O romance é um repositório de vozes.
Essa qualidade permite que essa forma narrativa possa assumir infinitas feições,
algumas delas, assimiladas a partir de linguagens ou de práticas linguageiras
distintas da literatura, outras, a partir do exímio tratamento estético
burilado na forja do romancista. No primeiro caso, encontramos os romances que
se alimentam do tecido social e, no segundo, os que se alimentam da imaginação
criativa e por vezes antecipam determinada experiência do mundo exterior. Nos
dois casos, entretanto, a forma ao mesmo tempo que se renova constitui
lentamente uma história que é parte indissociável na cultura, na formação do
pensamento, no curso das ideologias e na milenar arte de narrar.
Costumamos distinguir
Ulysses,
de James Joyce, como o ponto mais radical ou a virada na história da forma romanesca.
É verdade que os modelos mais tradicionais do romance nunca deixaram de existir
e existirão enquanto encontrar um leitor neles interessado. Mas, também é
verdade que, as tentativas de superar o feito do escritor irlandês se tornaram
em ponto de inflexão para inscrever determinada obra no âmbito da própria
literatura. E quando dizemos
superar não pensamos na simples ideia de
uma competição — olímpica, nesse caso —, mas de encontrar no universo de
possibilidades outra mais significativa e expressiva de narrar.
O primeiro livro em prosa de
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira se inscreve — propositalmente ou não e isso
não nos interessa — no interior desse grupo que no Brasil constitui uma das
melhores linhas de força da nossa literatura. No nosso caso, trata-se de uma
linha que se inaugura com a obra de Machado de Assis e ganha contornos com escritores
como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Clarice Lispector, Autran Dourado, João
Guimarães Rosa — para citar alguns dos mais proeminentes. Uma linha que
designaríamos como interessada a um só tempo pela sondagem da interioridade
humana e pela renovação dos protocolos de composição e estruturação da
narrativa, que, também no plano universal, é anterior a James Joyce e se
confunde com a própria história do romance, que o digam Lawrence Sterne, Xavier
de Maistre, Ramón María Del Valle-Inclán…
Essa qualidade é notável em
as
visitas que hoje estamos, sabendo que o escritor tanto recorre à noção
basilar da forma romanesca quanto esgarça e questiona seus limites propondo uma
obra infinita. Poderíamos designar o livro como um arquivo de tudo. Afinal,
nele encontramos, formas narrativas diversas, como o conto, o microconto,
outros gêneros literários, como a poesia e o teatro, outros gêneros textuais, como
o anúncio, a pregação, a anedota, a propaganda, além das variações discursivas
notáveis no interior desses gêneros ou das próprias formas, como no caso das
narrativas o tratamento diverso do ponto de vista. Soma-se aos procedimentos
verbais, os procedimentos visuais, seja a inserção da fotografia, seja a
ordenação e a disposição gráfica do texto.
Mas, existe unidade na diversidade.
Na primeira narrativa, “a gaveta direita”, cuja linguagem emula a da narrativa
de João Guimarães Rosa — explicitamente, como se mostra na epígrafe do texto —
é o grande novelo a partir do qual se desfia a sequência do livro. Aqui, uma
narradora repisa a partir de um monólogo interior constantemente perturbado
pelo diálogo os pontos cardinais da sua vida e da sua família. Será essa
história possível que encontraremos nos fragmentos posteriores, em nada e ao
mesmo tempo sua continuidade. Em nada porque não existe enredo em
as visitas…
e ao mesmo tempo porque os dramas diversos circulam sempre em torno das mesmas
circunstâncias: os destinos falhados e alheados, a vida espoliada, tudo quase
sempre entrevisto por uma memória prolapsada. Também o sentido de arquivo,
patente no termo principal do título, abre-se como o elemento organizador do
livro, considerando-se, ainda a natureza do que se guarda, o interior e a
intimidade. Há um mundo exterior que se registra nessa gaveta, mas este é
sempre mediado por um suporte, um dispositivo de memória, nunca coletivo, ainda
que muitas das circunstâncias resultem universais: o bem, o mal, o sagrado, o
profano, a traição, o ódio, o amor, o desejo, o engano, a morte, a loucura, a
usura, a inveja, a ganância, o medo, a esperança, a inocência, a esperteza, a
fé, a descrença, a negação, o niilismo…
O trânsito do leitor por esse
arquivo pode se fazer também diversamente. Seguindo livremente sem querer
identificar um princípio organizativo, movimento que nos parece mais
interessante e que descreveríamos, à maneira de uma referência do livro — o
fragmento “mãe, o que é o amor” — como um borboletear, ou seja, cada fragmento
é ora um episódio onde cabe um momento ou uma vida inteira, sempre fugaz, ora
um descanso, a pausa necessária na agonia de zanzar. Outra alternativa é o leitor
coordenar uma ordem na variedade de fragmentos do livro; uma tarefa que talvez
resulte em fracasso, mas não sem antes identificar certos núcleos de interesse:
os amores mal ou não correspondidos, as misérias, as violências, as vidas entre
o luxo e o lixo, o impasse entre tradição e modernidade e, subterraneamente, os
volteios com o ofício de contar.
