Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

Por Sérgio Linard



Recentemente a Companhia das Letras anunciou em suas redes sociais que este livro estava retornando para as prateleiras depois de um bom tempo indisponível. Não há uma justificativa por parte da editora para essa decisão agora, nem mesmo uma explicação sobre o porquê de um dia o material ter parado de ser vendido. De todo modo, ganhamos com a oportunidade de conhecermos um dos textos mais elogiados da literatura japonesa, que é repleto de bastante vigor e pujança ainda que possua momentos monotônicos, mas que são muito bem-vindos exatamente por ajudarem a perceber a constância do sentimento de opressão enfrentado. Aquilo que poderia ser uma grande falha ou motivo para abandono da leitura, por exemplo, torna-se fôlego pertinente para a história.
 
Inicialmente, importa que eu faça aqui o destaque de que não considero a monotonia algo necessariamente ruim. Por muito tempo em nossas vidas é um ritmo único e constante que procuramos, é a estabilidade que almejamos. Ótimo. No entanto, no caso específico de Confissões de uma máscara, percebemos que monotonia era a única forma de se construir o romance, porque é a tônica da confusão interna, sempre a apertar a mesmíssima tecla, que assusta e encaminha o personagem para uma vida que busca somente uma única saída: a morte.
 
Este livro de Yukio Mishima (1925-1970) é tido como o mais — ou único — autobiográfico dele, e se ocupa da história de um homem que, habitante do Japão durante a segunda grande guerra, apresenta desejos homoafetivos. Acompanhamos sua vida desde a fase estudantil e os breves amores pelos jovens de outras classes, até as paixões por amigos mais velhos. Como é muito comum para as pessoas oprimidas pelo sistema heteronormativo, o jovem também se vê na obrigação e na contínua necessidade de apaixonar-se por uma mulher como que parar curar aquele “mal” que o assombra.
 
Essa tentativa de constante apagamento de si ou de uma adequação de si aos demais gera um cansaço em qualquer ser humano que, por motivos vários, esteja submetido a situações como essa. O personagem desse conflito, alega, então, uma fadiga que é gerada única e tão somente por viver:
 
“Estava farto de mim mesmo e, ainda casto, deixava-me arruinar. Achava que me esforçando (que meiguice!) poderia escapar dessa situação. Não sabia ainda que o que me cansava era uma parte de minha vida; acreditava que os devaneios me enfastiavam, e não a vida em si. Esta última exigia que eu começasse a vivê-la. Era minha própria vida que assim me pressionava? Ainda que não fosse, chegara o momento de partir, de levar adiante meus pesados pés.”
 
Um dos elementos ao qual o autor recorre para se aproximar mais da história ali narrada é justamente a aplicação de parênteses em que ele julga os próprios pensamentos à época. Nesses momentos, a áurea do divã cria-se automaticamente e percebemos que o homem do hoje invariavelmente está julgando o menino de ontem como se, naquele tempo e da fase da vida, ele precisasse, ou devesse, ter a mesma maturidade, algo que, ainda que sobre-humano, comum a todos nós. Em nenhum momento o texto deixa claro ou permite afirmarmos que aquele homem, agora revendo as histórias de sua vida, faria algo por meios distintos e, por isso, observa-se um simples julgamento injusto de si para si, típico de alguém em estado minimamente depressivo, uma vez que não observa em sua pessoa, muito menos em sua história, motivos elogiosos.
 
Quando vivemos uma guerra interna deste tipo, o que se seria uma guerra externa? A superfície do texto de Confissões de uma máscara deixa claro que, para o jovem homossexual em conflito, a batalha mais sangrenta da história humana é somente um evento en passant. Egoísmo? Não. Sofrimento mesmo. A existência de sofrimento externo ao ser humano não pode — e nem deve — ser suficiente para que o sofrimento interno se apague. As subjetividades existem a despeito das objetividades impostas pelo meio externo e essa materialização, especialmente por meio de trechos de enredo psicológico, é um dos pontos mais bem construídos do romance.



Sentir, portanto, tudo isso e ainda se encontrar no meio de uma guerra, podendo ser convocado para o front a qualquer momento, poderia ser assustador. Não para Koo-chan. Para aquele jovem que tentava se apaixonar por mulheres, com destaque para Omi e Sonoko, a guerra seria a esperança de que ali poderia morrer e simplesmente dar fim ao sofrimento de sentir algo tido como desviante dos demais.
 
