Meu primeiro encontro com Faulkner
foi peripatético. Esse início que parece promissor de arrepios nada mais é do
que a imagem, a lembrança de um pequeno acidente, de uma coincidência. Uma
tarde, ao sair do escritório onde trabalhava, passei numa livraria e comprei o
último número da
Sur, revista fundada e mantida por Victoria Ocampo.
Acho que o nome foi sugerido por Ortega y Gasset. A intenção do título foi desvirtuada
porque
Sur se tornou — felizmente — um instrumento que nos permitiu
conhecer o melhor da literatura europeia e dos Estados Unidos.
Foi, repito, uma coincidência
porque lia a revista esporadicamente porque os poemas que publicava eram
intercambiáveis. Ou seja: colecionava poemas que pareciam ser todos de um mesmo
autor. Quantas vezes fingi ler os poemas de qualquer número da revista e,
escondendo o nome do poeta, perguntar quem era o autor. Foi uma piada e uma
tortura para os amigos.
Volto, lembro que abri o exemplar
na rua, encontrei o nome William Faulkner pela primeira vez na vida. Havia uma
apresentação do escritor desconhecido e um conto muito mal traduzido para o
espanhol. Comecei a lê-lo e continuei andando, fora do mundo dos pedestres e
dos carros, até que decidi entrar em um café para terminar a texto,
esquecendo-me felizmente daqueles que me esperavam. Li novamente e o feitiço
aumentou. Aumentou e todos os críticos concordam que ainda continua.
Em muitos comentários e
principalmente em capas de livros, tenho visto as palavras alucinante ou
alucinado referindo-se a obras de Faulkner. Segundo meu dicionário, o termo
pode significar cegueira ou engano. Aqui lembro que Bernard Shaw se vangloriava
de seus olhos, que por serem completamente normais eram anormais porque o
número de pessoas que desfrutam ou sofrem de uma visão perfeita é muito
pequeno. O irlandês atribuía a isso a confusão e até as fúrias que as suas
comédias provocavam.
Ao ler e reler Faulkner, é
inevitável suspeitar que a sua maneira de olhar era diferente da nossa, da dos
homens comuns, da dos escritores comuns. Detida nas paisagens, nas pessoas ou
nas circunstâncias, via algo mais do que percebíamos. Deixando de lado o que
escreveu por astúcia ou compromisso (
Sartoris,
Cavalos malhados,
O
Intruso,
Os invictos etc.) esse olhar, quando é totalmente
faulkneriano, tem, sim, alguma cegueira e engano. Embora nunca recorra ao
sobrenatural, embora pareça sempre agarrado a uma realidade, deixa-nos a
sensação de que o homem só via verdadeiramente mundo um próprio, introduzido
sem esforço nos mundos universais e alheios.
Por isso que tudo o que é nomeado
(cenários, pessoas, anedotas) é credível, mas fantasmagórico. O exemplo mais
violento do que digo talvez seja o do repórter anônimo de
Pylon. Este,
ausente e profundamente envolvido na narrativa, faz-nos pensar no próprio
Faulkner, capaz de ver, viver e ficar, ao mesmo tempo, fora dos fatos.
Se os leitores refletirem, poderão
atribuir a mesma qualidade fantasmagórica aos personagens mais importantes de
sua obra e às suas mesmas aventuras.
Mas o que mais me deslumbrou e me
uniu naquele primeiro encontro com o seu gênio foi aquela maneira de partir,
como um dos cavalinhos que ele criou para nós em
O povoado, sozinho,
certo de que ninguém poderia acompanhá-lo ou que não tinham o que precisavam
para enfrentar um fracasso idiomático, herdado, colocado para sempre diante de
uma barreira que os antigos professores colocaram para rebentar o nariz dos
ousados e novos potros.
Essa foi a história e os sete anos
sem obras nas livrarias constituem a mais precisa apreciação da cultura
norte-americana em matéria literária.
Os homenzinhos do trem voltam às
17h15., frangotes do matriarcado mais feroz conhecido pela história
contemporânea, traziam às sextas-feiras — pontualmente — o livro do mês, o
livro escolhido pelas solteironas ou não solteiras e tampouco satisfeitas; o
livro selecionado pelo pastor de qualquer igreja antipapista e seu feliz
rebanho.
Como poderíamos imaginar que um
homem sem pecado cruzasse a suja rede puritana e chegasse em casa carregando
escondido em sua pasta um livro do maldito W. F., o sádico que havia escrito
Santuário?
