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Silvina Ocampo. Foto: Aldo Sessa |
Escrevia para morrer um pouco
menos. Tal como as pedrinhas que uma criança traz para mostrar (e quando abre a
mão são um punhado de pó), é assim que uma das melhores contistas do século XX
via a sua obra. A posição de Silvina Ocampo, que certa vez declarou que por ser
a mais nova das irmãs se sentia “o etc. da família”, vai mudando furtivamente,
como se tivesse uma espécie de onipresente exército de reserva póstumo para
preservar o mistério, ainda a 120 anos de seu nascimento cumpridos em 2023 e três
décadas após sua morte. Se ela foi “a grande encoberta” pela irmã mais velha,
Victoria Ocampo, pelo marido, Adolfo Bioy Casares, e pelo amigo, Jorge Luis
Borges, a perplexidade e o espanto que suas histórias geram ao passar do
familiar ao desconhecido, mais que reafirmar aquele antigo valor de ter sido “o
segredo mais bem guardado das letras argentinas” parece postular uma narrativa
vigorosa e discreta em sua forma de construir mundos marcados por paradoxos,
sutilezas, ironias e lirismo. Mas também o seu fascínio pelas plantas e pelos
animais permite-lhe repensá-la numa chave botânica e animalista.
Blanchette, a cabrita
“Às vezes um ser humano que se
parece com um animal nos parece mais humano que os outros; da mesma forma, um
animal que se parece com um ser humano nos parece mais animal que os outros”,
escreveu em “Inscrições na areia”, textos compostos entre 1950 e 1960. Em
“Monólogo de um tigre” o som de sua inteligência é como uma pequena maravilha:
"Nós, animais, nunca concordamos sobre a verdadeira natureza do homem:
alguns tolos (talvez, em gratidão aos homens que nos divinizaram em outros
tempos) pensam que o homem é um deus, mas eu e alguns dos meus companheiros e
inimigos pensam que é um mero comestível”.
A sua capacidade de condensação e
observação revela uma profunda empatia com os seres que a rodeiam: “Os grilos
com os seus cantos desenham estrelas dentro da água”. Mais um, entre tantos que
podem ser rastreados: “O céu azul, uma árvore e o som do ancinho nas pedras me
dão vontade de nascer de novo para poder ouvi-los de uma forma diferente, e
mesmo assim sempre ouvi o céu, a árvore e o ancinho nas pedras como lembrança
de antes da minha vida”. Num precioso texto intitulado “Blanchette” ela evoca
uma cabrita branca que lhe foi dada —o nome dado de Blanchette é o da
personagem de um conto de Alphonse Daudet — quando ela tinha cinco anos.
“Ensinei-a a subir as escadas da casa, que eram de mármore íngreme, a comer o
pão do meu bolso e a me seguir como um cachorro.”
As efemérides nos permitem
regressar aos livros de uma escritora único. Na sua terra natal, foi editada a “Biblioteca
Silvina Ocampo”, aos cuidados de Ernesto Montequin, uma boa notícia para os
leitores que poderão redescobrir várias obras importantes de Ocampo como
Autobiografia
de Irene,
A fúria e
Os dias da noite, entre outros títulos ,
com novas capas nas quais há imagens de Silvina, algumas do arquivo dos
herdeiros da autora, e outras tiradas por grandes fotógrafos argentinos como
Aldo Sessa, Pepe Fernández, Daniel Merle e Antonio Capria. O escritor italiano
Italo Calvino (1923-1985) acertadamente alerta que “a força da sutil ferocidade
de Silvina Ocampo reside no fato de ela permanecer sempre tranquila,
impassível, como as crianças, o que não exclui uma atitude límpida e pequeno
sorriso.”
A infância e os mendigos
A caçula de seis irmãs de uma das
famílias mais tradicionais da Argentina nasceu em 28 de julho de 1903 na casa familiar
de Viamonte, 550. A infância de Silvina — que foi educada por governantas inglesas
e francesas, com as quais aprendeu a falar e escrever nessas línguas, e não em
espanhol — ocorreu entre a mansão da família em Buenos Aires, a mansão Villa
Ocampo em San Isidro, os campos em Pergamino e a fazenda Villa Allende na
província de Córdoba.
Uma vez por ano a família viajava
para Paris, acompanhada por criados, e levava a vaca a bordo do navio para
beber leite fresco. “Sempre me pareceu que os ricos brincam de ser pobres e que
os pobres brincam de ser ricos. Penso que é porque todos os estados se tornam
prisões para o homem. Procurando ser livre, o rico brinca de ser pobre; buscando
ser livre, o pobre brinca de ser rico. Com minha mãe, na minha infância,
brincávamos de ser pobres: varríamos as folhas do jardim, lavávamos,
cozinhávamos, mamãe colocava um roupão de tecido, eu usava um avental de linho
branco, regávamos até molhar os pés e depois, terminado a brincadeira, íamos
para o quarto de prisioneiro: para o quarto do papai, que tristemente nos via
chegar, porque nunca brincava de ser pobre e não nos deixava fazer isso sem algum
castigo: ‘vão já se arrumar porque as visitas estão chegando‘, ele gritava
conosco”.
A infância como húmus de sua
narrativa está em vários dos contos que compõem
Viagem esquecida (1937).
Silvina encontrava nas dependências de serviço de sua casa, nas passadeiras e
nas criadas que relutantemente a deixavam brincar de criada ou no menino descalço
e a cavalo do conto “O cavalo morto” — que fazia três meninas sem nome, duas
delas irmãs, correrem até a cerca de arame para satisfazer o desejo de vê-lo —
um conjunto de experiências incipientes que forjaram sua imaginação e
sensibilidade.
