A espessura da emoção

Por Nadia Villafuerte


Alice Munro. Foto: Chad Hipolito



Na obra de Alice Munro destaca-se a profundidade psicológica, uma abordagem compassiva e implacável da vida aparentemente cotidiana, de personagens que, para além do cenário geográfico ou da época, possuem um mundo emocional contraditório, um mundo interior que adquire espessura e demonstra por que além do tempo, a alma e a psique humanas continuam a ser um território de permanente perplexidade. Não há verdade que viva em extremos, e assim os personagens de Munro tornam-se prismas de emoções conflitantes: o tédio e a ansiedade, o desejo de fugir e o remorso por querer fazê-lo, a resignação e a desobediência às vezes coexistem na mesma mente; Normalidade e atrocidade são frequentemente servidas no mesmo prato.
 
A escrita de Munro não se constitui de grandes rupturas formais, embora escolher o conto como gênero literário já signifique em si um ato de subversão. Mas Munro é uma autora que, com sobriedade na utilização dos seus recursos, consegue recombinar elementos díspares que, por um lado, preservam a tradição e, por outro, conseguem aprofundar os mecanismos da exploração psicológica moderna (de que outra forma dizer o que continua nos fazendo seres humanos obstinadamente insatisfeitos), ou ampliar o alcance do gênero, para dar dois exemplos. Porque nos contos de Alice Munro o tempo é uma matéria importante, e as suas histórias podem ser vislumbres de romances: condensam uma semana, um mês ou uma década num breve espaço (ela desacelera e de repente recomeça a correr), mas em conjunto funcionam como um universo orgânico, sutil mas orgânico, ao mesmo tempo que parecem retratar a natureza fragmentária da vida. “Vejo a vida como peças separadas que não se encaixam”, nos diz Munro.
 
Xícaras e cortinas
 
O fato de Alice Munro falar sobre mulheres é frequentemente enfatizado. Receio que esta afirmação esteja repleta de suspeitas. É curioso que os escritores não sejam questionados sobre as razões pelas quais fundam um “universo masculino”. Ainda me parece preconceituoso que uma escritora seja questionada sobre os temas que decide falar. Que Corín Tellado ou Elfriede Jelinek falem de mulheres, a primeira ratificando o modelo patriarcal do amor romântico, a segunda colocando em crise esse modelo falocêntrico, não deveria ser por si só o ponto em questão. Ainda se pergunta às escritoras por que escolhem o que querem contar. Há um menosprezo, nesta dimensão, pelo que se chama de “feminino”. Como se mais cedo ou mais tarde e apesar do feminismo, a vida doméstica fosse um cenário menor. Nenhum escritor que se tenha dedicado a explorar as derrotas íntimas do ser humano — penso no próprio Tchekhov, em Carver, em Cheever — é questionado se escreve sobre as explosões emocionais que ocorrem numa garagem ou numa cozinha. Os estereótipos literários tiveram um lugar tanto nas obras de escritores masculinos quanto femininos. Só que os escritores são integrados ao cânone e as escritoras são categorizadas e, ainda por cima, questionadas.
 
Portanto, neste sentido, a contribuição de Munro é dupla. Primeiro, porque ela não subestima o ambiente que herdou: havia mulheres ao seu redor, e foram elas que talvez a tenham ensinado a ver as relações afetivas entre homens e mulheres, entre mulheres e mulheres, entre homens e homens de uma determinada maneira. Suas próprias leituras, as influências de que falou, são as das grandes escritoras estadunidenses do século XX: Katherine Anne Porter, Eudora Welty, Flannery O’Connor, Carson McCullers.
 
