Por Rafael Narbona
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J. M. Coetzee. Foto: Jakob Hoff |
John Maxwell Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura de 2003, é um escritor
cru e demolidor. Embora em seus romances aborde o tema da expiação e da
redenção a partir de uma perspectiva não religiosa, ele não traça ilusões sobre
a possibilidade de uma humanidade libertada de seus egoísmos, mesquinhezes e
aberrações morais. Seus livros são breves e seu estilo minimalista.
Inteligíveis e de estrutura linear, não representam um desafio à
compreensão, mas a sua aparente simplicidade não é sinônimo de banalidade, mas
de uma aguda exigência estética e moral. A sua ficção reflete sobre o sexo, os
afetos, a solidão, a discriminação racial, a violência da cultura ocidental, a
criação literária, a ligação entre o ser humano e a terra, o horror da
colonização, que é o caso da África do Sul, o seu país natal, desembocado no
monstruoso apartheid.
Apesar do pessimismo predominante no entorno desse mundo literário, há
sempre áreas onde a escuridão se desvanece e surge uma cálida esperança. Alguns
europeus redimem os pecados da sua civilização através da solidariedade. Alguns
humanos simpatizam com os animais e se esforçam para proteger a natureza. Às
vezes a crueldade retrocede e a ternura brilha. Pode ser que não haja razão
para ser otimista, mas a beleza e a compaixão também acompanham a condição
humana.
Coetzee adquiriu maturidade narrativa com À espera dos bárbaros
(1980), e com Vida e época de Michael K. (1983) alcançou a consagração,
quando recebeu o Prêmio Booker. Ambas as obras expressam uma profunda
preocupação com os povos maltratados pela colonização e uma admiração sincera
pelas culturas consideradas inferiores, mas com uma sabedoria ancestral mais
compatível com a vida e o equilíbrio natural do que a sociedade
industrializada, onde tudo vira mercadoria e é negligenciado e hipoteca o
futuro das futuras gerações.
O verdadeiro significado da tortura
À espera dos bárbaros
é uma fábula política e moral que especula sobre os efeitos da dominação e da
tortura num Império imaginário, cujos personagens atemporais permitem uma ampla
identificação. É um texto que relembra o romance de ideias da Europa do entre-guerras,
quando autores como Franz Kafka ou Miguel de Unamuno despojaram as suas ficções
das características circunstanciais que limitavam as suas pretensões de acesso
à universalidade do mito. A possibilidade de transferir a história do
Magistrado que se rebela contra os métodos da polícia colonial para outro
contexto confere à narrativa uma força capaz de transcender qualquer
circunstância.
O posto fronteiriço e o deserto árido que o rodeia expandem a referência
ao concreto. É um espaço metafórico onde se mostra a linguagem do poder, a sua
ambivalência, as suas oscilações entre a expressão e o ensimesmamento. A
ameaça, ora difusa, ora clara e alarmante, de uma invasão que reduziria a
ruínas uma ordem identificada com a civilização, servirá de justificativa para
o uso da violência contra as comunidades indígenas, cuja existência retarda a
expansão de um Império que percebe a diferença como uma fenda capaz de quebrar
a sua unidade. A desproporção entre a máquina militar e os arcos rudimentares
de um povo nômade reflete a lógica de um poder que precisa demonstrar sua
força.
Quando os soldados torturam brutalmente uma mulher nativa, não esperam
encontrar informações, mas sim aplicar aquela biopolítica teorizada por
Foucault em Vigiar e punir. A busca por evidências é um pretexto, mas
também uma característica de uma cultura que abraçou o dogma do positivismo
científico. Ante à intuição, a evidência empírica dos ossos deslocados; diante
do sentimento telúrico, a exploração da natureza a ponto de esgotar a
fertilidade do solo. Não há outro sujeito senão aquela civilização que
conquista, classifica, ordena e reprime. Fora dele, tudo se torna objeto. Isto
explica a desumanização do outro, a sua assimilação a algo que pode ser
destruído, sem receber outra consideração senão a pedra ou o tronco que impede
o avanço do arado.
O Magistrado cuidará da jovem torturada. Cega e com tornozelos
fraturados, ele não estabelecerá com ela uma relação erótica, mas uma servidão
que incluirá abluções e óleos. Ao lavá-la e perfumá-la, terá a sensação de
expiar a crueldade de uma civilização que consumou a transmutação de valores,
identificando a capacidade de trabalhar com a excelência. Dentro dessa ordem, a
crueldade nunca é gratuita. Ao martirizar a carne, o poder fala. O corpo é a
tábua sobre a qual se escreve o seu alfabeto. A necessidade de redenção do
Magistrado o levará a organizar uma expedição para devolver a garota à sua
aldeia. Esse gesto lhe custará a perda de seu cargo e a acusação de traição.