Ela mesma confirma isso quando
confessou que se sentia mais atraída por quem sofre do que por quem é feliz; pelos
pobres do que pelos ricos (sua família lhe parecia chata); pelos que perdem do
que pelos que ganham. Como observa Mariana Enriquez em
A irmã menor. Um retrato
de Silvina Ocampo, não há época que a fascine mais do que a infância; é por
isso que ela tem tantas histórias protagonizadas por crianças assassinas,
crianças que não querem crescer, crianças suicidas, crianças que nascem velhas.
Silvina estava convencida de que as lembranças mais importantes e talvez as
mais fáceis de contar são as da infância. “A infância passa a ser nossa mãe”,
dizia no final da década de 1960. Ao austríaco Rainer Maria Rilke é creditada
uma frase que bem poderia ser repetida pela “irmã menor”, mas com um acréscimo
fundamental: “A infância é a verdadeira pátria de um homem”.
A inevitável originalidade de
Invenções
de memória, uma autobiografia em verso livre, única na literatura
argentina, que se foi uma das maiores surpresas daqueles que se depararam com a
tarefa de classificar os manuscritos inéditos deixados pela escritora, quando
de sua morte aos 90 anos, no dia 14 de dezembro de 1993. Nessas páginas, que
ela mesma definiu como “uma história pré-natal” cuja protagonista é uma menina,
ela destaca a alegria que sentiu quando os mendigos chegavam e com a
cumplicidade de uma empregada servia-lhes xícaras de café com leite e pão e
perguntava: “Você gosta assim ou com mais leite, senhor? Outro cubo de açúcar?”
Também em diversas entrevistas
confirmava a importância da infância, seu período vital. “Poderei esquecer
muitas experiências da vida, mas não as da infância. Sempre me lembro daquele
versículo que diz: Ó, infância! Ó, amiga! E o que importa nele é o que ele não
diz. Nossa infância é certamente nossa amiga, mas não fomos amigos de nossa
infância porque então não existíamos como somos agora”.
Se toda a vida é um processo de epifanias
pelas coisas esperadas ou perdidas, pode-se dizer que Silvina passou de
desenhar os rostos que via — a mãe queria que ela fosse uma grande pintora e por
isso estudou desenho e pintura em Paris com Giorgio De Chirico e Fernand Léger —
para escrever apelando a uma observação que combinava curiosidade e silêncio,
sensibilidade e inteligência com uma impertinência criativa indomável que se
materializou especialmente no conto, mas que também deslumbra na poesia, no
romance e no teatro, em livros como os já referido
Autobiografia de Irene,
A fúria,
Os dias da noite, mas também em
Os traidores
— escrito em colaboração com J.R. Wilcock —,
As convidadas,
O amargo
pelo doce,
Cornélia em frente ao espelho e
A promessa um “romance
fantasmagórico” que permaneceu inédito durante a vida de sua autora e foi
publicado pela primeira vez em 2011.
A festa íntima
“Sou analfabeta. Como eu poderia
publicar esse texto! Qual editora o receberia! Acho que seria impossível, a
menos que aconteça um milagre. Acredito em milagres”, diz a narradora de
A
Promessa, uma mulher que naufraga no oceano por “culpa” de um acidente; ela
escorregou do barco em que estava quando se inclinou sobre a amurada para pegar
um broche que havia deixado cair do cachecol. A narradora do romance pretende
fazer “um dicionário de memórias”, escrever um livro, caso se salve, e
terminá-lo até o próximo aniversário.
Não é um fato menor, pois costuma se
classificar a escritora como um dos expoentes do gênero fantástico no Rio da
Prata, que junto com Adolfo Bioy Casares e Borges compilou a
Antologia da
literatura fantástica (1940) e aquela com quem Bioy escreveu o romance
policial
Os que amam odeiam (1946). Embora hoje seja reconhecida como
uma das mais originais escritoras de letras latino-americanas, e seus livros
tenham sido traduzidos para inglês, francês, italiano, português, dinamarquês,
chinês e árabe, o reconhecimento mais significativo que recebeu foi o Prêmio
Municipal de Literatura em 1954.
“Uma das mulheres mais ricas e
extravagantes da Argentina, uma das escritoras mais talentosas e diferentes da
literatura espanhola: todos esses títulos não a explicam, não a definem, não
servem para compreender o seu mistério. Nunca trabalhou por dinheiro — não
precisava dele —, não participou em nenhum tipo de atividade política (nem
mesmo política cultural), publicou o seu último livro quatro anos antes de
morrer (e escreveu mesmo quando já tinha os primeiros sintomas de Alzheimer,
aos quase 90 anos) e a sua vida social, sempre reduzida, foi-se tornando nula
com o passar dos anos, algo quase inédito numa mulher da sua classe. O dinheiro
deu-lhe liberdade, mas nunca pareceu demasiado consciente dos seus privilégios
que, pode-se dizer, quase não os utilizou”, sugere Enriquez em
A irmã menor.
O lugar-comum de afirmar que ficou
à sombra de Victoria, Bioy Casares e Borges foge à complexidade não só da obra,
mas também da posição de Silvina, que como escritora parece ter escolhido esse
“segundo plano” na literatura argentina para ser a artífice de um mistério que
faz cada nova leitura ou releitura uma festa íntima, tão intensa quanto uma
música cativante do passado que sempre nos conecta com o futuro.
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