Pureza, de Garth Greenwell

Por Sérgio Linard

Garth Greenwell. Foto:  Bill Adams


“Para meus padrões americanos, G. estava atrasado”¹. Os padrões americanos do protagonista de Pureza, de Garth Greenwell, são os que guiam este professor de literatura, abertamente homossexual, vivendo na Bulgária, país conhecido por sua intolerância com índices de diversidade sexual. É importante o destaque deste tipo de padrão, desde já, porque é este o padrão de concepção das situações que o romance persegue e que é explorado a cada capítulo.
 
Pureza é um texto que, como muitos da mesma seara, recorre a uma temática em alta na contemporaneidade com vistas a uma construção literária com certos níveis de representatividade e de enredo psicológico minimamente angustiantes comum a qualquer grupo que esteja fora dos espectros hegemônicos da sociedade atual. Contudo, antes que adentremos a questões mais específicas sobre erros e acertos dessa obra de Greenwell, vejamos, brevemente, do que se trata o romance.
 
Pois bem. Pureza está divido em três partes, cada uma delas com três capítulos. Apenas na segunda parte o leitor encontrará a seção que dá título ao livro, podendo compreendê-lo com alguma precisão, mas de forma limitada ao contexto em que se realiza em contrapartida de uma relação com o todo.
 
Chama atenção, ainda, a mui reduzida ligação entre as narrativas de cada capítulo, posto que muitos deles, com destaque para “O santinho” e “Gospodar”, apenas apresentam cenas de forte teor sexual — dadas as minuciosas descrições de atos entre o protagonista e outros personagens — sem alguma contribuição para o romance. Na verdade, esses trechos poderiam ser lidos separadamente como se fossem contos eróticos, permitindo o alcance, não sem algum esforço, sobre alguns aspectos psicológicos do narrador-protagonista. No entanto, este alcance pouco contribui para a compreensão ou percepção de complexidade da história deste professor de literatura, homossexual, morando na Bulgária, convivendo com as dores que sua orientação gerava por ele estar naquele país, após ter vivido pela maior parte de sua vida dentro dos padrões americanos. Tem-se, então, o resumo do “romance”.
 
Gostaria, agora, de apontar algumas questões sobre o gênero romance, com o qual, teoricamente, o livro se associa, para, a partir disso, traçar observações sobre a construção de Pureza. Uma obra literária que se propõe a ser classificada como romance, costuma apresentar um número de tramas e de complexidades dessas mesmas tramas minimamente consideráveis. Os núcleos de personagens e de acontecimentos, ainda que com potencial de serem distantes, habitualmente, são expostos e explorados com vistas a contribuição com o todo narrativo que se tem em vista. Na cultura contemporânea, muitas tendências para o gênero têm sido reformuladas e repensadas a partir de possibilidades provenientes de avanços tecnológicos e sociais. Conforme aponta Leyla Perrone-Moisés, na atualidade, o gênero romance passa a ter seu potencial onívoro muito mais explorado e espraiado, posto que as diversas temáticas que agora podem a ele recorrer decidem fazê-lo, por vezes, de forma a intentar uma singularização para a obra literária.
 
Nessa perspectiva, porém, muitos romances recebem este nome por um simples apelo comercial, sem que conservem traços mínimos — como relação entre os acontecimentos menores em prol de acontecimentos maiores ou ligação básica entre detalhes da história de protagonistas e personagens ditos secundários. Movimentos como esse fazem com que a obra literária crie e prometa ao leitor algo que, desde sua gênese, será incapaz de cumprir. Há de se ter em mente que determinar que uma obra seja um romance, um conto, um poema ou qualquer outro gênero é, assim como o título, estabelecer compromissos básicos com o próprio texto que, quando não cumpridos, revelam ausência de domínio ou, pelo menos, de planejamento diante do processo artístico, como se uma pura e simples “inspiração” fosse capaz de dar conta de todos os meandros do texto literário.



 
Ao fim da leitura da obra em questão, uma nota do autor informa: “Alguns trechos deste livro apareceram pela primeira vez, em muitos casos em versões bem diferentes, no The Iowa Review, The New Yorker [...]”. Os jornais em que partes do texto apareceram anteriormente a sua compilação na versão ora resenhada publicaram-nas como se contos fossem. Mesmo que consideremos a ponderação de muitas diferenças entre a primeira e a versão final, não podemos ignorar o fato de que os textos foram inicialmente concebidos como contos e não como romances. E este é o problema formal de Pureza.
 
Individualmente, cada um dos nove capítulos é de uma leitura fluida, interessante e até mesmo envolvente. O autor consegue manter a primazia de cenas eróticas e sensuais sem precisar recorrer a pieguismos ou a simples explanação gratuita de atos sexuais. Todos esses atos, quando descritos, mostram-se como mais uma forma de se confirmar medos e anseios do protagonista; nesse aspecto, as histórias são muito bem-sucedidas e apresentam sólida construção de detalhes e de minúcias daquilo que se lê, como se houvesse uma explícita intenção de materialização do texto por meio de retratos para consumo adulto permeado por profundas reflexões sobre aquele contexto. Isso realça e dá mérito ao bom produto resultante do cálculo entre o que se pretendeu fazer e aquilo que efetivamente foi feito. Ademais, os textos funcionam bem para a ideia de se narrar cenários e acontecimentos de descoberta sexual ou de opressão diante indícios de homofobia.
 
