Por Norbert Czarny
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Milan Kundera. Foto: Ferdinando Scianna. |
Pouco depois da publicação de
A
insustentável leveza do ser, indiquei a Milan Kundera que a nota biográfica
na contracapa do livro afirmava que ele nascera em Praga. “Mas você é de Brno, não é?” Ele
sorriu para mim e, com seu sotaque arrastado, rolando os erres, disse: “Tudo
bem, isso não é importante.”
Tudo o que tinha a ver com a sua
biografia lhe era indiferente. Não queria que a Pléiade contivesse a menor
indicação biográfica. Uma nota sobre a obra, para ele, já era o suficiente. E é
isso que escreve em
A arte do romance: “Romancista (e sua vida). Pergunta-se
ao romancista Karel Čapek por que ele não escreve poesia. Sua resposta: ‘Porque
detesto falar de mim mesmo’. Hermann Broch sobre ele, sobre Musil, sobre Kafka:
‘Nós três não temos uma biografia verdadeira’. O que não significa que a vida
deles fosse pobre de acontecimentos, mas que não era destinada a ser
distinguida, a ser pública, a virar biografia.”
1
Depois de nossa conversa sobre a
capital da Boêmia e da Morávia, nunca mais o vi ou soube dele. Não só eu: todos
que queriam entrevistá-lo, saber mais sobre ele e o que pensava, foram
rejeitados. Cito suas palavras: “Entrevista. [...] 1) o entrevistador faz a
você perguntas interessantes para ele, sem interesse para você; 2) de suas
respostas, ele utiliza apenas aquelas que lhe convêm; 3) ele as traduz para seu
vocabulário, na sua maneira de pensar. Imitando o jornalismo americano, ele não
se dignará nem mesmo a fazer com que você aprove aquilo que fez você dizer. A
entrevista aparece. Você se consola: será esquecida depressa! Absolutamente:
ela será citada!”
Não queria existir como figura
pública, nem correr o risco de se tornar uma “celebridade”. Apareceram e
aparecerão livros que iluminarão o homem, com anedotas, momentos, palavras de
humor. Antes de chegarem às livrarias, vamos nos contentar em apenas lembrar
que tipo de comunicador era. Chegou a Rennes para lecionar literatura
comparada, onde Dominique Fernandez e Albert Bensoussan o apresentaram ao corpo
docente. Tornou-se professor da EHESS, dirigida na época por François Furet,
que teve muito interesse que ele lecionasse nessa faculdade. Entre os
romancistas que Kundera convidou para participar de seu seminário estavam
Danilo Kiš, Tadeusz Konwicki e Kazimierz Brandys. Petr Kral falou sobre o
surrealismo tcheco. A roteirista e diretora Agnieszka Holland apresentou
Danton,
escrito com Andrzej Wajda. O Muro de Berlim ainda não tinha caído, e os debates
sobre a revolução ainda eram intensos.
Mas o próprio Kundera não foi
conhecido e reconhecido por outro intermediário? Já em 1972, Philip Roth
conheceu escritores da Europa Central e criou uma coleção na Penguin para
apresentá-los ao mundo anglo-saxão. A amizade entre os dois romancistas nunca
acabou e, numa entrevista a Jean-Pierre Salgas, Philip Roth fez uma promessa
post
mortem ao autor de
A brincadeira.
Kundera não suportava os holofotes
da televisão e muito menos dos “debates de ideias”. O tempo deu-lhe razão, pois
estes “debates”, com raras exceções, transformaram-se em espaços para egos,
emoções e reações. Ou monólogos paralelos. Ele previu isso.
Tive a sorte de ter Milan Kundera
como professor na EHESS. Durante cinco anos assisti às suas aulas e o que lhe
devo da aprendizagem continua a me marcar quarenta anos depois. Não quero dizer
nada sobre o homem que conheci, nem posso: era cortês, modesto, engraçado,
impressionantemente inteligente e rigoroso. Algumas palavras sobre o seu temperamento.
Ele tinha aquele sentido de humor da Europa Central que partilhávamos,
naturalmente, ou quase. Ele vinha de uma pequena nação presa entre potências
predatórias e, sem abusar do adjetivo, imperialistas. Para um país tão frágil,
a ameaça era constante e, no início da década de 1980, a Tchecoslováquia vivia
sob o jugo da União Soviética.