Numa ou noutra possibilidade de
leitura, restará a percepção da vida como um fluxo de repetições que mesmo
assim não fazem dos acontecimentos uma mesma coisa, sobretudo porque o mundo se
organiza por uma maneira distinta de se compreender. Em certa passagem lemos:
“é muito difícil, na vida, alguém enxergar os fatos vividos por inteiro, e
antes deles mesmos”. Uma frase que parece justificar a escolha de Antonio
Geraldo por uma poética do fragmento. Ou seja, a variedade do livro é tanto a sortimento
de compreensão das coisas, limitada à nossa profusão das percepções
individuais, quanto uma maneira de significar como o vivido nunca pode se
revelar em sua totalidade.
A vida é, entretanto, danação, dor
e morte, salpicada de pequenas alegrias e alguma beleza. E o livro em leitura
entrega-se à correnteza da própria vida sem querer pontuar motivos, explicar
fundamentos, como se suas fronteiras fossem as de uma imensa bateia a partir da
qual o escritor deixa filtrar entre uma preciosidade e outra também o
defeituoso, o imperfeito, o vulgar. Mas, ainda que na extensa galeria de
personagens ou vozes que circulam pelo mundo de
as visitas que hoje estamos prevaleçam
os espoliados, os marginais, a soma total da existência resulta numa grande
comunidade de pobres diabos, visto que todos somos vítimas dos nossos próprios
interesses, independentemente se miúdos ou graúdos.
Pela repetição alcançamos outra
síntese possível para o livro: dois blocos de textos, um derivado do outro —
“os olhos de jussara” e os restos do que seria uma longa peça de teatro que
condensa parte dos motivos até agora evidenciados e acrescenta outros. A
repetição em
as visitas… é manifesta sempre por deriva e acréscimo, seja
de outra perspectiva, seja de outra circunstância, seja ainda de outro aspecto,
questão ou interesse. O que resta do manuscrito do texto teatral é uma história
circular de traição, ódio e reconciliação, circunscrita entre sofrimento e morte.
Revezam-se quatro personagens: uma mãe há muito separada da filha que se envolveu
amorosa e sexualmente com o pai com quem teve duas filhas, sendo estas as
outras figuras em cena, retorna em estado terminal para pedir perdão e abrigo para
morrer. No desenvolvimento do drama, entramos em contato com uma ordem social
em crise e desagregação (como o mundo em ruínas no restante dos fragmentos), a
situação de cada um, seus segredos e o refazimento do motivo essencial, o
incesto, ainda que essa conduta sexual, sem quaisquer apelos morais, assuma
dupla leitura, uma vez se demonstrar que o enlace pai e filha é de comum interesse
dos dois envolvidos.
Os restos do que seria uma peça
irrompidos sequencialmente em três momentos do arquivo, entretanto, não funciona
como uma linha capaz de cerzir os fragmentos. Mas, dentre as diversas retomadas
das questões propostas em parte dos outros textos, encontramos a ideia da
possibilidade.
Esta, sim, pode funcionar como alinhavo para os materiais aqui apresentados.
Cada um, revela a narrativa possível, a história que se quer contar mas é continuamente
perturbada, seja por um desvio de tópico, seja pela intromissão de outro
acontecimento, seja ainda por uma crise de memória, como evidenciamos, capaz mesmo
de toldar se o fiapo que restou aconteceu ou também parte de um inventário de
invenções.
Essa instabilidade que impede a
progressão de um narrado e inviabiliza o funcionamento de uma narrativa
encontra respaldo não apenas na estrutura fragmentar, nos vários episódios em suspenso,
ou no que chamamos de
ideia do possível. O que diremos,
entretanto, está longe de ser a resposta definitiva para o livro de Antonio
Geraldo Figueiredo Ferreira e é apenas uma leitura possível que encontra um respaldo
na própria materialidade dos textos, afinal, o tipo de literatura aqui
praticado considera o mundo verbal um todo coerente dentro de sua estrutura
caótica. E, claro, as respostas que, como leitores, procuramos na literatura estão
nela própria.
