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Witold Gombrowicz. Tandil, 1958. |
Antes de tudo, devo esclarecer a
maneira ridícula como surgiu meu fascínio pela literatura de Gombrowicz. Surgiu
muito antes de ler sua obra. Nasceu exatamente do contato com uma fotografia
que acompanhava a entrevista que lhe fizeram no primeiro número da revista
espanhola
Quimera. Gombrowicz posava com um boina, muito altivo no alto
do que parecia ser uma carruagem, em Tandil, Argentina. Ele tinha o que eu
entendia que deveria ter, um rosto arrogante de uma pessoa inteligente. Ainda
não sabia que ele havia escrito: “Quanto mais inteligente se é, mais tolo.”
Eu ainda não sabia disso ou de muitas
outras coisas, mas me pareceu intuir que na entrevista Gombrowicz dizia coisas geniais
ou complicadas. As frases complicadas acabaram parecendo-me ainda melhores do
que as geniais. Quero ser parecido com ele, pensei imediatamente. Não queria
ser como Juan Benet ou Sánchez Ferlosio. Queria ser um escritor não-espanhol e,
se possível, raro e do país mais estranho que pudesse encontrar. E quando chegasse
à maturidade, queria escrever sobre a imaturidade, como Gombrowicz, e ter uma
cara tão orgulhosa quanto a dele. Como digo, foi um amor à primeira vista
através de uma fotografia e algumas palavras ditas numa entrevista que li às
pressas. Um começo de paixão um tanto ridículo. Claro, é bastante evidente que sempre
se começa com alguma coisa. Da mesma forma que — outra evidência — o amor é
cego. De repente, tudo sobre Gombrowicz começou a parecer fascinante para mim.
Mas a irradiação do encanto, por muito tempo, veio apenas do espaço das
entrevistas e das fotografias que encontrava deste escritor. Faltava-me ler os
livros do tal Gombrowicz. Faltava-me nada menos que isso. Eu pensava, no
entanto, que essas leituras poderiam esperar, porque, afinal, eu ainda era
jovem e imaturo. É evidente que tinha uma boa e terna desculpa. Ou não?
A primeira coisa que fiz foi ler
sua vida. Voltarei a fazer isso ao longo destas seis horas e quinze minutos (simbólicas,
não tenha medo) que vamos dedicar a Gombrowicz. Sua vida foi interessante? Foi,
mas não a invejo. Isso me permite entrar no assunto sem muita justificativa e
com uma certa descontração, talvez também produto da hora. Escrevo isto às seis
e quinze da manhã, em Barcelona. Está chovendo. E me lembro da mãe de
Gombrowicz, aquela mãe que, com seu discurso chato e sua tendência a acreditar
na realidade, explica a linguagem vanguardista e provocadora do filho, que
sempre entendeu que uma mãe com senso normal da realidade era como um peixe que
pega a isca e não vê a linha.
O mundo está cheio de mães
realistas, mas nem todas têm filhos como Gombrowicz. O futuro escritor nasceu
em 4 de agosto de 1904 na quinta de Maloszyce, propriedade de seu pai,
localizada a cerca de duzentos quilômetros ao sul de Varsóvia. A partir dos
seis anos começou a fazer uma viagem anual com sua mãe realista, iam
preferencialmente a Áustria e Alemanha. “Sou um artista por causa da minha mãe”,
dizia Gombrowicz a Dominique de Roux numa das entrevistas realizadas por ele em
Vence. Abolir a tradição, a convencionalismo, o engano da forma, tudo isso chegou
a Gombrowicz da rebelião que começou tão cedo contra sua bem-aventurada mãe.
Ela era fascinada pelos médicos eminentes, os professores, o mundo real, os grandes
pensadores, as pessoas bem-educadas e geralmente as pessoas decentes e sérias.
E foi ela quem, sem querer, empurrou o filho para o mais puro disparate, para
aquelas nuances do Absurdo que dominariam anos depois o colorido artístico do
excêntrico Gombrowicz.
Por volta de 1914 o escritor
descobriu a forma ideal de atormentar sua rígida e realista mãe. “Consistia em
afirmar sistematicamente o oposto do que ela poderia dizer.” A mãe dizia, por
exemplo: “Está chovendo”. E, de fato, estava chovendo em Maloszyce. Mas o filho
dizia o contrário: “Como que chove? Brilha um sol esplêndido.” A mãe se desesperava.
