Samuel Beckett não se faz esperar

Por Matías Serra Bradford

Samuel Beckett. Foto: Henri Cartier-Bresson


 
A Segunda Guerra ficara para trás numa vida em que era difícil virar cada página. A princípio, em Paris, Samuel Beckett alistou-se na resistência contra os nazistas; no fim, ele acabou ao volante de uma ambulância na Normandia. Pelo meio, refugiando-se em Roussillon, na Provença, escreveu Watt para não perder a cabeça (e é um livro que pode devolvê-la ou recolocá-la a quem o leia).
 
De 1947 a 1950, sob uma febre repetível, escreveu as três obras que, numa maneira muito própria, desmantelariam o horizonte de papel da ficção: Molloy, Malone morre e O inominável. De repente, os escombros começaram a oferecer uma visão privilegiada: o romance refundado como uma capital de ruínas.
 
Chegara um escritor que não tinha medo de prender os dedos numa porta. Era uma das poucas epifanias que escapara a outro garoto, seu amigo e cúmplice James Joyce: a gratuidade de narrar sem motivo. E a tese consequente: que nada estava tão no centro da literatura como essa fuga.
 
Uma vez estabelecido permanentemente em Paris, Beckett se passou ao francês. Uma frase espirala porque um escritor está à sua própria procura e é isso que as vozes de extasiada penúria, as primeiras pessoas em franco retrocesso provam – ensaiam e confirmam. As de Beckett e dos seus narradores foram — são — manobras de retaguarda numa batalha que consideravam perdida de antemão. De qualquer forma, precisam desistir antes de começar para poder vencer de forma agônica.
 
Este notívago que preferia acordar tarde, chegou ao último dia sem querer saber se em cada caso conseguiria começar, se conseguiria continuar, se tudo não acabaria dinamitando na manhã seguinte. Talvez com a serenidade de ter acampado diversas vezes no auge da impossibilidade de escrever. (Talvez também na literatura o desejo insatisfeito seja superior ao realizado).
 
Comédia de erros de identidade, como Malone Morre e O inominável, Molloy é o monólogo maníaco (que Beckett mais tarde soube cortar para transformar com vistas ao teatro) de um personagem contraditório que corteja, para fins cômicos, a catalepsia e a fome.
 
Aumentam as repetições esmagadoras, as orações subordinadas e entre parênteses, as rebeldes, as catárticas, as cataclísmicas e as colapsadas. Os oxímoros dos hemisférios separados no nascimento e os triplos negativos. Relatórios prometidos, mecânica quebrada. Pais tiranos, filhos desertores, mensageiros em missões ridículas.
 
Um mundo — cada mundo particular — tende a fechar-se sobre si mesmo. É possível perceber no desenho de círculos concêntricos a trajetória de cada um dos romances de Beckett, que tematizam e dramatizam sua própria composição.
 
Prostrado, Molloy retorna às suas andanças antediluvianas, de muletas ou de bicicleta. Um inerte acampa no quarto de sua mãe ausente, levantando as bandeiras de uma convalescença eufórica enquanto empunha um lápis minúsculo, apontado nas duas pontas, e rabisca linhas que alguém tira e devolve indecifravelmente lesionadas.
 
Ele se diverte observando o que vai contar e o que se recusará a contar, examinando a vantagem de fazer ou não fazer isto ou aquilo. Molloy faz seu ato de palhaço preso, passando pedrinhas de um bolso para outro, procurando uma forma de não sorver sempre a mesma, enquanto escreve uma espécie de tratado insano sobre a busca pelo passatempo perfeito.
 
Num esquema desesperado, a rota de fuga é a aritmética combinatória sedativa. Todo o romance parece um jogo despótico de adição e subtração, de redistribuições.
 
Enquanto isso, um dilema binário aparece em duas frases entre três. E Molloy aproveita cada desvio proposto pelo fluxograma. Varre todas as hipóteses e caminhos alternativos que ousam mostrar o nariz.
 
Mais uma discriminação, uma distinção adicional, dá ao estilo sua facilidade e o roteirista responsável é a digressão. A insistência pode parecer tola, cansativa, mas que alturas são as de uma obstinação que sabe rir de si mesma.
 