Interrogado por um jovem oficial, ele descobrirá o verdadeiro significado da
tortura: lembrar-nos que vivemos num corpo.
A tortura é um exercício de despossessão que substitui o eu por “uma
pilha de sangue, ossos e carne”. Os torturados são despojados de tudo. Nada
mais é que corpo, dores nas articulações, inchaços e edemas. Apenas gemidos que
imploram, sons que substituem a linguagem e o sentido. Porém, quando a dor
cessa, o Magistrado recuperou a liberdade. Sua derrota é sua vitória. É pela
primeira vez um homem sem aprisionamentos. Ele não está mais preso à “negra
flor da civilização”. Ao lançar sobre seus ombros a salvação da menina
martirizada, ele restituiu a si mesmo aquela humanidade que lhe havia sido
tirada.
Ele é um novo São Cristóvão, que suporta o peso do inocente para
ajudá-lo a chegar à outra margem. O seu conhecimento do mal revela-lhe a
ignomínia das palavras solenes, que falam de ordem e de segurança. “Realmente,
o mundo devia pertencer aos cantores e dançarinos!” Os povos que dançam e
celebram as estações, aceitando a necessidade da morte, não vivem na história,
mas no tempo e são “como o peixe na água ou o pássaro no ar”. A redenção do
Magistrado é ofuscada pela suspeita de ser nada mais do que o lado benevolente
do Império.
Contudo, a expiação se completa quando, sem negar a existência de zonas
sombrias em nossa alma, assumimos que somos nós mesmos e não os outros que
“devemos aceitar a crueldade que carregamos dentro de nós”. O mistério da
escrita dos bárbaros, umas tabuinhas indecifráveis com sinais arcaicos,
sugere que o paraíso existia antes da história. A impossibilidade de regressar
a esse momento apenas certifica o fracasso de uma civilização que, ao repetir
continuamente os seus gestos de violência, caiu na esterilidade do movimento
perpétuo, uma roda que gira eternamente no vazio. Pois é o Nada e não o Império
que impõe o seu domínio, transformando cada posto fronteiriço num Leviatã que
permanece em estado de incubação durante muito tempo para depois se manifestar
de forma brutal.
Ao colocar a ação no limite entre dois mundos, Coetzee aproxima-se de
Dino Buzzati, mas não se detém tanto nas expectativas não concretizadas como na
análise do poder, evocando as considerações de Elias Canetti sobre o caráter paranoico
do totalitarismo, cuja preservação depende da sua capacidade de produzir morte,
sem distinguir entre amigos e inimigos. Esta forma de agir é apoiada pela
sombra de uma ameaça iminente. Dessa forma, o indivíduo se afoga na massa, tudo
o que nos garante uma identidade se apaga, nossas palavras se transformam no
som inarticulado de um corpo que perde a capacidade de falar e argumentar. É a
derrota do ser humano através da tortura, a ferramenta mais eficaz de poder,
como advertiu Joseph de Maistre.
A relação de Michael K. e a terra
Vida e época de Michael K. começa com a conhecida citação de Heráclito que atribui à guerra a
distinção entre reis e escravos. De baixa inteligência e lábio leporino,
Michael K. é um humilde jardineiro sul-africano habituado a sofrer
discriminações inerentes à sua cor e às suas limitações físicas e intelectuais.
Sem horizontes, sua existência transcorre com uma amável monotonia até que sua
mãe adoece gravemente e expressa o desejo de morrer em sua região natal. Os
distúrbios políticos na Cidade do Cabo ajudam-no a embarcar numa viagem ao
coração do país que o afastará cada vez mais do já escasso contato com os seus
pares. Apesar da morte de sua mãe no caminho, Michael chegará ao seu destino e
se estabelecerá em uma fazenda abandonada.
Convencido de que sua alma é uma “terra estéril”, ele tentará dar vida a
uma propriedade invadida pela poeira e pelo esquecimento. Semeará os campos com
as cinzas de sua mãe e se adaptará a uma existência regulada pelas mudanças de
luz e temperatura. Arrancando as ervas daninhas, lutando contra o vento e o
sol, distribuindo as sementes pelos sulcos da terra. Durante meses ele não
conhecerá outra rotina, até que se esqueça de sua vida anterior e experimente
um “vínculo terno” aparentemente indestrutível.