O professor protagonista, no entanto, é o único elemento constante em todo o “romance” e percebe-se que, por meio dele, tentou-se fazer uma linha de costura para garantir alguma coesão dentro da pseudo-trama romântica. Há de se convir, não obstante, que para que um personagem consiga tamanha envergadura, sua construção também precisa de profundidade; mas, neste caso, a tônica da opressão e da infelicidade com a profissão acabam sendo os grandes geradores das reflexões do narrador. Poucos detalhes, e somente isso mesmo: detalhes, saem desse prisma, tornando o alcance do conhecimento sobre o narrador limitado desde o primeiro capítulo. Nada é acrescentado sobre ele e aquele elemento que deveria dar consistência às relações entre as partes da história tem a construção reduzida, típica de um protagonista de contos.
 
Em algumas transições entre um capítulo e outro, observe-se, há a tentativa de se retomar personagens de outrora, como o caso de um dos namorados do professor, “R.”. Esse jovem português ainda aparece como memória em outros trechos da narrativa, mas apenas para ser esquecido nos parágrafos seguintes, no momento em que o enredo central daquele capítulo começa a ser explanado. Como uma memória que se busca recalcar mediante traumas por ela reavivados, a lembrança de “R.” é rapidamente alternada pela cena de um padre que decide tomar banho, em um rio escuro, sem roupas. Algo que reforça o estado psicológico do narrador-protagonista, mas que já está explicitado no livro desde as primeiras páginas: o padrão americano de ver e de lidar com as coisas é o que o guia do começo ao fim, sempre destacando como regime opressivo búlgaro é equivocado e adoecedor.
 
Ressalto, porém, que este aspecto monotônico sobre a persona do protagonista não se constitui como problema em essência, especialmente ao se considerar a situação limitante constantemente vivida por ele. O problema se constitui quando, na tentativa de se ter um narrador-protagonista como elemento de ligação das várias — e autônomas — histórias ali presentes, limita-se este elemento coesivo a uma possibilidade consideravelmente reduzida de aprofundamentos.
 
Com intuito de materializar as limitações vividas por pessoas homossexuais nos contextos em que as narrativas se constroem, todos os homens com que o narrador se envolve — ou pelo menos compartilha de sentimentos homoafetivos em comum —  têm seus nomes suprimidos e demarcados somente por uma letra inicial. Uma boa forma de deixar clara a situação limítrofe vivida, mas que tem como resultado o igualmente limítrofe conhecimento acerca desses personagens. Ressalvo, então, que em se tratando de contos, nada disso que aponto seria um problema, porque as narrativas teriam início, meio e fim concisos como se espera para o gênero e os personagens também seriam explorados na medida do possível para situação comunicativa proposta.
 
“[...] E certamente não foi naquele momento que os sinos começaram a tocar, é um truque da memória encenar as coisas dessa maneira, mas é como eu me lembro, os pássaros levantando voo, todos se voltando para o Campanário, inclusive nós [...]”
 
O narrador-protagonista de Pureza, em todo o texto, apresenta-se com uma sinceridade até mesmo inesperada para alguém que vive com opressões internas e externas como é o caso dele. Assim, a despeito da expectativa de maior retraimento, o texto se adensa por questões existenciais e filosóficas sempre que o professor de literatura decide fazê-lo, conseguindo, como no trecho acima, em um curto espaço na mancha gráfica, propor reflexões razoáveis e bem-vindas sobre algumas certezas humanas. Neste caso, o próprio ato narrativo, como reprodução de alguns traços memorialísticos, é questionado, mas brevemente contornado para que o privilégio do contar sobre algo seja maior do que o de reproduzir algo; uma forma de ver a própria arte literária que aponta para melhores resultados.
 
Pureza é um livro, então, não se assuste o leitor, de leitura bastante recomendada. Contudo, a experiência pode ser enriquecida caso se tenha em mente que a obra é um livro de muito bons contos e não de um único romance. Nessa segunda opção, infelizmente, o que encontramos é uma tentativa de se atender a demandas de mercado que não foi bem-sucedida. Ler a obra com isso em vista parece-me ter mais indícios de compreensão dos textos do que uma leitura que busque relações outras entre as narrativas para além de detalhes puramente pontuais, como uma ou outra reaparição de personagens ou de pequenos acontecimentos. Isso, inclusive, é um detalhe considerado pela editora do texto no Brasil ao destacar que o livro pode ser lido como uma coletânea de histórias ou como um romance em três partes. De fato, há a possibilidade, mas esperar encontrar em Pureza um romance bem arquitetado enquanto tal é uma espera infrutífera.
 
Garth Greenwell mantém-se, portanto, como um promissor escritor, e as obras dele merecem permanecer entre os nossos radares. Talvez as tentativas de simples acomodação de um projeto literário a demandas de editores com seus padrões americanos se tornem uma agrura para autor. Observemos.
 
 
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Pureza
Garth Greenwell
Fabricio Waltrick (Trad.)
Todavia, 2023
224 p.


Notas:
1 Todas as citações da obra foram retiradas de: Greenwell, Garth. Pureza. Trad. de Fabricio Waltrick. São Paulo. Todavia, 2023.

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