“Está chovendo, estou vendo chover.” Dessa técnica de dizer o contrário, ou
seja, dessa impagável escola alimentada pela mãe, surgiu no jovem Gombrowicz
sua futura obsessão pelo descabido. Nesse jardim-de-infância aprendeu a dizer o
contrário do que dele se esperava, aprendeu a ser um adolescente profissional,
a analisar o tema sempre fascinante da imaturidade, a boicotar a forma nacional
polonesa (“quando escrevo não sou nem chinês nem polonês”), a celebrar
piedosamente o absurdo, a se levantar contra aqueles que lançavam anátemas
contra si mesmo, a proclamar que a arte goza de melhor saúde quando não surge
diretamente do meio artístico: “A capacidade de mergulhar no absurdo pertence à
minha mãe a quem devo isso.”
Em 1926 formou-se em Direito em
Varsóvia. No ano seguinte, ele viajou para a França, onde se cercou de amigos
que se dedicaram ao tráfico de escravos brancos. Cinquenta meses depois, de
volta ao seu país, começou a assentar a cabeça e também a bunda, isto é, a
frequentar os cafés literários de Varsóvia. Em 1936 desenvolveu amoricos com
sua cozinheira, muitos relacionamentos com as criadas e, segundo suas próprias
palavras, “um flerte com uma bela poetisa”. Em 1937, apareceu uma de suas obras
mais famosas nas Edições Roj de Varsóvia,
Ferdydurke, uma importante
graça, um tratado sobre a imaturidade cuja sombra se projetou sobre o Maio de
1968 e acabou convertendo seu autor em algo próximo — principalmente a
juventude francesa de então — a uma estrela pop (ver a edição dedicada a ele na
revista
Les Inrockuptibles, por exemplo).
Em 1938 passou uma longa temporada
na região montanhosa polonesa dos Tatras, onde se recuperou de problemas
físicos. No ano seguinte, foi convidado pela companhia de navegação polonesa
para a viagem inaugural do navio Chorbry. Partiu para Buenos Aires no primeiro
dia de agosto e, durante sua breve estada na Argentina, estourou a Segunda
Guerra Mundial. Ocupada a Polônia, sua permanência em Buenos Aires durou até
1963, ou seja, vinte e quatro anos.
Na Argentina percebeu que havia
passado de sua realista mãe polonesa para um conclusivo mundo de vacas espiãs.
É essencial ler suas reflexões existencialistas sobre seu inquietante e
proverbial encontro com o olhar de uma vaca. Embora possa ser lido em poucos
segundos, recomenda-se passar um quarto de hora na leitura desse encontro,
ruminando sobre, como se fôssemos nós mesmos uma pobre e vulgar vaca. Talvez
estejamos diante de um texto fundamental de Gombrowicz:
Passeava pela avenida ladeada de
eucaliptos, quando de repente apareceu, de detrás de uma árvore, uma vaca. Parei
e trocamos olhares com o branco dos olhos. A essa altura, sua bovinidade
surpreendeu minha humanidade e me senti confuso como homem, ou seja, em minha
espécie humana [...] Eu havia permitido que a vaca me olhasse e me visse — isso
nos tornava iguais — e de repente eu mesmo tornei-me em animal, mas um animal
estranho, quase diria proibido...
Às vezes penso que ler Gombrowicz
é como continuar aquele seu passeio humano interrompido pelo olho bovino, mas sentindo-nos
“desconfortável [...] na natureza que nos cerca por toda parte, como se [...]
nos contemplasse”. Enfim. Por falta de espaço e outros motivos, os vinte e
quatro anos que Gombrowicz passou na Argentina podem ser lidos aqui em poucos
minutos, contanto que depois voltemos com mais paciência para pensar na
experiência argentina do escritor. E não há melhor maneira de pensar nisso do
que se deter nos dois volumes de seus
Diários, onde o leitor encontrará com
profusa riqueza de detalhes os momentos mais brilhantes — não é à toa que há
retratos
de momentos, histórias de momentos deslumbrantes, de momentos em que um
pensamento nasce em relação muito estreita com conteúdos casuais do ambiente —,
os momentos mais esplêndidos alcançados por Gombrowicz ao longo de toda a sua
escrita, não sei se digo também ao longo de sua carreira.