De maneira que não havia mais e
nenhuma
miss tinha motivos para corar e nenhuma
mistress foi proibida
de lê-lo quando o respectivo provedor começava a roncar. Claro, nunca era um
romance comprado em livraria e ao ar livre; eram empréstimos secretos de amigas
e para o inferno com os direitos autorais.
Mas essa pobre gente não pensava
que em um rincão de Oxford ou de Memphis um obcecado chamado William Faulkner
persistia escrevendo livros incomparáveis que flutuavam muito acima do que
consideravam literatura.
Degenerado na sociedade
norte-americana, não procurava dólares; se contentava — como disse — com um
pouco de tabaco, um pouco uísque sulista e sua maravilhosa solidão noturna em
um celeiro à beira da ruína, transbordando de sabugos secos, atapetado com titica
de galinha.
A vida tem uma incrível imaginação
e força suficientes para inventar e impor infernos privados, efêmeros paraísos
subjetivos. Ninguém jamais saberá se o referido celeiro continha o céu ou o
inferno para o mestre e proprietário de Yoknapatawpha. Ambos, suponho. Todos os
vícios oferecem ou impõem a mesma coisa. As duas coisas também quando se está
imerso no amor, sem remissão. No projeto — inútil e falhado antes de começar —
de descobrir o homem, há que ter em conta a sua timidez doentia, a sua baixa
estatura, a sua repugnância e desdém pela “feira na praça”, a sua obsessiva
resolução de não permitir, nas poucas entrevistas deu a críticos e jornalistas,
nenhuma pergunta de caráter pessoal. Sabemos ele tinha uma filha adolescente
quando esteve de passagem por Paris, rumo a Estocolmo e ao cheque do prêmio.
Mas não sabemos realmente; diz-se que a bela criatura nasceu muito antes de seu
casamento, com uma senhora divorciada que trouxe dois filhos para o casamento; o
nome dela era Estelle Oldham Franklin.
O mistério que ele usou como cerca
para que ninguém penetrasse em sua vida privada era mantido por seus
familiares. Ninguém sabe a causa de sua morte. Falou-se de uma queda ao tentar
descer, de madrugada ou de manhã, os degraus de madeira podres do referido
celeiro. E, como na canção de Stevenson, o bourbon fez o resto. O bourbon e os
fantasmas que continuaram a povoá-lo quando considerou que a cota diária de
escrita havia acabado. Mas isso não está comprovado e tampouco interessa.
Os enlutados, os Faulkners ou
Falkners, eram tão importantes em Oxford quanto os Sartoris, os Sutpens, os
Compsons, ou Miss Emily Grierson — “uma tradição, um dever e uma preocupação” —,
personagem daquele conto tão invejado quanto imortal: “Uma rosa para Emily”. Tinham
poderes feudais nascidos dos sofrimentos e da derrota do Sul na Guerra Civil. E
sabiam como usá-los. Docilmente, o Dr. Martino escreveu um atestado:
insuficiência cardíaca.
Assim, ordenaram ao xerife que
declarasse persona non grata qualquer jornalista, curioso ou admirador que se
aproximasse da casa branca de Oxford, onde Faulkner viveu seus últimos anos e
em cujo cemitério foi sepultado, sob um olmo já queimado pelo incipiente verão.
E o velório foi realizado com o caixão fechado.
Como é natural e inevitável, no
dia seguinte à sua morte todas as agências de notícias norte-americanas
cobriram o mundo com obituários ditirâmbicos e desolados. Afinal — mesmo que os
editores nunca o tivessem lido — tratava-se de um Prêmio Nobel.
Mas este animal de estranha
linhagem disse uma vez: “Espero ser o único indivíduo no mundo que não tenha
deixado vestígios da sua passagem”.
Os elogios, as interpretações
críticas (“Entre os aplausos, entre os desdéns e as bobagens da multidão”; e “a
fama é sempre um mal-entendido”) teriam escorregado sobre seu gênio como uma
chuva irritante que nos pega desprevenidos. Mas talvez ele tivesse sorrido com
afetuosa ironia se pudesse olhar para as placas afixadas nas vitrines das
empresas de Oxford no dia de seu funeral:
Em memória de
William Faulkner,
esta empresa estará fechada
das 2h às 2h15 p. m.
7 de julho de 1962
Ou seja: quinze minutos sem ganhar
um mísero
cent! O morto não poderia imaginar um tributo maior e mais
sacrificial do que este por parte dos
gold diggers de seu país.
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