Escrita e exílio em Serguei Dovlátov

Por Marta Rebón


Sergei Dovlatov Foto: Mark Serman



Com menos de cinquenta anos de idade, em 1990, Dovlátov morreu no seu exílio em Nova York, resignado a aumentar a lista de escritores russos cuja obra moldou a experiência do desterro. Autores tão diversos e de diferentes épocas como Aleksandr Púchkin, Mikhail Lérmontov, Marina Tsvetáeva, Gaito Gazdanov, Vladimir Nabokov ou Joseph Brodsky são um bom exemplo disso. Não foi à toa que um escritor afirmou que os russos parecem ter o monopólio do exílio.
 
Em O ofício, uma espécie de livro de memórias, ou melhor, uma tragicomédia autobiográfica, composta por duas partes muito distintas (uma soviética e outra americana), o brilhante escritor humorista de origem judaica e armênia capta as contradições do homo sovieticus tanto em seu país natal como na expatriação. O resultado é uma coleção de situações grotescas, diálogos imprevisíveis e indivíduos surreais imersos numa realidade que contrasta de forma dolorosa e jocosamente com os dogmas inculcados pelo regime soviético.
 
A primeira parte, “O livro invisível”, foi escrita ainda em Leningrado, entre 1975 e 1976, e foi o primeiro título de Dovlátov publicado no Ocidente. Intercalado por fragmentos que chama de “Solos de Underwood” — vinhetas cotidianas marcadas pela irracionalidade, breves lampejos do desvario soviético —, a narrativa relata as tentativas fracassadas do autor, desde a década de 1960, de ver sua obra publicada em sua terra natal e seu progressivo domínio, muito a despeito de si mesmo, da arte de ver os seus manuscritos rejeitados, repetidamente confrontados com um granito não. Cartas editoriais de recusa, resenhas e matérias de leitura, que embora favoráveis ​​sempre terminam com o veredicto de “impublicável”, levam-no a buscar refúgio no jornalismo e no álcool.
 
A escrita da segunda parte, “O jornal invisível”, corresponde aos anos de 1984 e 1985, já instalada no Queens, no bairro de língua russa de Forest Hills, e centra-se na sua vida nos Estados Unidos, no também paradoxal American way of life e nas circunstâncias que cercam a criação de The New American, uma publicação que ele fundou com outros emigrados russos para a comunidade expatriada.
 
Dovlátov pertenceu a uma geração esperançosa ante certos sinais de abertura, como os que permitiu acesso às obras censuradas de Mikhail Bulgákov, Yuri Olesha, Andrei Platônov ou Isaac Bábel e às traduções de Ernest Hemingway, Thomas Mann, William Faulkner ou J. D. Salinger. Os jovens escritores soviéticos, convencidos de que faziam parte da comunidade literária internacional, cultivaram um estilo e uma linguagem que os colocavam anos-luz à frente dos seus antecessores, atolados nos clichês do realismo socialista.
 
A discrepância deslocou-se sobretudo para o plano estético: queriam devolver à literatura russa a primeira pessoa do singular, o elemento fantástico, as emoções genuínas, a ironia, a conversa de rua. “O verdadeiro artista reconstrói em profundidade, sem medo ou preconceito, a história do coração humano”, sentenciou Dovlátov. Os criadores mais polêmicos foram convidados a solicitar um visto de saída, e nosso autor, entre o muro e a espada (desempregado, perseguido, censurado e alcoólatra) deixou a União Soviética em 1978.


 
Assim, passou a engrossar a chamada “terceira onda” da emigração russa. Em todo o caso, a decisão não foi fácil: “Preparar-se para a emigração é impossível. Impossível preparar-se para um segundo nascimento. Impossível se preparar para a vida após a morte. Resta apenas resignar-se.” Dessa maneira Nova York se tornou a sua nova e última pátria, juntamente com a sua esposa e filha, esta última encarregada de traduzir recentemente algumas das obras do seu pai para o inglês. Aí pelo menos se encontrou satisfeito com o seu “direito inalienável de publicar” seus textos notáveis ​​por seu humor mordaz, um toque de melancolia e linguagem simples, mas contundente.
 
Segundo Georgi Vladimov, autor do magnífico romance O fiel Ruslan, “apenas alguns jovens autores aprenderam a carregar o peso da liberdade e, entre eles, destacaria Dovlátov. […] Acredito que não ele tenha publicado uma única linha na União Soviética. Mas, de alguma forma, compreendeu que a liberdade não deve ser desperdiçada [...] É, simplesmente, um mestre nascido na emigração”.
 
Ao longo de pouco mais de uma década, antes de sua morte repentina, seus títulos que já são destacados na contemporaneidade como A zona, A troca, Os nossos e A estrangeira vieram à luz nos Estados Unidos. Sobre seus fracassos pessoais e literários na União Soviética e os problemas entre os estadunidenses, a dificuldade de se adaptar a uma terra e à língua estrangeira, em O ofício nos fala um autêntico Dovlátov.
 
Além de ser um compêndio de anedotas pessoais, que começa com o seu nascimento em 1941 em Ufa, onde os seus pais se refugiaram durante a guerra, O oficio também é lido como um emotivo testemunho das difíceis experiências de toda a sua geração. No prefácio já adverte: “Não vou me matar nessa composição. De uma maneira confusa, longa e pouco articulada, tentarei descrever minha biografia ‘artística’. Serão as peripécias de meus manuscritos. Retratos de conhecidos. Documentos…”1
 
Edward Said qualificou de contrapontística a literatura do exílio. Dentro da produção dovlátoviana, talvez seja nesta obra que diferentes partes melódicas são mais claramente combinadas com um equilíbrio harmônico. Tudo é filtrado pelo olhar empático, humanista e descrente, nada moralizante, de um autor que viu nascer sua vocação durante o serviço militar como guarda de prisioneiros, após ser expulso da universidade por seu mau desempenho. Compôs versos como um verdadeiro antídoto à loucura e percebeu que “era capaz de contar histórias como Sherazade, três anos sem parar”.
 
Nas obras de Dovlátov, os temas, as cenas e as personagens aparecem e desaparecem de um livro para outro, reformulados com diferentes máscaras. E, longe de se limitarem às aventuras de um indivíduo, tornam-se um extenso registro da loucura do universo e de nossas reações humanas. Em O ofício lemos: “Nós somos o poder soviético. Temos que nos derrotar. Derrotar o servo e o cínico, o covarde e o ignorante, o puritano e o carreirista que habitam dentro de nós.” A literatura era, para Dovlátov, o seu campo de batalha.

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O ofício
Serguei Dovlátov
Daniela Mountian; Yulia Mikaelyan (Trads.)
Kalinka, 2018
232 p.

Notas da tradução
1 A tradução é de Daniela Mountian e Yulia Mikaelyan da edição de O ofício (Kalinka, 2018). A mesma casa editorial publicou, de Dovlátov, além deste, os livros Parque industrial (2016) e O compromisso (2019).


* Este texto é a tradução livre para “Escritura y exilio de Serguéi Dovlátov”, publicado aqui, em Letras Libres.

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