Era um mestre em
retratos de
momentos. Mas continuemos. De que carreira estamos falando quando falamos
de Gombrowicz? Sejamos justos. Na realidade, quando o sucesso chegou — o que
coincidiu com seu retorno à Europa em 1963 — parece não ter encontrado nele grande
gosto. Entendeu muito bem o sucesso apetece enquanto não o tem. Uma vez
alcançado, pode ser um grande aborrecimento para a carreira de alguém avançar
bem:
O que posso fazer? Eu estou nisso!
Desde que escrevo, sempre tive que destruir alguém para me salvar. Se em
Ferdydurke
aceitei críticas, foi por me eliminar do jogo, por estar de um lado. Minhas
investidas contra os poetas e os pintores também foram ditas pela necessidade
de me colocar de lado. Eu morria de vergonha só de pensar que um dia eu também
seria um artista como eles, que me tornaria um cidadão dessa ridícula república
de almas cândidas, uma engrenagem dessa máquina horrível, um membro do clã. Por
nada no mundo!
Enquanto o sucesso não chegava, Gombrowicz
esteve na suave Argentina. Xadrez, vacas e pornografia. Em 1941, experiências
homossexuais com meninos das favelas de Buenos Aires. Em 42, bilhar e muitas
conversas no Café Rex. Em 43 ele vê como um pequeno círculo de amigos está se
formando ao seu redor e também vê como as mulheres que acreditam em seu
trabalho lhe dão dinheiro. Em 44 começou a escrever sua peça
O casamento
nas montanhas de Córdoba. Em 47 inicia
Transatlântico. Dez anos depois,
quando ocorreu o degelo político na Polônia, todas as suas obras começaram a
ser publicadas em seu país. Ao mesmo tempo, aparecem entusiásticas críticas a
Ferdydurke
em Paris, o que fez com que começasse a ser traduzido para todas as línguas,
com exceção das dos países do Leste europeu. De 1958 é a foto em que é visto de
boina sentado numa carruagem na cidade de Tandil, a foto que eu veria anos
depois e que me levaria a admirá-lo pela sua presença física e pelo que dizia
nas entrevistas, a foto que me fez sentir por ele momentos de uma certa
atração. Embora ler sua obra, o que se diz ler, não o li até 1993. Li, então,
muito tarde e convencido de que minha escrita era muito parecida com a dele. A
surpresa foi grande quando naqueles dias, em maio de 93, numa viagem de ônibus a
Teruel, li o primeiro volume de
Diários e vi com grande espanto que não se
parecia em nada, mas em nada, com o que eu escrevia. Durante anos imaginei
copiá-lo e isso me ajudou, sem saber, a criar meu próprio estilo.
Querendo me parecer com ele,
acabei parecendo comigo. Ao comentar isso com o grande Sergio Pitol — tradutor
e grande admirador de nosso escritor —, ele se limitou a me dizer que havia uma
aspiração de Gombrowicz com a qual se identificava acima de qualquer outra e
essa não era outra coisa senão a vontade de ser alguém próprio apesar do
conhecimento que os outros nos criam. Certamente se referia a uma frase-chave
dos
Diários de nosso escritor: “Não sei quem sou, mas sofro quando me
deformam, só isso.”
A mesma coisa acontece comigo
agora. Acredito que ao longo destes últimos anos fiz muito bem em dizer que não
sei quem sou — sou, em todo caso, qualquer escritor exceto Gombrowicz —, mas
que peço que outros não me expliquem quem sou, porque para isso prefiro ser
Gombrowicz. Voltemos a ele. Em 1963 deixou Buenos Aires definitivamente,
embarcou no Federico. “Matem Borges!”, gritou para seus amigos portenhos do
alto da embarcação. Sabe muito bem o que se diz, é um conselho de enorme
sensatez, ao qual não vão dar ouvidos seus pobres discípulos, que andavam para
sempre arrasados pelas estradas mais planas do Pampa.
