Por Federico Guzmán Rubio
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María Luisa Bombal. Foto: Arquivo Biblioteca Nacional do Chile. |
Poucos livros na história da
literatura latino-americana foram tão audaciosos como
A amortalhada
(1938), a começar por não se preocupar em explicar a sua ousadia. Ao contrário
das vanguardas, que ao menor descuido anunciavam que estavam revolucionando a
literatura porque se não gritassem ninguém notaria, ou mesmo Borges ou Arlt,
que escreviam prólogos de uma falsa modéstia (o primeiro) ou de magnífica
arrogância (o segundo) para justificar seus livros, a chilena María Luisa
Bombal (1910-1980) publicou seu romance sem grandes proclamações ou instruções,
confiante de que seria lido pelo que era: uma pequena obra-prima diferente de
tudo o que foi escrito até então. E foi e não foi.
A amortalhada foi ousado no
tratamento desinibido do fantástico. A autora não pede licença nem perdão por
imaginar, não dá explicações rebuscadas acerca do maravilhoso, não nega o que
se sonha; a magia simplesmente acontece. Em
A invenção de Morel,
publicada apenas dois anos depois, e como em seus contos fantásticos, Bioy
Casares sempre dá uma explicação para o acontecimento fantástico,
racionalizando-o assim; uma década depois, Carpentier publicaria
O reino
deste mundo, onde atribui o fantástico a uma condição cultural e
geográfica: a América Latina é maravilhosa por ela própria. Nada disso acontece
em
A amortalhada, construído a partir do momento em que uma morta
observa, do caixão, os enlutados que vêm se despedir dela. Ana María, a
protagonista, nem sequer se surpreende ou surpreende ao ver a vida a partir da
morte e, em vez de questionar a causa do prodígio, dedica-se a relembrar a sua
vida. Este fato é duplamente perturbador, porque para além da possibilidade de
continuar a ver, lembrar e pensar apesar de morta, o que é verdadeiramente
extraordinário e misterioso para Ana María são todas as experiências que viveu
e, para o leitor, o ponto de vista a partir do qual elas são narradas. Para
Bombal, o fantástico está no vivido e na forma como é lembrado e interpretado,
enigmas diante dos quais a morte empalidece.
A amortalhada foi
formalmente ousada. Em suas breves e imensas cem páginas, tempos verbais e
diferentes pessoas gramaticais se alternam com tal naturalidade que as mudanças
passam despercebidas e exigem uma leitura atenta e distanciada para
identificá-las. Esta fluidez responde ao fato de a experimentação, em Bombal,
não ser uma exposição técnica, mas estar ao serviço da narrativa e das
personagens. Por exemplo, no início, o romance é narrado na tradicional
terceira pessoa onisciente, mas quando Ricardo, o primeiro amor de Ana María,
olha para o caixão e vê seu cadáver, uma primeira pessoa, mais comprometida e
emocionalmente ligada à narrativa, se apropria do texto. Os narradores em
primeira, terceira e às vezes segunda pessoa passam a palavra, discretos e
generosos, sempre dependendo de qual deles é mais relevante para contar aquela
passagem específica.
O mesmo acontece com os tempos
verbais: passado e presente alternam-se, confundem-se e fundem-se, em
consonância com toda uma vida que se passa na noite do velório da mulher defunta.
Obviamente, estes recursos respondem à influência das vanguardas, das quais
Bombal tirou o que precisava para a sua literatura, deixando de lado o rebuliço
e a estridência para quem se contentava em espantar os burgueses. Na verdade,
A
amortalhada não seria vista como uma das experiências narrativas mais
radicais da vanguarda latino-americana se tivesse fracassado, mas a escritora
chilena conseguiu construir uma narrativa, com a fragmentação cubista e a
atmosfera surrealista, de forma fluida e espontânea.
A amortalhada foi ousada
porque, novamente sem pedir licença, falou do corpo como ninguém havia feito
antes, muito menos do corpo feminino. Poderíamos pensar que a literatura
fantástica, ocupada em imaginar outros mundos ou a imaterialidade dos
fantasmas, não era o veículo adequado para explorar o corpo. No entanto, foi numa
matriz do gênero a partir da qual Bombal descreveu pela primeira vez
experiências na vida das mulheres como o aborto ou o orgasmo, ausentes da
literatura latino-americana devido a relutância em falar sobre o corpo, fosse
por causa da predominância quase absoluta do ponto de vista masculino, fosse da
moral dominante. Na verdade, a narrativa nunca utiliza as palavras “aborto” e
“orgasmo”, mas através de reticências, perífrases e da descrição poética
constitutivas da escrita da romancista, se alude ao que até então ninguém tinha
nomeado.