Segunda contribuição: Munro não faz uma apologia nem uma exaltação do psiquismo feminino, mas deixa de lado todo tipo de complacência e permanece implacável ao julgar o gênero ao qual pertence. Quando não é elegantemente sarcástica, é cruel com elas: as mulheres de Munro carregam dentro de suas cabeças a serenidade violenta a que seu destino as confina: algumas não estão onde queriam estar, mas também não podem fugir para outro lugar, às vezes não querem nem fugir ou quando podem, acabam desistindo. Outras ainda, como ela mesma fez, decidem um caminho ou outro, uma liberdade conquistada ou encontrada por engano, mas não como heroínas e sim sofrendo ou enfrentando todas essas decisões. Mulheres que escolhem por convicção ou por acaso, o que esses personagens demonstram é que os acontecimentos mais comuns e triviais podem nos levar a grandes dilemas morais que podemos enfrentar com discrição e calma, ou que podemos ignorar e guardar novamente no armário.
 
É verdade que, como afirma Diamela Eltit, a crítica é mais severa quando se trata de questionar as escritoras em relação ao seu discurso literário. Mas não se trata, repito, de insistir na razão pela qual as escritoras escolhem falar sobre mulheres ou por que não é dada aos escritores uma cláusula duvidosa quando falam sobre a vida doméstica. Trata-se de ver como um autor ou uma autora decide romper com estereótipos de qualquer espécie, porque um escritor tem que ter um olhar de bisturi para cortar o que decidiu colocar diante de nós, seja uma cena política ou bucólica.
 
Memória e ficção
 
Há alguns anos escrevi uma resenha de A vista de Castle Rock, que continua sendo, por empatia estilística, meu livro favorito de Munro. É uma coletânea de contos que, em seu conjunto, podem ser lidas como um romance fragmentário, e que também brinca com o caráter fabulador da biografia, pois, embora Alice Munro tenha se proposto a resgatar as histórias de seu álbum de família, a escrita bifurcou sua missão inicial e apagou as fronteiras entre memória e ficção. Assim, a possibilidade de inventar o próprio passado, ou de saber que essas cenas do passado podem ter raízes imaginárias (Munro não coloca dessa forma, mas como leitor intui-se que tanto a matéria histórica quanto a imaginária estão interligadas), torna-se a mesma substância., uma substância espessa, de natureza emocional. A espessura emocional que Munro recupera é, aliás, outra das suas qualidades, outra das suas subversões, pois vivemos num momento de triunfo do cinismo e em que olhar para as emoções humanas não parece apenas uma piscadela passageira mas um compromisso suspeito ou vergonhoso cujo desprezo tem mais a ver com modéstia do que com a suposta “crítica corrosiva” da época.
 
Por isso, para estes resultados é reducionista e torpe continuar a usar o termo “Tchekhov canadense” ou mesmo “Tchekhov de saias” para se referir a Alice Munro: pode soar bastante pejorativo em vez de lisonjeiro, embora entenda as razões: que Alice Munro escolha o conto como gênero é um deles; que, como o autor russo, ela encontre nas cenas comuns, aparentemente simples, o eco das tragédias universais é outra; que tal como os jardins eram simbólicos nas histórias de Tchekhov, em Munro as paisagens da seu Ontário natal representam fisicamente a geografia interior dos seres que a habitam, com os seus valores contraditórios, a sua beleza hermética, as suas limitações e as suas zonas de perigo, é mais uma razão.
 
Contar
 
Já foi dito o suficiente sobre as cotas que a Academia Sueca parece cumprir para o Prêmio Nobel (de gênero, política, geográfica) para além do que realmente importaria no momento da escolha, ou seja, a matéria literária. Com Alice Munro foi premiar um gênero ao qual devemos grande parte da tradição clássica e que, por razões de mercado editorial, tem sido colocado à margem. Construir histórias e condensá-las num punhado de páginas é uma homenagem a um desafio formal de difícil natureza, mas que em troca compensa o leitor com um prazer muito diferente (mais parecido com um espasmo) daquele que se tem com o romance. O conto exige uma meticulosa construção, um rigor, um trabalho quase arqueológico onde as peças que faltam são por vezes mais importantes do que as que o não faltam, e na mesma medida, um exercício de observação que possa aprofundar complexificar o mundo mesmo na superfície e na tempestade em se converte um fragmento de tempo. 


* Este texto é a tradução livre para “El espesor emocional”, publicado aqui, em Confabulario.

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