Por Esther Seligson
|
Salman Rushdie. Foto: Franck Ferville |
“Não existe uma divisão estrita
entre realidade objetiva e subjetiva; a consciência e o universo físico estão
conectados por algum mecanismo físico fundamental. Esta relação entre mente e
realidade não é nem objetiva nem subjetiva, mas ‘omniobjetiva’”, escreve Michel
Talbot em Mysticism and the New Physics, muito apropriado para minha
introdução ao mundo omniabrangente do escritor Salman Rushdie (Bombaim, 1947),
hindu e inglês, ponte entre duas cosmovisções, a oriental e a ocidental, da
civilização, da cultura, do homem. Acrescentemos que foi educado sob a fé
islâmica “daquela maneira leve e preguiçosa dos bombainenses” — segundo uma das
suas personagens — e no espírito do comunalismo, da coexistência
harmoniosa entre hindus e muçulmanos.
Todo o contrário ao espírito
sectário, ortodoxo e fanático, paradoxo que explica porque é que este
extraordinário romancista (Vergonha, Os filhos da Meia-Noite, O
último suspiro do mouro), cuja linguagem é tão generosa e rica em nuances
como a de José Saramago, ou mais por sua múltipla identidade, entrou no índice
inquisitorial do Islã que o declarou sacrílego, apóstata, sedicioso, razão pela
qual é perseguido em todo o mundo.
Na realidade, Os versos
satânicos não são contra a religião — “Onde não há crença não há blasfêmia”¹ — mas contra os seus líderes, os imãs, os falsos profetas, os papas imbuídos da
sua infalibilidade, os autonomeados “mensageiros divinos”, portadores de
“revelações” de conveniência” alheias à tolerância para com outras revelações,
sem dúvida, de importância semelhante para os crentes nelas.
Como Thomas Mann, que se inspirou
no Pentateuco e em textos exegéticos judaicos para escrever seu famoso romance José
e seus irmãos, Salman Rushdie é bem versado no Alcorão e nos escritos
tradicionalistas que falam da vida e dos ensinamentos de Maomé, de modo que em Os
versos satânicos encontramos, no plano de fundo, versões históricas e
lendárias da herança cultural muçulmana intercaladas no hinduísmo com seu
requintado espectro de divindades que não fazem guerra entre si nem competem
por qualquer supremacia pois a Índia — “nesse país em que, até hoje, a
população humana supera a população divina na proporção de menos três para um” —
eclética e híbrida em sua arte e também no contexto de suas variantes
religiosas.
Assim, a literatura de Salman
Rushdie flui com incrível alegria e desenvoltura entre os estilos de As mil
e uma noites e os do Ramáiana e do Mahabharata,
apropriando-se, como no âmbito do cinema que conhece tal perfeição, dessa
particularidade cotidiana que faz os hindus viverem imersos no atemporal, ou
seja, numa espécie de holograma dentro do qual coexistem seus passados
históricos, épicos e lendários, e seus múltiplos presentes, assim como
línguas, etnias, castas, povos, seitas, convivendo em seu vasto território
carinhosamente chamado Mãe Índia. E basta contemplar as belas torres de
seus templos estampados com figuras de heróis, heroínas, deuses e deusas, ou
misturar-se com o povo dos bairros populares para perceber a paixão dos hindus
pelo cinematográfico em grande escala (a Índia é o país onde se rodam mais
filmes para consumo interno por ano), o espetacular, a fantasia transbordante,
a imaginação sem restrições racionais. Tem-se a impressão real de que qualquer
prodígio pode ocorrer apenas formulando-o, pensando nele, esfregando uma
lâmpada “um avatar de cobre e latão polido e brilhante do próprio recipiente do
gênio Aladim” como a que seu pai reserva para um dos dois personagens centrais,
Saladin Chamcha, e de onde surgirá o desfecho de Os versos satânicos.
Não é coincidência, então, que os
dois protagonistas sejam atores: Gibreel Farishta, um galã do cinema que
interpretou quase todos os deuses e heróis da épica hindu; e Saladin Chamcha,
cuja voz participou integralmente em todas as variantes de dublagem para rádio,
séries de TV (principalmente The Aliens Show) e publicidade comercial.
Duas personagens complementares em torno das quais giram muitas outras figuras
“vivas, reais e plenamente desenvolvidas”, mas que poderia tratar-se de
múltiplos desdobramentos das principais, criações decorrentes dos seus sonhos,
desejos, medos, leituras.
