Por Enrique Héctor González
Era um homem a um nariz pregado,
Era um nariz superlativo,
Era um nariz túnica, de escriba,
Era um peixe espada muito barbado.
— Francisco de Quevedo, A um nariz¹
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Ilustração: Julia Soboleva |
Reinos deste e de outros mundos foram perdidos por um nariz, esses vãos,
essa pirâmide, esse obsequioso prisma triangular que emerge supurado do mar do
rosto como uma vela perpétua. Asa alerta, vivamente visível em certos rostos
regidos pela simetria, esmagada ignomínia dos boxeadores, pequeno beliscão ou
salto sutil em belas mulheres de todos os estilos, o nariz é também um objeto
literário que tem sido motivo tanto de perversa ridicularização quanto de
sinuosa insinuação, já que o humor e o amor tendem a ser forças de substância
idêntica e conjunta na prosa literária. A sua ascendência, neste sentido, é
quilométrica e qualquer recontagem apressada apenas passará por cima de algumas
referências em poemas e romances aleatórios que talvez sirvam para gerar, no
melhor dos casos, outras associações onde esta “pirâmide do Egipto”, como a
proeminência foi chamada por Francisco de Quevedo em famoso soneto, mete o
nariz para dizer quem vive.
Apêndice atraente para misturas de bruxas ávidas por flertes eróticos,
já no primeiro livro desse esplêndido romance da decadência latina que é O asno
de ouro de Apuleio o órgão é mencionado como o preferido das feiticeiras em
suas cerimônias demoníacas, pelo que é necessário deixar bem vigiado o recém-defunto
nos cemitérios se quiser evitar que ele amanheça sem nariz para assim passar a
requerê-lo a algum morto mais próximo.
A saborosa e divertida obscenidade das antigas fábulas milésias gregas agregou
a alguns autores com veia licenciosa, como o próprio Apuleio e posteriormente
Boccaccio, a cota de lubricidade silenciosa que erotiza sua prosa e a reveste
de um inegável perfil lúdico, como ocorre na história da jarra, que aparece em
ambos os autores e onde uma mulher ensina ao marido como esfregar um enorme
barril que estão prestes a vender enquanto o amante, atrás dela mas invisível
para o marido ocupado, entrega-se à sua lascívia ao utilizar as mesmas
diretrizes. Mas aqui é uma tarefa própria desse outro acessório localizado mais
ou menos no mesmo meridiano do corpo dos homens, embora dependendo das proporções,
uns sessenta ou setenta centímetros mais abaixo.
Outra alusão frequente ao nariz excitado que alguns possuem é parte do
Irmão João, personagem sarcástico e belicoso da segunda parte do Gargântua
de Rabelais, que, orgulhoso de ter um nariz grande (ou glande?), agradece aos
seios macios de sua babá por seu tamanho, o travesseiro propício para que o
prepúcio de seu aparato ganhasse dimensões espetaculares, pois “os seios duros
das amas tornam as crianças chatas”. A ocorrência também continua de maneira
semelhante nesse grande compêndio de literatura humorística que compõe Tristram
Shandy de Laurence Sterne, onde o protagonista, devido ao uso deficiente de
fórceps exibido pelo Dr. Slop, médico de sua desonra, nasceu quase sem nariz
ou, em vez disso, com ele enterrado no rosto. Sabe-se que na família Shandy foi
longa a tradição de apêndices afetados de diversas formas, e Tristram não
poderia ser exceção já que o seu, continuando com a obscena analogia fálica, o foi
duplamente quando, por outro descuido, agora representado pela guilhotinesca
janela de seu quarto — e é de se imaginar que suas molduras, em algumas casas
inglesas do século XVIII, deviam ser extremamente pesadas — cai diretamente
sobre seu pênis e praticamente emascula o menino.
Na mesma atmosfera humorística e libidinosa dos contos de Boccaccio, o
volume IV do romance de Sterne começa com mais um de suas interpoladas
histórias cervantinas, a de Slawkenbergius, cujo órgão facial, de tamanho
francamente rabelaisiano, provoca todo tipo de tentações entre as damas de
Estrasburgo. Com efeito, quando a mulher do estalajadeiro tenta acariciá-lo, na
hospedaria onde fica enquanto vai em busca de uma senhora que fugiu de seu lado
— atração e repulsa são reações intercambiáveis e Júlia deve ter escapado sem
dúvida de um aguilhão tão temível quanto o da fama que mantinha Protesilau
entre os gregos —, Slawkenbergius se opõe confessando: “Já paguei uma promessa
a São Nicolau no dia de hoje”, comportamento devoto com o qual denota que a
justiça foi feita por sua própria mão.
Uma obra que não nega sua ascendência shandyana é, sem dúvida, o romance
oitocentista Memórias póstumas de Brás Cubas, do romancista brasileiro
Machado de Assis. A intenção inicial do protagonista é recapitular sua vida,
como o Tristram de Sterne, mas não desde a fase anterior ao seu dilatado
nascimento, mas totalmente desde seu túmulo: na verdade, a história é dedicada
por Brás “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Pois bem,
recorda Cubas em algum capítulo central de seu reconto do Cândido de
Voltaire — pode-se enfatizar que esta obra é mais uma estação vital entre a
prosa inegavelmente humorística da literatura mundial? — ao perceber a
importância de olhar para o próprio nariz, ato que equilibra — diz — com seu
poder de concentração, a força do
amor E aí mesmo o personagem machadiano recupera a curiosa opinião de Pangloss,
professor de Cândido, segundo a qual o nariz foi criado para ficar bem ali, no
meio do rosto, com o óbvio e único objetivo de poder segurar os óculos, o pincenês
que nos remetem à referência inicial: o poeta espanhol e a sua ode ao nariz
“superlativo” do homem a ele colado.
Num balanço incessante como o de qualquer movimento pendular, a presença
da cartilagem nasal, apelidada de napias quando atinge certas dimensões
honrosas, é copiosa e versátil na história literária, onde o órgão do olfato
autoriza felizes ou fermentadas alusões ao apêndice sexual como bem como ao fato
de se defrontar com aqueles que, por mero desejo lúdico ou lúbrico, conseguiram
fazer dele uma demonstração clara de que, neste e noutros mundos, é sempre
saudável que os deixem cheirar.
Notas da tradução
1 A tradução aqui apresentada é de Wilson A. Ribeiro Jr. É possível ler
o poema na íntegra
aqui.
* Este texto é a tradução livre para “Hacia una pequeña
historia (literaria) de la nariz”, publicado aqui, na revista Nexos.
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