Esta Boêmia, como ele a chamava, embora
fosse morávio, sempre foi um terreno fértil e, desde o formalismo de Jakobson
até Kafka, Jaroslav Hašek e Bohumil Hrabal, sem esquecer Janáček (que também
nasceu em Brno) e o filósofo Jan Patočka, são inumeráveis os intelectuais e
artistas que deram status àquele país. Acrescentemos à lista, entre outros, os
cineastas Miloš Forman, Ivan Passer e Agnieszka Holland. Kundera foi deles
professor de roteiro na Escola de Cinema e Televisão de Praga, FAMU. Seu
conselho era paradoxal: escrevam histórias que não possam ser filmadas. A
partir daí surgirão momentos maravilhosos e diferentes em
Os amores de uma
Loira ou em
Iluminação íntima.
No entanto, Kundera deve ser
colocado no lugar certo, começando por dar-lhe a identidade que sempre
reivindicou: a de romancista. Este termo aparece com recorrência na maior parte
de seus ensaios e nas entrevistas que concedeu. O romancista não é o “escritor
de prosa” no sentido evocado por Sartre. A diferença é importante, e ele deixa
clara em
A arte do romance: “o escritor tem ideias originais e uma voz
inimitável. Ele pode se servir de qualquer forma (romance inclusive) e tudo o
que ele escreve, sendo marcado por seu pensamento, levado por sua voz, faz
parte de sua obra. Rousseau, Goethe, Chateaubriand, Gide, Malraux, Camus,
Montherlant.”
“O romancista não faz muito caso
de suas ideias. Ele é um descobridor que, tateando, se esforça para desvendar
um aspecto desconhecido da existência. Não está fascinado por sua voz mas por
uma forma que ele persegue, e só as formas que correspondem às exigências de
seu sonho fazem parte de sua obra. Fielding, Sterne, Flaubert, Proust,
Faulkner, Céline, Calvino.”
“O escritor se inscreve no mapa
espiritual de seu tempo, de sua nação, no mapa da história das ideias.”
“O único contexto em que se pode
apreender o valor de de um romance é o da história do romance europeu. O
romancista não tem contas a prestar a ninguém, salvo a Cervantes.”
Repetem-se os mesmos nomes que
marcaram a sua juventude: Rabelais, Cervantes, Diderot e Sterne. Encarnam o que
ele chama de “o primeiro tempo do romance”. Neste primeiro tempo, o escritor
continua a brincar com a forma. A verossimilhança não é um critério absoluto:
Sancho Pança pode perder cento e três dentes, e o narrador de
Jacques, o fatalista,
esquece de nomear a batalha em que Jacques foi ferido no joelho. Tal
despreocupação é inimaginável em Balzac ou Zola. Enquanto isso, os cânones do
gênero romanesco mudam, e os tempos com eles. Cervantes e Diderot gozavam de
grande liberdade; não se sentiam obrigados a contar tudo, principalmente o que
lhes parecia tedioso. O romance pós-Balzac não conhece ou não pode evitar a informação, as descrições, a atenção inútil aos momentos enfadonhos da vida, o psicologismo que dá a conhecer de antemão todas as reações das personagens, enfim, a falta fatal de poesia.
Poesia, fantasia, inventividade,
jogo, liberdade, ironia. Esses são alguns dos termos que se repetem nos textos
“teóricos” do nosso escritor. Coloquei entre aspas o
teóricos: enquanto
nós, estudantes de literatura, nos afogávamos em textos abstrusos e cheios de
termos reapropriados da ciência, Kundera escrevia numa linguagem clara e
estruturada que um estudante do ensino médio poderia compreender facilmente.
“Quanto mais culto, mais tolo”, dizia o seu querido Gombrowicz. Isto era
verdade para um dos seus alvos favoritos, os “kafkólogos”, ou pelo menos alguns
deles, como Deleuze e Guattari.
Os romancistas que ele amava
encarnam a “sabedoria da incerteza” própria dos tempos modernos, quando o
domínio do dogma é minado: “Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade,
ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas
que se contradizem (verdades incorporadas em
egos imaginários chamados
personagens), ter portanto como única certeza a
sabedoria da incerteza,
isso não exige menos força”. Esta força é também uma luta contra o que Rabelais
chama de “agélastes”, aqueles que não riem, aqueles que não têm sentido de
humor. Em seu artigo sobre a ironia, Kundera cita Joseph Conrad: “Lembre-se,
Razumov, que as mulheres, as crianças e os revolucionários execram a ironia,
negação de todos os instintos generosos, de toda fé, de toda devotamento, de
toda ação!” É onde estamos agora mais do que nunca, não importa para onde você
olhe. (Mas perdoemos as mulheres e as crianças).