Pois bem, no final das contas, “a
ideia do eu como (idealmente) homogêneo, não híbrido, ‘puro’ — noção essa
absolutamente fantástica!” é um sofisma. Daí a cadeia literal dos protagonistas
ligados entre si por uma série de circunstâncias literárias aparentemente inverossímeis,
e nas quais parece que ninguém se sente confortável na sua própria pele —anti-heróis
—, exceto quando se apaixonam.
As criaturas de Salman Rushdie
estão “a meio caminho, pelo menos, entre o mortal e o divino”, entre o
angelical e o satânico, uma vez que “o mal não está tão longe das nossas
superfícies como gostamos de dizer que está”, “na verdade, tendemos para ele naturalmente,
isto é, sem contrariar nossa natureza”, que “o verdadeiro apelo do mal a
sedutora facilidade com que se pode tomar essa via”. Nesta “tese” reside um dos
perigos que Os versos satânicos representam para os guardiões da
ortodoxia — e não apenas a muçulmana —, intensa, profunda e encantadora reflexão
sobre a coexistência do bem e do mal nos seres humanos, e dos limites entre o
Bem e o Mal no contexto da ética, da religião e da sociedade. “Perigo” porque
para Rushdie o livre arbítrio, a vontade de escolher entre os caminhos do bem e
os caminhos do mal, é inerente ao ser humano; do que se deriva, não que não
haja necessidade de Deus para que imponha a escolha aos homens e mulheres, mas o
que está na superfície, os assim chamados “guias espirituais” com as suas
pretensões de encarnar a Palavra de Deus, pretensões que são um mero narcisismo
e uma voraz fome de Poder. Rushdie também não nega os milagres que são produto
do misticismo pessoal, da visão interna que cada pessoa pode ter de Deus.
Para ele, na luta entre o bem e o
mal só existe um caminho de redenção: o amor, “o desejo por alguém, o dissolver
dos limites do eu, o desabotoar até você estar perto do pomo-de-adão aos
fundilhos”. Perdoar, renunciar ao ressentimento para “alcançar a liberdade”.
Numa linguagem irónica, de humor
hilariante e bastardo, de escárnio que não é blasfemo mas à maneira dos bobos
de Shakespeare, que se despem e insultam para fazerem cair as máscaras, o
enredo de Os versos satânicos — um dos muitos enredos — parte de uma
proposta: a possibilidade de nascer de novo, ou seja, de a nossa forma de viver
num determinado momento mudar radicalmente de rumo sem perder o que fomos,
seria o que não foi vivido, o que não foi feito, o que foi adiado, poderia ser
resolvido graças a uma nova oportunidade [barco que estava à deriva e cuja
bússola de repente aponta o caminho que você sempre quis seguir]? De que
componentes da vontade humana — e do caráter — depende esta reorientação? “Que
tipo de ideia é essa? É do tipo que concede, negocia, acomoda-se à sociedade,
quer encontrar um nicho, sobreviver; ou é aquele tipo de ideia idiota, rígida,
insistente, maldita, que prefere partir-se a curvar-se com a brisa?”
No mundo omniobjetivo de Rushdie
não existe linha divisória entre o sonho e a vigília, o normal e o fabuloso, o
habitual e o mágico. Na sua essência o ser humano é um sobrevivente, um
desertor de si mesmo, um exilado; daí sua propensão satânica, visto que, como
aponta a epígrafe de Os versos satânicos, Satã é um anjo “confinado
assim à instável condição de vagabundo, sem rumo, não possui morada certa; pois
embora tenha, como consequência da sua natureza angélica, uma espécie de império
na vastidão líquida ou no ar” que também define a condição humana: “criaturas
do ar”, com “raízes nos sonhos” capazes de se afundar em rios de sangue para
dar corpo e realidade a esses sonhos.
Assim, por exemplo, o fanatismo
intransigente, quase obsceno, do imã em sua sede de tornar realidade a palavra
de Alá; ou a de Ayesha, a virgem visionária vestida de borboletas cuja
obediência à voz do arcanjo desenraiza todo um povo para quem ela “era o cumprimento
da esperança há muito abandonada e trazida de volta pelo retorno das
borboletas, e a prova de que grandes coisas ainda possíveis nesta vida, mesmo
para os mais fracos e pobres da Terra.” Porém, “alguma coisa deve estar
profundamente deslocada na vida espiritual do planeta, pensou Gibreel Farishta.
Demônios demais dentro das pessoas que alegam acreditar em Deus.”
