Confissões de um leitor de 2h a 2h15 p. m.

Por Juan Carlos Onetti


William Faulkner. Foto: Henri Cartier-Bresson

 
Meu primeiro encontro com Faulkner foi peripatético. Esse início que parece promissor de arrepios nada mais é do que a imagem, a lembrança de um pequeno acidente, de uma coincidência. Uma tarde, ao sair do escritório onde trabalhava, passei numa livraria e comprei o último número da Sur, revista fundada e mantida por Victoria Ocampo. Acho que o nome foi sugerido por Ortega y Gasset. A intenção do título foi desvirtuada porque Sur se tornou — felizmente — um instrumento que nos permitiu conhecer o melhor da literatura europeia e dos Estados Unidos.
 
Foi, repito, uma coincidência porque lia a revista esporadicamente porque os poemas que publicava eram intercambiáveis. Ou seja: colecionava poemas que pareciam ser todos de um mesmo autor. Quantas vezes fingi ler os poemas de qualquer número da revista e, escondendo o nome do poeta, perguntar quem era o autor. Foi uma piada e uma tortura para os amigos.
 
Volto, lembro que abri o exemplar na rua, encontrei o nome William Faulkner pela primeira vez na vida. Havia uma apresentação do escritor desconhecido e um conto muito mal traduzido para o espanhol. Comecei a lê-lo e continuei andando, fora do mundo dos pedestres e dos carros, até que decidi entrar em um café para terminar a texto, esquecendo-me felizmente daqueles que me esperavam. Li novamente e o feitiço aumentou. Aumentou e todos os críticos concordam que ainda continua.
 
Em muitos comentários e principalmente em capas de livros, tenho visto as palavras alucinante ou alucinado referindo-se a obras de Faulkner. Segundo meu dicionário, o termo pode significar cegueira ou engano. Aqui lembro que Bernard Shaw se vangloriava de seus olhos, que por serem completamente normais eram anormais porque o número de pessoas que desfrutam ou sofrem de uma visão perfeita é muito pequeno. O irlandês atribuía a isso a confusão e até as fúrias que as suas comédias provocavam.
 
Ao ler e reler Faulkner, é inevitável suspeitar que a sua maneira de olhar era diferente da nossa, da dos homens comuns, da dos escritores comuns. Detida nas paisagens, nas pessoas ou nas circunstâncias, via algo mais do que percebíamos. Deixando de lado o que escreveu por astúcia ou compromisso (Sartoris, Cavalos malhados, O Intruso, Os invictos etc.) esse olhar, quando é totalmente faulkneriano, tem, sim, alguma cegueira e engano. Embora nunca recorra ao sobrenatural, embora pareça sempre agarrado a uma realidade, deixa-nos a sensação de que o homem só via verdadeiramente mundo um próprio, introduzido sem esforço nos mundos universais e alheios.
 
Por isso que tudo o que é nomeado (cenários, pessoas, anedotas) é credível, mas fantasmagórico. O exemplo mais violento do que digo talvez seja o do repórter anônimo de Pylon. Este, ausente e profundamente envolvido na narrativa, faz-nos pensar no próprio Faulkner, capaz de ver, viver e ficar, ao mesmo tempo, fora dos fatos.
 
Se os leitores refletirem, poderão atribuir a mesma qualidade fantasmagórica aos personagens mais importantes de sua obra e às suas mesmas aventuras.
 
Mas o que mais me deslumbrou e me uniu naquele primeiro encontro com o seu gênio foi aquela maneira de partir, como um dos cavalinhos que ele criou para nós em O povoado, sozinho, certo de que ninguém poderia acompanhá-lo ou que não tinham o que precisavam para enfrentar um fracasso idiomático, herdado, colocado para sempre diante de uma barreira que os antigos professores colocaram para rebentar o nariz dos ousados ​​e novos potros.
 
Essa foi a história e os sete anos sem obras nas livrarias constituem a mais precisa apreciação da cultura norte-americana em matéria literária.
 
Os homenzinhos do trem voltam às 17h15., frangotes do matriarcado mais feroz conhecido pela história contemporânea, traziam às sextas-feiras — pontualmente — o livro do mês, o livro escolhido pelas solteironas ou não solteiras e tampouco satisfeitas; o livro selecionado pelo pastor de qualquer igreja antipapista e seu feliz rebanho.
 
Como poderíamos imaginar que um homem sem pecado cruzasse a suja rede puritana e chegasse em casa carregando escondido em sua pasta um livro do maldito W. F., o sádico que havia escrito Santuário?
 