Kundera evoca à sua maneira os agélastes
e os revolucionários em
A brincadeira, seu primeiro romance. Eles leem o
cartão postal enviado por Ludvik à mulher que ama. Leem porque foi dado por ela.
Sabemos o que acontecerá depois na Tchecoslováquia dos anos cinquenta. O herói
é punido, desterrado.
No que diz respeito à poesia, o
termo requer desenvolvimento e explicação. Kundera abriu caminho e suscitou
muita polêmica em torno da palavra
lirismo. Comecemos por dizer que ele
não gostava muito de brincar com as palavras, não sentia qualquer ligação ou
interesse pela poesia romântica francesa. Ao que se poderia responder que um
Ponge, um Michaux ou um Tardieu estão longe de tais excessos do coração. Mas
deixemos de lado as flechas e voltemos às suas palavras exatas de 1984 em
La
Quinzaine littéraire: “Acredito que um romancista nasce sempre na casa
demolida do seu lirismo. Então destruí meu lirismo. Eu tinha pouco mais de 25
anos. Esse período é a metade da minha vida, a sua cesura. Tudo o que aconteceu
antes é para mim uma pré-história, só interessa ao conhecimento que posso ter
de mim mesmo.”
2
O melhor exemplo dessa
desconfiança na poesia, em todos os seus excessos, é
A vida está em outro
lugar. Jaromil foi criado como um futuro Rimbaud; tornou-se informante,
colocou-se a serviço do regime e traiu tudo de subversivo que a poesia pudesse
ter. Macula esse lirismo com expressões como “ter coração” e “sofrer pelos
outros”. Uma passagem do romance é ainda mais eloquente: “O muro, atrás do qual
homens e mulheres estavam presos, estava inteiramente coberto de versos e,
diante dele, as pessoas dançavam. Ah não, não uma dança macabra. Aqui dançava a
inocência! A inocência com seu sorriso ensanguentado.”
3 A imagem da
dança, que se repete no
Livro do riso e do esquecimento, é sinistra.
Porém, além de ter publicado
poesia, numa obra que considerou inacabada e nunca voltou a reeditar, Kundera
adorava um certo tipo de poesia. Em particular a de Apollinaire, que ele
traduziu, e a de Vladimír Holan e Jan Skácel. Não é de estranhar. Sempre
defendeu um certo tipo de arte moderna, inventiva, que se abria ao novo sem
negar nem destruir o clássico: “Desde muito jovem fui um apaixonado pela arte
moderna, sua pintura, sua música, sua poesia. Mas a arte moderna foi marcada
pelo seu ‘espírito lírico’, pelas suas ilusões de progresso, pela sua ideologia
de dupla revolução, estética e política, e tudo isto, pouco a pouco, foi me
desgostando dela. O meu ceticismo em relação ao espírito de vanguarda, contudo,
não conseguiu mudar o meu amor pela arte moderna.” (tradução nossa).
É por isso que Kundera pode ser
considerado um moderno antimoderno. Não reverencia a modernidade como o
Ocidente. Ele não compartilhava do entusiasmo dos surrealistas, por exemplo, e,
ao contrário deles, lia e apreciava Anatole France. Assim que releu
Os
deuses têm sede à luz de sua experiência na Tchecoslováquia como jovem
militante comunista. Sente-se reconhecido em Brotteaux, o homem “que se recusava
a acreditar”. E fica fascinado pela posição do romancista: “Não, o romancista
não escreveu o seu romance para condenar a Revolução, mas para examinar o
mistério dos seus atores, e com ele outros mistérios, o mistério da comédia que
se transforma em horrores, o mistério do tédio que acompanha as tragédias, o
mistério do coração que se alegra com as cabeças decepadas, o mistério do humor
como último refúgio do humano…” (tradução nossa). Ele faz a conexão entre a
França e Diderot ou Voltaire, o que não é surpreendente, mas que muitas vezes é
considerado como uma censura, como a incapacidade da França de se situar no seu
tempo, encará-lo de frente, quando na realidade, para Kundera, é um dos que
melhores fazem isso.
