Por Guilherme França
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Cristovão Tezza. Foto: Alexandre Mazzo. |
Recordo que certa vez conversava
com um amigo sobre escritores brasileiros e passamos a refletir sobre a
influência ou mesmo necessidade do meio acadêmico para a produção de obras
literárias. E como que puxando escritores pelo pensamento fomos percebendo que,
ao menos no Brasil, poucos ou pouquíssimos escritores haviam saído do mundo
acadêmico “propriamente dito”. Ou seja, poderiam até ter passado, como alunos,
por cursos de graduação aqui ou ali, mas não eram professores universitários, pesquisadores
etc.; aliás, Machado de Assis, o maior literato brasileiro, nunca esteve nos
bancos da academia escutando uma aula de literatura preparada por um professor
com extensa lista de diplomas.
Este fato me lembra uma música de
Gabriel o Pensador sobre outra das minhas paixões, o futebol, cuja letra, se
referindo às qualidades de um jogador, diz em um trecho: “futebol não se
aprende na escola”. A literatura se aprende na escola, sim. Mas me parece que a
escrita literária e toda a magia que a cerca, precisa de algo diferente, que
talvez não esteja à livre disposição na vida acadêmica. Algo que a técnica pura
e simplesmente não pode fornecer. Eis aqui a missão aparentemente distinta de
um docente da área de Letras e de um escritor.
Isto para dizer que na obra O
professor, de Cristovão Tezza, temos a união destas duas condições, uma vez
que o autor foi professor universitário por muitos anos, primeiro na
Universidade Federal de Santa Catarina e posteriormente na Universidade Federal
do Paraná, instituição que deixou em 2009, para se dedicar exclusivamente à
atividade da escrita.
Quanto ao enredo do livro, este é
parecido com outras obras clássicas e que particularmente me agrada: um homem
que caminha para o terço ou quarto final da vida e resgata memórias sobre o que
foi até ali. No caso, este homem é Heliseu, um professor universitário que receberá
uma homenagem em reconhecimento aos feitos de sua carreira na universidade e
que, por isso, percebe que precisa preparar um discurso. No entanto, ao pensar
sobre o que poderá dizer na frente de todos, se afunda em recordações e
problematizações sobre o seu passado, revivendo, num sentimentalismo que leva o
pensamento para longe, os caminhos percorridos até então.
Neste ponto, o livro se assemelha
com obras como A morte de Ivan Ilitch, Diário de um homem supérfluo
e Memórias do subsolo, por exemplo. Não é um formato “novo” na
literatura, portanto, esta análise da vida em perspectiva, quando o sujeito
passa a refletir sobre a própria existência em busca do sentido do vivido, num
desejo desesperado de “atar as duas pontas da vida”, como dito na obra de
Machado.
As memórias do personagem giram
majoritariamente em torno de suas conturbadas e confusas relações pessoais: i)
com a ex-esposa, falecida em contextos duvidosos; ii) com o seu filho, que teve
a homossexualidade não muito bem aceita pelo pai e decidiu sair do país; iii) com
o próprio pai, sujeito austero com nítido impacto em sua personalidade e iv)
com uma aluna da universidade, Thèreze, anos mais nova que ele, que o procura
para um programa de doutorado e com a qual acaba vivendo uma relação amorosa.
Para além disso, sobram algumas recordações sobre conversas na salinha do café
da universidade.
Ponto relevante e positivo do
texto é o fato de que as memórias abordadas pelo personagem parecem, de fato,
condizentes com a vida de um homem normal, que viveu sua vida com momentos de
alegria, de tristeza, teve problemas familiares, conquistas profissionais e
coisas afins, mas sem a descrição de quaisquer eventos homéricos — o que se
espera de uma vida comum, que é a própria vida, enfim.
Quando cita a sua vida no
cotidiano acadêmico, ironiza, com uma sutileza perceptível pelo leitor mais
atento, vários aspectos que comumente são tidos como relevantes dentro dos
corredores universitários mas que, na verdade, não passam de reforços para o
ego, vaidades burocráticas e quejandos, elementos que qualquer um que tenha
convivido de perto com a academia sabe que tem sua dose de verdade. Eis mais um
toque de realismo na obra.