O Japão rende-se e reconhece a derrota na guerra, pondo fim ao conflito, eis o que sente Koo-chan: “Não era a realidade da derrota. Para mim, e somente para mim, era o começo de dias assustadores. Quisesse eu ou não, e a despeito de tudo quanto fizera para crer que este dia não chegaria jamais, a realidade de uma “vida cotidiana” de ser humano começaria para mim no dia seguinte. Eu tremia só de pensar.”
 
Enquanto a guerra durasse e a morte fosse iminente, o personagem guardava em seu íntimo a expectativa de que um dia tudo aquilo chegaria a um termo. Com o fim da guerra e a continuidade de sua vida, permanecer sentindo desejo por homens voltava a ser um pesadelo mais intenso. Ele se vê na obrigação de mentir e de, novamente, tentar relacionar-se com uma mulher:
 
“Estava determinado a não deixar Nanigashi sem ter beijado Sonoko. Era, no entanto, uma determinação diferente daquela repleta do orgulho de quem luta contra o acanhamento para alcançar seu desejo. Sentia-me como um ladrão a caminho de um delito. Como um medroso aprendiz que vai participar de um assalto contra a sua vontade, coagido pelo chefão. A felicidade de ser amado picara minha consciência. Ou talvez buscasse algo ainda mais decisivo: a infelicidade.”
 
É essa busca pela felicidade comum, para ele uma infelicidade comum, que que marca toda a tônica do romance. As diversas tentativas frustradas de convencer-se a beijar Sonoko, de não olhar para homens com desejo, de não praticar o seu “mau-secreto” repete-se em cada um dos quatro capítulos de Confissões de uma máscara. Vemos um apagamento repetitivo deste sujeito que sofre simplesmente por sentir, de modo que o seu sentimento de ser “um ladrão a caminho de um delito” dá-se não por estar roubando de si a realização de desejos, mas por estar roubando, em sua perspectiva, o direito que Sonoko teria de saber que ele não tinha efetivo interesse por ela. Uma depressão gerada pelas máscaras que a sociedade obriga-nos a usar; um sofrimento proveniente de uma regra que não se sabe quem teve a iniciativa de estabelecer.
 
Ao sentir-se como um criminoso, Koo-Chan entende que a morte é a única saída possível para seu sofrimento e, também, a única maneira digna de que aquilo se encerre sem que recaia sobre si mais vergonha. No entanto, a morte precisaria ser natural ou causadas por outros motivos, ele não se via merecedor nem mesmo de cometer suicídio; a extrema saída não era uma opção e não por haver desonra neste ato, como ocidentalmente julgamos, mas por haver desmerecimento em sua vida. A expectativa de algo que o viesse matar era o que o mantinha vivo e, comparando-se a um criminoso, entendia que essa espera era o que tornava seu delito menos grave:
 
“[...] era inconcebível não inscrever meu nome numa das modalidades de morte que vicejavam à minha volta, como uma colheita farta de outono — a morte em decorrência dos ataques aéreos, a morte no cumprimento do dever, a morte na frente de batalha, a morte por atropelamento ou a morte por doença. Um criminoso condenado à morte não se suicida. Fosse qual fosse o ângulo pelo qual considerasse a questão, o momento não combinava com o suicídio. Esperava que algo fizesse o favor de me matar. O que, em outras palavras, era o mesmo que esperar que algo fizesse o favor de me manter vivo.”
 
Esse então é o tom único — voltando aqui o início do texto — que conduz Confissões de uma máscara. A monotonia de alguém que invariavelmente sofre simplesmente por sentir; a monotonia depressiva de alguém que invariavelmente sofre por ser e não poder afirmar-se, como diria Guimarães Rosa: “Já que eu sou, o jeito é ser”. A monotonia que, como dito anteriormente, não encaminha para o abandono da leitura, pois, contrário a isso, é um tom único que nos leva e perceber a dificuldade de uma pessoa cujo único tom colorido da vida esconde-se por detrás de uma máscara em preto e branco.


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Confissões de uma máscara
Yukio Mishima
Jaqueline Nabeta (Trad.)
Companhia das Letras, 2004
200 p.

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