É assim que lemos o fragmento
“sofismas diários”, epigrafado por uma passagem do conto “O espelho”, de
Machado de Assis como uma chave para o próprio livro, principalmente quando regressamos
ao poema de abertura ou ainda o material que lemos até agora. A história
possível nesse texto é a de um suicida que em vida foi autor da referida peça
sobre a qual falamos, de outra parafernália de escritos distribuídos por amigos
diversos. Isto é, alcançaríamos assim outra vez a noção de arquivo até agora perseguida.
Escritor medíocre ou figura
marginal, esse ator ganhava a vida cumprindo esquetes urbanos como sombra até um
dia ser atormentado, física ou imaginariamente, por outra sombra/ator que o
intimida e mais adiante o obriga a que se projete autofagicamente sobre sua
própria existência, o que resulta no suicídio. Ora, não apenas a peça essencial
nesse envelope de notas, essa circunstância abre para uma série de motivos
complexos e caros para a arte da narrativa, sendo alguns deles, o princípio
básico da ficção, a mimesis como a mentira que engole a verdade, a dissimulação,
o autor como sombra do escritor e outra vez o dilema da morte do autor, se a
associação ator-autor estiver correta no impasse encenado em “sofismas diários”
do ator-sombra-suicídio.
Voltemos ao texto de Machado de
Assis. Depois de angariar um posto na milícia imperial, Jacobina é convidado
para uma temporada no sítio de sua tia, quem lhe oferece um imponente espelho. Na
nova casa, o jovem é continuamente interpelado por sua posição militar,
deixando de ser, de alguma forma, o Jacobina para ser o que se vislumbra pela
sua farda. Mais tarde sozinho e tomado por um profundo vazio e angústia de si
vê-se difuso diante do espelho, condição que se modifica apenas quando se
apresenta trajando a roupa da guarda. O acontecimento narrado pelo próprio
personagem a fim de provar para um grupo de amigos que discutiam sobre a
essência do homem e que para Jacobina se demonstra com pelo menos dupla camada,
a que vemos e a que se oculta ou a que nos é atribuída, é ainda motivo para uma
variedade de duplicações, entre elas, entre o real e o imaginado, entre quem
somos quando nos vemos e quem somos quando os outros nos veem.
Pelo menos esse duplo movimento de
duplos se opera em
a visita que hoje estamos. O mundo que aí se mostra é
olhado por uma mobilidade de perspectivas: a de quem vê e a de quem é visto, além,
é claro, de se confundir o real e o imaginado. Sustentando a leitura dos
fragmentos como produto de um ator/escritor, os impasses entre imaginação e
acontecido já são de um todo evidentes porque nada garante que as múltiplas
vozes não sejam emulação de uma única voz, a dele mesmo. Mas, existe ainda
outro agravante capaz de ampliar a complexidade das coisas: quem alcança os
papéis do ator/escritor é o autor/escritor, quem também não é, jamais, figura
da mais confiável, afinal, ausente o autor dos escritos, sua autoridade confere
o governo das anotações. A essa altura, outra questão se impõe: quem é ou onde
está o autor? Uma pergunta que como o eco de câmara ou multiplicação numa sala
de espelhos resulta impossível de categorizar, restando apenas nos contentar
com a voz artificializada pela estrutura verbal da narrativa. Se não fizemos
isso, corremos o mesmo risco do mesmo destino de Eusébio o ator/sombra de
“sofismas diários”.
É dele, e propriamente porque
assinado por ele, um sofisma que poderíamos tomar, sempre de maneira audaciosa,
como síntese para este objeto que, graças a natureza plástica da forma,
chamamos de romance: “Que grande livro aquele! Ao terminar a leitura, a certeza
de que é obra inteiramente inacabada.” O escritor brasileiro não compõe nenhum
engenho capaz de se inscrever como marca indelével na história do romance,
entretanto,
a visita que hoje estamos amplia significativamente os
limites da forma em língua portuguesa e a maneira como nos relacionamos com a
arte de narrar. O mundo não é uniforme. E se as situações, sempre as mesmas,
repetidas em
puzzle, dizem o contrário, o olhar, que realmente organiza
o mundo, é diverso, parcelar, informe. O olhar se molda pela maneira como nos
relacionamos com a cultura, as ideologias, ainda que solto da comunidade, ainda
que autocentrado. Ao
redizer isso e, principalmente, a maneira como
rediz, faz deste livro um dos objetos literários mais interessantes na
literatura brasileira recente.
494 p.
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