Salman Rushdie é, além disso, um
feroz denunciante dos flagelos que assolam a nossa civilização pós-moderna: a
corrupção, individual e coletiva, a impunidade com que o aparelho de Estado e
os seus responsáveis violam os direitos humanos, a brutalização causada pela
televisão, a videomania pornográfica e a universos alienantes da publicidade e
do jornalismo, os cenáculos de falsos devotos, falsos poetas, falsos
intelectuais, a impostura de líderes religiosos, políticos e sociais com o seu
racismo emboscado. Duas cidades, Bombaim e Londres, representam em Os versos
satânicos o auge da perversão, da indiferença, do acúmulo de desperdícios
não recicláveis — o lixo humano e o lixo, lixo —, o labirinto infernal da
solidão e da loucura, da exploração, da traição impune. E, no entanto,
dir-se-ia que precisamente por estas características a única possibilidade de
redenção está na cidade, o umbigo cósmico do “triunfalismo materialista” que, tal
como a cobra alquímica quando se enrola e morde a cauda, se transforma no seu
complemento escatológico: o anseio pela espiritualidade. “Aspiramos ao sublime,
mas a nossa natureza nos trai.”
A metáfora dessa redenção está na subida
ao Everest feita por Allie Cone, a protagonista judia que ama Gibreel Farishta.
O jogo que se entrelaça entre o pico mais alto do Himalaia e o Everest Villas,
o arranha-céu mais alto de Bombaim, no região mais elegante e mais rica, em
cujo último andar mora Gibreel, é, no romance, um dos exemplos da originalidade
com que Rushdie escreve, entrelaçando imagens como se estivesse polindo sem soltar
o buril, faceta após faceta, um gigantesco diamante para revelar sua luz — “A
matéria nada mais é do que luz presa gravitacionalmente”, diz uma citação do
livro de Talbot mencionado —, sua beleza, a poesia e o amor subjacentes ao
Universo. “Sabe por que eu subi lá de verdade?”, pergunta Allie: “para escapar
do bem e do mal”, “porque para lá é que foi toda a verdade, acredite se quiser,
a verdade simplesmente subiu e fugiu dessas cidades onde até o chão debaixo dos
nossos pés é todo fabricado, é uma mentira, e se escondeu lá em cima, no ar muito,
muito rarefeito, onde os mentirosos não têm coragem de ir atrás dela com medo
de explodir os miolos.”
Assim como Gibreel e Saladino são
faces da mesma moeda, a Cidade e o Everest, também a aparente, embora real,
incompatibilidade entre os seres humanos, seus ódios e amores, ciúmes, raiva,
inveja — essa “pequena pilha podre de inveja: ela queima verde na noite” — que
os levam ao crime, às drogas, à fraude, ao mal, em suma, à profanação por
excelência. Contudo, “a decisão de fazer o mal nunca é tomada definitivamente
até o próprio momento do ato: sempre existe uma última chance de retirada”. E é
essa oportunidade possível que dá também aos homens e às mulheres a sua
dignidade e grandeza, pois, de fato, é delas que Rushdie fala sob a fúria das
paixões que se desencadeiam nas ruas e nos edifícios das cidades, na mente e no
fígado de suas personagens. Nem o bem nem o mal são absolutos; confusão, dúvida
e fé coexistem simultaneamente, omniobjetivamente: “Nada dura para sempre […]
Talvez a infelicidade seja o continuum no qual transcorre a vida humana, e a
alegria apenas uma série de bips, de ilhas na corrente. Ou se não a
infelicidade, ao menos a melancolia.”
Os versos satânicos,
um livro apaixonado e apaixonante que exige total abertura do leitor, é uma
imagem impiedosa do nosso mundo pós-moderno; uma imagem que se vê em mil
espelhos deformados que provocam riso, lágrima, raiva, ternura, espanto, e
deixam a certeza final de que o amor pode desenvolver “um poder tão humanizador
quanto a raiva; que, tanto quanto o vício, a virtude [é] capaz de transformar
os homens”; certeza de que “apesar de todos os seus erros, de sua fraqueza, de
sua culpa — apesar de sua humanidade”, cada um sempre tem “uma outra chance”. É
claro que, desde que aceitemos o risco de exercer o nosso livre arbítrio — o
que significa a capacidade de dar um sentido transcendente à própria vida — um
risco que a maioria prefere não correr, entregando-se pacificamente aos braços
da satânica Submissão.
Ligações a esta post:
______
Os versos satânicos
Salman Rushdie
Misael H. Dursan (Trad.)
Companhia de Bolso/ Companhia das Letras, 2008
600 p.
Notas da tradução
1 Todas as citações de Os versos satânicos neste texto são da tradução de Misael H. Dursan (Companhia das Letras, 2000).
* Este texto é a tradução livre de “Los versos satánicos”,
do livro A campo traviesa, de Esther Seligson (FCE, México, 2005)
Comentários