Que Ana María estivesse grávida do
amante já era uma afronta moral, que ela não tivesse o menor remorso por isso
era ainda mais escandaloso e que finalmente considerasse fazer um aborto era
demais, mas a narrativa de Bombal é clara ao descrever a indecisão de sua
protagonista, ao usar as elipses mais subversivas da história da literatura
latino-americana: “Amanhã, amanhã vou procurar aquelas ervas que… ou talvez vou
consultar a mulher que mora no barranco…”. Finalmente Ana María aborta, embora
o romance mantenha habilmente a ambiguidade de se ter sido um aborto espontâneo
ou induzido, o que conseguiu evitar uma possível censura. Mas se a causa do
aborto não é esclarecida, a sua descrição é contundente: “Corri até a porta e a abri. Avançava
penosamente pela escuridão com os braços estendidos, como as sonâmbulas, quando
o chão afundou sob meus pés em um vazio incomum. Zoila veio me levantar ao pé
da escada. O resto da noite ela passou enxugando, muda e chorosa, o rio de
sangue em que se desintegrava aquela sua carne misturada com a minha...”
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A primeira edição brasileira de A amortalhada. |
Bombal é evocativa e ao mesmo
tempo objetiva quando fala do prazer. Já em seu primeiro romance, A última
névoa (1934),¹ havia ensaiado uma descrição do orgasmo, que aparece no
romance seguinte de uma forma que está sujeita à trama; não é que Bombal
pretenda ser a primeira a narrar seja o que for, mas para contar a história que
precisa contar requer introduzir as experiências relevantes vividas pela sua
protagonista e o orgasmo é uma delas, não associada, aliás , ao casal que mais
ama: “Era como se do centro de suas entranhas nascesse um ardente e lento calafrio
que, junto com cada carícia, começava a subir, a crescer, a envolvê-la em anéis
até a raiz dos cabelos, até a agarrar pelo pescoço, cortar sua respiração e
sacudi-la para, finalmente jogá-la, exausta e sóbria, contra a cama desfeita.”
Se a descrição do aborto e do
orgasmo se destacam pela novidade e ousadia, há muitas outras, sempre ligadas
aos processos do corpo e das emoções, que podem ser menos subversivas mas
igualmente bem-sucedidas, como as dedicadas à velhice, à gravidez, à tristeza e
à plenitude.
Apesar das novidades citadas, a
intenção de María Luisa Bombal não é inovar por inovar, tanto que A
amortalhada tem um pé muito firme na tradição novelística da época. Porque,
entre muitas outras coisas, é também um romance criollista que respeita
algumas diretrizes do subgênero. Aí estão os cenários idílicos de Don
Segundo Sombra ou as fazendas idealizadas de Memórias de Mamá Blanca,
mas o que em Ricardo Güiraldes e Teresa de la Parra é antes de tudo um
regionalismo melancólico, no romance chileno é um simples cenário para que sua
protagonista viva as emoções e experiências que exaltam e resumem toda a vida.
E o fato de ser simultânea e impossivelmente um romance criollista e um
romance íntimo é apenas um dos felizes paradoxos de A amortalhada, que é
também um romance realista e ao mesmo tempo fantástico, uma história de
fantasmas, uma consciência lúcida que é abandonada numa atmosfera onírica, e o
estudo psicológico de uma mulher, e por fim, um romance construído sob uma
premissa da literatura gótica mais clássica — uma mulher morta que vive e
contempla o seu próprio velório e sepultamento —, em que o horror brilha pela
sua ausência, ofuscada pelas alegrias e misérias da vida que chega ao fim e que
é lembrada pelo que é: o mais extenso de todos os sonhos.
O primeiro a notar os paradoxos de
A amortalhada foi Jorge Luis Borges. Quando sua amiga lhe contou o
enredo do romance que estava escrevendo, tal como confessa na resenha que
publicou na Sur (n. 47, agosto de 1938), o escritor argentino advertiu-a
de que era de “execução impossível”, pois a parte mágica “invalidaria” a
psicológica, ou vice-versa. Ela o ouviu pacientemente, rejeitando suas
opiniões, e Borges, ao ler a versão final do romance, não teve escolha senão
aceitar que havia se enganado e que Bombal havia conseguido o impossível, então
A amortalhada estava destinado a ser um “livro que nossa América não
esquecerá.”