Em
Os testamentos traídos,
esta releitura oferece outro olhar sobre o que acreditam, pensam e leem do lado
ocidental da Europa. Como romancista, Kundera tem uma visão do gênero que
lembra a de Hermann Broch, um de seus mestres. O autor de
Os sonâmbulos
não quis permanecer confinado no contexto da “Mitteleuropa”, e o compara a
Zweig e Schnitzler. Seus iguais ou modelos foram Gide e Joyce. Em
Os testamentos
traídos, Kundera relata a visita a Praga de Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes
e Julio Cortázar. Uma misteriosa alquimia aproximou a sua Europa Central da
América Latina. O barroco, que chegou à América Latina como a arte do colonizador
e à Europa Central com a repressão da Contrarreforma, uniu-os, e uma bela frase
resume este encontro: “Vi duas partes do mundo iniciadas na misteriosa aliança
do mal e da beleza.”
Não é surpreendente que ele tenha
reconhecido a importância do trabalho de Patrick Chamoiseau, sobre quem escreve
em
Um encontro, ou que tenha apoiado Salman Rushdie assim que
Os versos
satânicos foram publicados; nem é surpreendente, tendo em conta tudo o que
foi dito acima, que tenha defendido Hrabal quando o escritor publicou livros à
sombra do regime comunista: “Um único livro de Hrabal presta um serviço maior
às pessoas, à sua liberdade de espírito, do que todos nós com a nossos gestos e
proclamas de protesto”, escreve. O apolitismo do seu contemporâneo tornou-se
uma arma, mas sobretudo o seu humor e a sua imaginação, contra a ideologia que
nivela e toma tudo pelo seu valor literal. Fora essa já a resposta de Švejk, de
Jaroslav Hašek, aos seus mestres e líderes.
Há algo de paradoxal nesta
homenagem. O adjetivo que uso era uma das palavras favoritas do nosso
romancista. Pouco se fala dos seus romances, da sua forma de combinar intriga e
reflexão, poesia e prosa, por vezes a mais trivial, herança de Rabelais e
Gombrowicz, história e sonhos. Falamos sobre a sua concepção de literatura, a
sua rejeição da politização e da “peopolização”, e terminamos com um debate
sobre a tradução. Kundera escreveu seus últimos romances em francês. Não têm o
alcance de seus grandes romances até
A imortalidade, e podemos até nos
perguntar sobre
A festa da insignificância. O seu apego à língua e ao
país que o acolheu era muito forte. Tanto que durante os anos de seminário
decidiu revisar todas as traduções de seus romances. Começou com
A
brincadeira, e o relato que faz da sua descoberta do texto é divertido: “Na
França, o tradutor reescreveu o romance, embelezando meu estilo. Na Inglaterra,
a editora cortou todas as passagens reflexivas, apagou os capítulos
musicológicos, mudou a ordem das partes e recompôs meu romance. Em outro país.
Encontro meu tradutor: ele não sabe uma palavra de tcheco. ‘Como você
traduziu?’ Ele responde: ‘Com o coração’, e me mostra minha foto, que tira da
carteira. O resto está em
Os testamentos traídos.
Kundera não quis que na edição de
La Pléiade aparecessem comentários ou notas. Para ele, bastava o que havia
escrito, e os ecos encontrados em seus ensaios eram o melhor comentário sobre
seus romances, pois eram uma reflexão sobre esse gênero tão querido e tão amplamente
praticado. Razões não faltam para reler Kundera, com ou sem comentários.
Agora ele é “domu”, em casa, em
tcheco. Redescobriu a língua da sua infância, as alegrias da sua juventude, e
ouve, nos céus,
Sur un sentier broussailleux do seu querido Janáček.
Notas da tradução
1 O excerto e outros no decorrer
do texto provenientes de
A arte do romance são da tradução de Teresa
Bulhões Carvalho da Fonseca (Companhia das Letras, 2016).
2 Tradução nossa. É possível ler a
entrevista na íntegra
aqui (em francês).
3 O excerto é da tradução de
Denise Rangé Barreto (Companhia das Letras, 2012).
* Este texto é a tradução livre
para “L’héritage de Milan Kundera”, publicado aqui em Mediapart.
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