Pela primeira vez ele é o dono da escolha de suas servidões, mas essa
situação dificilmente perdurará. A visita inesperada de um desertor o obrigará
a abandonar a fazenda. Refugiado num acampamento de sem-teto e indigentes,
voltará a afundar-se naquela apatia que sempre o impediu de perceber a sua
condição de sujeito, de depositário de uma consciência capaz de escolher e
planejar. Observando a si mesmo, ele se vê como “uma partícula minúscula na
superfície de uma terra lenta demais para sentir a passagem das formigas, o
roer das lagartas, a queda da poeira”.
Sua fuga do acampamento e seu retorno à fazenda apenas confirmarão a
miséria de uma época, onde um homem só pode preservar sua liberdade vivendo na
clandestinidade. Michael descobrirá que foi condenado a ser ninguém, a viver
como um animal, sem descendência nem amor, confundido com uma terra que oferece seu devastado ventre pela seca para
morrer. Ele não tem nada para legar e nada pelo que viver.
A sua relação com a terra não é a de uma mão que semeia vida, mas a de
um parasita que cochila numa dobra do intestino. Sua presença na fazenda pelo
menos o aproxima da origem, daquele silêncio anterior ao tempo, quando ainda
não tinha corpo para alimentar nem consciência para enterrar emoções, condenado
a ser exumado por uma mente sem controle de seus pensamentos. Ensimesmado,
afastado de seus medos e fantasias, Michael se entregará à contemplação,
tocando as sementes que renovam a vida, mas desistindo de alimentar um corpo
cada vez mais magro. Quando o exército ocupa a fazenda e o prende como suposto
colaborador da guerrilha, o jejum o levou à beira da morte.
A sua deteriorada consciência não para de lhe lembrar que semelhante a
sua mãe, nada restará dele, a não ser um punhado de pó que o tempo lavará,
dispersará e transformará em folhas de relva. Porém, algo o liga à fazenda, à
terra que cuidou durante meses em completa solidão. Na verdade, quando os
soldados começam a plantar minas no pomar onde ele cultivava abóboras, ele não
consegue evitar o sentimento de testemunhar uma profanação.
Internado na enfermaria de uma prisão, um compassivo médico fará o
possível para salvar sua vida. Em seu diário, ele anotará a evolução do
paciente, lembrando que a mãe que primeiro o obrigou a fazer a viagem e depois
se encarnou num pedaço de terra, deixando-o exausto e no limite de sua
resistência física, está “a grande Mãe Morte”. Apesar da sua voracidade, a alma
de Michael ainda respira, “virgem de história”, movendo as asas, mostrando a
sua simplicidade, a sua proximidade com o elemental. A sua alma não fala; escuta.
É o homem que precede o homem, essa humanidade pré-racional que não percebe
nenhuma heterogeneidade entre si e o mundo. Diante dela está o Poder, o Castelo
— mal se dissimula a alusão a Franz Kafka — que não suporta as regressões ao
primordial.
Ocupado semeando o deserto com folhas de abóbora, Michael está muito
absorto em sua tarefa para “ouvir a roda da história”. A sua aparente
insignificância é completamente falsa, pois “significa alguma coisa”. Na
verdade, a sua existência, que parece tão indefinida, está saturada de
significado. Michael é um fugitivo, mas a sua fuga não é a de alguém que foge
do sistema prisional, mas a de um homem que renuncia à civilização, a uma ordem
estabelecida de medo, culpa e vergonha. O seu regresso à terra é uma tentativa
de recriar o humano, de substituir a cultura da morte por uma cultura da vida,
onde a semente simboliza a possibilidade de um novo começo. Condenado a ser
estrangeiro em todos os lugares, Michael retornará à Cidade do Cabo para provar
mais uma vez que não pertence a este mundo.
Coetzee deixa-nos um retrato impressionante da “negra flor da
civilização”. Seus romances corroboram a famosa frase de Walter Benjamin: “Nunca
há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da
barbárie”. A civilização europeia alcançou a hegemonia graças ao
desenvolvimento industrial e tecnológico, mas espalhou a infelicidade por todo
o planeta. A sua expansão trouxe infortúnios às cidades invadidas e não trouxe
felicidade às metrópoles prósperas, contaminadas pela injustiça e pela
desigualdade.
Coetzee não propõe um programa de reformas. Ele não é um político nem um
visionário, mas seus livros nos convidam a refletir e a buscar alternativas
para habitar o mundo de forma mais humana. Ainda é possível que a vida afaste a
morte e o tempo não corra para lugar nenhum.
______
À espera dos bárbaros
J. M. Coetzee
José Rubens Siqueira (Trad.)
Companhia das Letras, 2006
Vida e época de Michael K.
J. M. Coetzee
José Rubens Siqueira (Trad.)
Companhia das Letras, 2023 (3.ª ed.)
216 p.
* Este texto e a tradução livre
para “Coetzee y la flor negra de la civilización”, publicado aqui, em El
Cultural.
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