando a vida ao se infiltrar sozinho num campo de trabalhos
forçados das FARC para salvar outra garota. Escusado será dizer que esta
sequência, um golpe irreprimível dos cineastas ao marxismo, não aconteceu na
realidade. Som da liberdade se liga ao fundamentalismo cristão quando
Ballard, o nobre agente do ICE, diz que os filhos de Deus não estão à venda.
Apesar de tudo, o pior momento do filme é outro que talvez deixasse em
paz os moralistas voyeuristas: durante a audição de uma garota de batom
vermelho, Gómez Monterde nos mostra a perspectiva da câmera que a registra, ou
seja, nos coloca por um momento no lugar dos pedófilos e gratifica qualquer um
deles que esteja sentado na sala. Certos espectadores progressistas — aqueles
que exigem veementemente a desintegração de Hiroshima e Nagasaki — ficariam
satisfeitos em ver a ação repugnante encenada, uma vez que não importa como as
imagens nos afetam, mas que estejam lá, como for, para denunciar os crimes na
realidade.
Numa altura em que a extrema direita faz experiências com as declarações
mais óbvias, mas também com a ambiguidade, os seus adversários precisam
distinguir o que suspeitamos daquilo que realmente nos diz. A precisão nos
impedirá de confundir a arte de imaginários diversos e válidos com a
manipulação do poder político-econômico e nos impedirá de nos tornarmos
censores idiotas; considerar iguais as críticas e a mera fobia que a extrema direita
transformou em promessa de campanha.
* Este texto é a tradução de “Sound of
freedom, la película de extrema derecha que invita a preguntarnos qué es la
propaganda”, publicado aqui, em Gatopardo.
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