Às vezes, o riso do leitor o obriga a admitir que o irreprimível Molloy é um stand-up irresistível. A hilaridade escatológica de que ele é capaz é um ápice apenas tocado por Sade, Burroughs e Swift.
 
O riso geralmente não é uma medida confiável da qualidade literária, até que esses irreverentes voltem a entrar na sala. E o humor negro e radiante, muito pontual, deste irlandês acusado de ser um pessimista profissional transbordou na sua narrativa, no seu teatro, na sua crítica e na sua correspondência.
 
O intencional déficit de expectativa de Molloy é direto, honesto e urgente. Abundam os “finalmente” e “por fim” e, para contrariar tanto frenesim, prolifera o que nunca chega. (No meio de uma cadeia de revezamentos e postagens de nomes adiados, Beckett esquentava a entrada de seu sempre iminente Godot).
 
Cada silhueta desbotada tropeça, pedala ou permanece numa risonha paralisia de transe verbal. Parecem evitar o ponto final para que o trabalho artesanal não seja perceptível e não dissolver o feitiço. Como se acreditassem que cortar, interromper, fosse a verdadeira loucura — que ignoram — e uma incessante musicalidade funcionara como cortina de fumaça para truques sintáticos e erros existenciais.
 
Para fazê-la cantar, cada voz tem que estar sitiada. Os de quem foi mais que um pianista amador são narradores destituídos, demitidos, desterrados, que tomam ditado e não condescendem em ficar calados: “Tem gente que assobia sem motivo”.
 
As sucessivas rejeições por parte dos editores — até que a esposa de Beckett encontrou as providenciais Éditions de Minuit — mostram quão árduo deve ter sido avaliar essas obras em manuscrito naquela época (ou mesmo agora). Literatura tudo ou nada.

Molloy está em Bally ou não? Ou é Ballyba, ou Ballybaba? Quando chega a um lugar, a um ponto? O livro não demora muito para esperar e o leitor avança como se estivesse andando em uma bicicleta dobrável que ele monta e desmonta como bem entende.
 
Com Beckett não há meio-termo: em suas páginas a intensidade e a consistência por centímetro quadrado são tais que só podem ser lidas em doses curtas ou por horas quilométricas. (As traduções, aliás, homenageiam essa modulação endêmica de um tradutor fenomenal de si mesmo).
 
Nomes com M
 
A linhagem dos moribundos é exuberante: Molloy, Moran, Murphy, Mercier, Macmann (e Saposcat, a denominação essencial que vem quebrar a harmoniosa fraternidade onomástica). Malone morre não fica atrás: frases que se cancelam e reabrem, acumulação e desagregação num florescimento simultâneo. Coágulos de significado diluídos na própria tinta e ao mesmo tempo uma estilização rápida, de um gráfico transcrito e representado.
 
“Ninguém fala como se não existisse”, observou certa vez Hans Blumenberg, e contra-exemplos imediatamente nos ocorrem em quase todas as vozes de Beckett. Enquanto os narradores se defenestram sistematicamente, na trilogia um romance corrige o anterior, prolonga-o e o remodela, o refaz e relança-o.
 
Para persistir após uma catástrofe tão vitoriosa, Beckett optou por mudar de gênero. De orfandade inconquistada, entregou-se para adoção à casa de teatro, o que lhe deu, se quiserem, um rosto mais amigável e poroso à sua visão, e que lhe valeu a temida fama e o Prêmio Nobel, que lhe permitiu exercer mais livre ainda sua generosidade incorrigível para com os colegas mais jovens.
 
Nas suas primeiras ficções, Beckett começou com um virtuosismo sobrecarregado, depois voltou-se para uma prosa descontraída e nas últimas décadas, através do desmatamento progressivo, radicalizou-a num estilo que foi sendo resumido e liquidado, tentando sempre arrastar a escrita para um exterior definitivo.
 
A sua diáspora de esporos narrativos traçou o seu círculo; um centro intacto, devidamente vazio. Apenas certos silêncios podem ser assinados sem apertar a mão.

 
* Este texto é a tradução livre para “Beckett no se hace esperar”, publicado aqui, em Revista Ñ.

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