De maneira que não havia mais e nenhuma miss tinha motivos para corar e nenhuma mistress foi proibida de lê-lo quando o respectivo provedor começava a roncar. Claro, nunca era um romance comprado em livraria e ao ar livre; eram empréstimos secretos de amigas e para o inferno com os direitos autorais.
 
Mas essa pobre gente não pensava que em um rincão de Oxford ou de Memphis um obcecado chamado William Faulkner persistia escrevendo livros incomparáveis ​​que flutuavam muito acima do que consideravam literatura.
 
Degenerado na sociedade norte-americana, não procurava dólares; se contentava — como disse — com um pouco de tabaco, um pouco uísque sulista e sua maravilhosa solidão noturna em um celeiro à beira da ruína, transbordando de sabugos secos, atapetado com titica de galinha.
 
A vida tem uma incrível imaginação e força suficientes para inventar e impor infernos privados, efêmeros paraísos subjetivos. Ninguém jamais saberá se o referido celeiro continha o céu ou o inferno para o mestre e proprietário de Yoknapatawpha. Ambos, suponho. Todos os vícios oferecem ou impõem a mesma coisa. As duas coisas também quando se está imerso no amor, sem remissão. No projeto — inútil e falhado antes de começar — de descobrir o homem, há que ter em conta a sua timidez doentia, a sua baixa estatura, a sua repugnância e desdém pela “feira na praça”, a sua obsessiva resolução de não permitir, nas poucas entrevistas deu a críticos e jornalistas, nenhuma pergunta de caráter pessoal. Sabemos ele tinha uma filha adolescente quando esteve de passagem por Paris, rumo a Estocolmo e ao cheque do prêmio. Mas não sabemos realmente; diz-se que a bela criatura nasceu muito antes de seu casamento, com uma senhora divorciada que trouxe dois filhos para o casamento; o nome dela era Estelle Oldham Franklin.
 
O mistério que ele usou como cerca para que ninguém penetrasse em sua vida privada era mantido por seus familiares. Ninguém sabe a causa de sua morte. Falou-se de uma queda ao tentar descer, de madrugada ou de manhã, os degraus de madeira podres do referido celeiro. E, como na canção de Stevenson, o bourbon fez o resto. O bourbon e os fantasmas que continuaram a povoá-lo quando considerou que a cota diária de escrita havia acabado. Mas isso não está comprovado e tampouco interessa.
 
Os enlutados, os Faulkners ou Falkners, eram tão importantes em Oxford quanto os Sartoris, os Sutpens, os Compsons, ou Miss Emily Grierson — “uma tradição, um dever e uma preocupação” —, personagem daquele conto tão invejado quanto imortal: “Uma rosa para Emily”. Tinham poderes feudais nascidos dos sofrimentos e da derrota do Sul na Guerra Civil. E sabiam como usá-los. Docilmente, o Dr. Martino escreveu um atestado: insuficiência cardíaca.
 
Assim, ordenaram ao xerife que declarasse persona non grata qualquer jornalista, curioso ou admirador que se aproximasse da casa branca de Oxford, onde Faulkner viveu seus últimos anos e em cujo cemitério foi sepultado, sob um olmo já queimado pelo incipiente verão. E o velório foi realizado com o caixão fechado.
 
Como é natural e inevitável, no dia seguinte à sua morte todas as agências de notícias norte-americanas cobriram o mundo com obituários ditirâmbicos e desolados. Afinal — mesmo que os editores nunca o tivessem lido — tratava-se de um Prêmio Nobel.
 
Mas este animal de estranha linhagem disse uma vez: “Espero ser o único indivíduo no mundo que não tenha deixado vestígios da sua passagem”.
 
Os elogios, as interpretações críticas (“Entre os aplausos, entre os desdéns e as bobagens da multidão”; e “a fama é sempre um mal-entendido”) teriam escorregado sobre seu gênio como uma chuva irritante que nos pega desprevenidos. Mas talvez ele tivesse sorrido com afetuosa ironia se pudesse olhar para as placas afixadas nas vitrines das empresas de Oxford no dia de seu funeral:
 
Em memória de
William Faulkner,
esta empresa estará fechada
das 2h às 2h15 p. m.
7 de julho de 1962
 
Ou seja: quinze minutos sem ganhar um mísero cent! O morto não poderia imaginar um tributo maior e mais sacrificial do que este por parte dos gold diggers de seu país.

 
* Este texto é a tradução livre de “Confesiones de un lector ‘de 2h a 2h15 p. m.’” publicado em Confesiones de un lector (Alfaguara, 1995).

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