Desde então, a influência desse romance foi fundamental na
literatura latino-americana, que o leu e aproveitou de acordo com o espírito de
cada época. A nossa tem privilegiado o lugar que nele ocupa o corpo feminino,
enquanto para Juan Rulfo, como admitiu em múltiplas ocasiões, foi uma
influência decisiva na imaginação dos fantasmas da sua Comala. A forma como
Rulfo conheceu Bombal ainda é marcante, segundo Diego Zúñiga em María Luisa
Bombal, el teatro de los muertos (UDP, Santiago do Chile, 2019). Durante
uma estadia no México, a chilena foi realizar um procedimento nos escritórios
de imigração onde Rulfo trabalhava como funcionário. Para surpresa da escritora,
o funcionário sabia muito de literatura e também compartilhava sua admiração
pelo norueguês Knut Hamsun, por isso, dias depois, ela voltou para lhe entregar
um de seus livros; o resto da história é literatura, e da melhor.
Esta última é uma das muitas
anedotas de uma vida saturada delas, quase sempre pela literatura e pela
amizade, mas também pela tragédia e pelo abandono. O filme Bombal (2012)
tentou aproveitá-las para uma cinebiografia de grande sucesso, mas reduziu a
escritora ao episódio em que atirou num de seus amantes em pleno centro de
Santiago. Ele ficou ferido e Bombal se livrou da prisão graças aos seus
advogados demonstrarem que ela passava por uma crise psiquiátrica, da qual
conseguiu superar. Além dessa Bombal de questionável gosto cinematográfico,
prefiro lembrar a que escreveu A amortalhada numa mesa de cozinha em
Buenos Aires enquanto Neruda escrevia na mesma madeira o primeiro Residência
na terra; lembrar a amiga de Borges e García Lorca na aclimatada Buenos
Aires da década de 1930; a quem Victoria Ocampo encomendou uma crítica para Sur
de um filme argentino estrelado por Libertad Lamarque, já que nenhum outro
colaborador da revista teria aceitado uma tarefa tão pouco prestigiosa.
A resenha
fez tanto sucesso que a edição da revista esgotou e os produtores de cinema
procuraram Bombal para escrever roteiros de filmes, alguns dos quais foram
sucesso de bilheteria. Mais tarde foi morar nos Estados Unidos e passou muitos
anos em Nova York, onde continuou trabalhando com cinema e publicidade. A
prestigiada editora Farrar & Straus interessou-se pelos seus romances, mas
exigiu que ela os unisse, alongasse e aliviasse a sua carga poética, o que a
escritora aceitou com relutância, segundo diz no seu Testimonio
autobioráfico (2005), resgatado por Lucía Guerra para a publicação de suas
obras completas. Apesar dos cem mil exemplares que o resultado vendeu, Bombal
considerou aquela versão mutilada, embora fosse o dobro da extensão dos
originais.
De fato, depois de A
amortalhada, que publicou aos vinte e oito anos, e salvo alguns contos e
edições revistas, María Luisa Bombal não voltou a ser publicada. O resto da
vida foi passado fugindo desse romance poético e estranho em que já havia
escrito tudo o que havia vivido e, profeticamente, o que ainda tinha para
viver. Velha, voltou ao Chile, onde passou seus últimos anos como uma lenda
esquecida, alcoólatra e sozinha, ansiando pelo reconhecimento nacional, tão
insignificante para ela, que nunca lhe foi concedido. Quantas tardes solitárias
María Luisa Bombal deve ter pensado que se tornara Ana María, a protagonista do
seu romance, que evoca a sua vida desde a morte; quantas tardes solitárias
María Luisa Bombal deve ter pensado que a vida é mais misteriosa que a
literatura. Mas, como A amortalhada, por vezes a literatura é mais bela
que a vida, e nisso reside a sua audácia mais insolente, pois a beleza é sempre
uma insolência violenta que contrasta com a rotina cinzenta do mundo.
Notas da tradução:
1 Os dois romances aqui referidos,
A amortalhada e A última névoa estão traduzidos no Brasil. O
último título aparece em tradução de Neide T. Maria González (Difel, 1985); e o
primeiro, traduzido por Aurora Fornoni Bernardini (Difel, 1986). Depois, os
dois são reunidos num único volume com tradução de Laura Janina Hosiasson
(Cosac Naify, 2013).
* Este texto é a tradução livre para “La insolente audacia
de María Luisa Bombal”, publicado inicialmente em El Cultural.
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