Depois de um quarto de século na
Argentina (“Aí se sente a presença da Europa com muita mais intensidade do que
na Europa, e ao mesmo tempo se está fora dela. Além disso, naquele território
de vacas não se aprecia a literatura”), chega em Barcelona a 22 de abril. Não
desembarca porque, como pude apurar conversando com Rita Gombrowicz (a jovem
canadense que conheceria naquela viagem definitiva à Europa e com quem se
casou), ele não tinha dinheiro e talvez a Barcelona de 1963, aliás, não o
interessava em nada. Rita, em todo o caso, tem a certeza de que não pôs os pés
naquela cidade e que esperou pelo dia seguinte, esperou a embarcação atracar em
Cannes para pôr os pés na Europa. Nesse dia, 22 de abril, fui a uma matinê de
música bem moderna, de música dos Los Pájaros Locos. Assim anotei em meu
recém-inaugurado diário, tinha então quinze anos e me deram o que se chama de
diário
americano. Fui ouvir Los Pájaros Locos sem, é claro, ter a menor ideia de
que aquele seria o dia em que estaria mais próximo de outro pássaro desatinado
da minha vida, o grande Gombrowicz.
No dia seguinte, eu ainda era, é
claro, um estudante. Gombrowicz, por sua vez, pegou o trem Mistral em Cannes,
direto para Paris. Nesta cidade, em um quarto de hotel, perto da Ópera, teve
que abrir uma janela porque estava com falta de ar e respirando cada vez pior. Começou
a entender que a Europa, para ele, significava a morte: “Eu disse a mim mesmo,
você chegou ao fim da estrada, está acabado”.
Dias depois, chegava a Berlim,
onde havia ganhado uma bolsa de estudos por um ano. Continuava respirando mal.
Estava finalmente naquele lugar demoníaco (de acordo com suas próprias
palavras) de onde havia começado a Grande Ruína, incluindo a dele. Aquela ruína
forjada pelo ardor guerreiro que o deixou preso um quarto de século na
Argentina: “Resisti em Berlim apenas um ano, com um sorriso ambíguo nos lábios,
a um passo da Polônia, taciturno e com voz pálida”. Em Berlim não demorou muito
para pegar uma gripe, uma gripe de nada que quase não o deixou morto. Deram-lhe
o Prêmio Internacional de Literatura e com ele finalmente veio uma onda
calorosa de leitores e também um discreto bem-estar econômico que comentava
cinicamente: “Um apartamento pequeno, um carrinho de bebê, uma mulher, uma vida
familiar. Então, aqui estou eu, um escritor, e quando tiver mais de sessenta
anos, posso dizer o que qualquer aluno depois de obter um diploma de medicina
ou de engenharia: sou alguém, fiz a mim mesmo.” Parecia levar em consideração
uma frase de Robert Walser: “Para que um escritor se torne
alguém não se
faz mais que rebaixá-lo à condição de engraxate”.
De fato, ele já era alguém, não
como na Argentina, onde até as vacas — com as honrosas exceções de seus amigos
Virgilio Piñera, Juan Carlos Gómez (El Goma), Mariano Betelú, Alejandro
Russovich e alguns outros — desprezavam sua literatura. Na Europa ela era
valorizada, mas talvez o reconhecimento tenha chegado tarde demais, porque a
Europa — agora ela podia ver — era uma janela de hotel, ao lado da Ópera, sem
ar. Nabokov já havia advertido isso na época em que repetia vez ou outra em
seus romances uma estrutura de enredo segundo a qual o protagonista que viaja
permite que a destruição o domine e que isso aciona o mecanismo que
desencadeará o fim da história E é que a nostalgia de um lugar só enriquece
enquanto se conserva como nostalgia, mas a sua recuperação significa a morte.
Apesar do reconhecimento, agora
tudo parecia indicar que a
Mão (assim chamava seu destino, tão gentil
com ele quando o depositou na Argentina no início da Segunda Guerra Mundial e
tão esquivo depois) havia deixado de ser propícia para ele. A mesma Mão que o
colocara no país das vacas que não apreciavam a literatura, agora conseguira
que não pudesse saborear as alegrias senão através de um vidro feito de uma
falta, de uma suprema falta de ar: “A Mão me impôs a ascese, e eu a aceitei sem
questionar. Sempre estive convencido, desde o início, de que a literatura não
poderia me proporcionar nenhuma vantagem material. Na verdade, nunca tinha
contado com isso. Resolvi trabalhar como antes. E me dediquei a
Cosmos,
que terminei em Vence.”
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