Interessante notar que em um
estilo quase proustiano, toda a reflexão de Heliseu, que dura do início ao fim
do livro, ocorre em apenas numa manhã: desde o abrir dos olhos, passando pelo
café da manhã, banho, escolha da camisa, tentativa de fazer um nó de gravata,
enfim. Quando se vê pronto para sair e receber a tal homenagem acadêmica, as
reflexões estão encerradas — assim como o livro.
Sobre a técnica narrativa adotada,
a história é contada em uma alternância de narradores: ora o próprio Heliseu,
personagem principal, descreve suas memórias, ora um narrador onisciente toma a
posição. Este fator não chega a atrapalhar a leitura, mas para um leitor menos
acostumado com narrativas mais criativas, a recorrente interrupção dos cenários
pode causar incômodo na primeira parte da obra. Entretanto, ao longo do texto,
o leitor se acostuma e o formato passa a soar até mesmo interessante.
Dito isto, cabem algumas
considerações. Primeiro, nota-se que embora os temas abordados sejam
interessantes, eles demonstram uma baixa profundidade nas reflexões do
personagem. Isto pode ocorrer porque, diferente dos clássicos citados acima, Heliseu
não se vê no fim da vida, narrando, com calma, o que vem à mente, mas sim em
uma reflexão matinal, atribulada, contínua e anacrônica.
Talvez este elemento seja escolha
do autor, talvez seja uma adequação à proposta e ao tamanho da obra, enfim.
Fato é que diversas citações ou reflexões do personagem são propositalmente inacabadas,
ao que parece de forma infeliz, pois deixa no leitor a sensação de que a obra poderia
dizer mais do que diz e, consequentemente, impactar mais do que efetivamente
impacta, algo como ocorre, a meu ver, com a obra Knulp, do magistral
Hermann Hesse, onde o autor alemão introduz o leitor a várias reflexões,
mas que somente serão dissecadas em suas obras posteriores.
Quem sabe fosse preferível dar
mais espaço, abrangência e profundidade às memórias do personagem do que à presença
(em muitos momentos forçada) de aspectos técnicos da vida profissional do
personagem e do autor, ambos professores universitários da área de Letras. A
obra não sentiria falta das inúmeras passagens sobre linguística e temas afins,
o que torna, inclusive, a leitura um tanto repetitiva em alguns momentos.
A respeito da abrangência das
reflexões, como já dito, os dramas vividos são reais e factíveis na vida de
qualquer pessoa, entretanto, tendo em vista que por mais de uma vez o
personagem diz estar procurando “o sentido da vida”, parece estranho que em um
percurso tão relevante como este, Heliseu gaste todo o tempo recordando apenas
de relações amorosas ou familiares, ou de comentários aleatórios de colegas de universidade,
temas que permeiam quase a totalidade do livro.
Os diálogos com Thèreze, por
exemplo, quase que engolem a narrativa na segunda parte do livro; contudo, se
Heliseu pensava apenas nisso em um dia tão importante, há de se convir que este
aspecto o torna como que um analfabeto existencial, com uma pobre
capacidade de percepção da própria vida, que em setenta anos, se vê resumida em
alguns conflitos sentimentais e sexuais presentes em um jovem de dezessete.
Pelas razões acima, O professor,
de Tezza, agrada, mas somente. A escrita, como era de se esperar de alguém que
viveu para as Letras, é boa e criativa, até mesmo cativante em certos trechos.
Porém, fica a sensação de que Heliseu, um personagem interessante e com
acontecimentos aptos a gerar reflexões e problematizações profundas, poderia ter
trazido muito mais impacto com suas memórias. Se a sua vida foi comum, o mesmo
pode ser dito dos pensamentos que teve naquela manhã.
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O professor
Cristovão Tezza
Record, 2014 (3 ed.)
240 p.
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