O escoteiro que escrevia

Por Daniel Herrera

Jorge Ibargüengoitia. Foto: Joy Laville.


 
Em 1958, o filho de Guanajuato comprou um livro de receitas e despesas Sistema Roca para anotar sua vida econômica. Durante todo o ano de 1959, ele escreveu apenas duas palavras: “Sem renda”. Sua estreia como escritor foi, para dizer o mínimo, complicada. Aquele ano de pobreza não foi o único que viveu assim. Como pôde Jorge Ibargüengoitia, renegado pelos colegas e até pelo próprio professor, Rodolfo Usigli, acabar vivendo confortavelmente em Paris e mudando-se de uma cidade para outra para se dedicar exclusivamente à escrita?
 
Por mais estranho que possa parecer hoje em dia, ele só o fez através da sua obra literária. Não precisou de nenhum tipo de ajuda extraliterária para conseguir o êxito. Claro, ele é um daqueles raros casos do século XX: um escritor que estudou para escrever. Fez bacharelado e mestrado. Foi professor, escreveu resenhas, crônicas e artigos, ganhou bolsas e prêmios e fez todo o possível para viver da criação. Vinha de uma família oligárquica em desgraça e não teve ajuda financeira ou conexões políticas para conseguir o que queria. A maioria de seus amigos não estava envolvida no mundo literário. Nada mais complicado para um autor tímido e com pouca vida social. É um exemplo claro de que foi o seu trabalho e nada mais que o levou onde queria chegar.
 
Em 1962, ele já tinha mais de trinta anos e ainda sobrevivia como podia. Nessa época, Ibargüengoitia era um fracasso. Abandonou a escola de engenharia e se matriculou na Faculdade de Filosofia e Letras. Com o diploma em mãos, havia dado diversas aulas em diversas universidades do México e dos Estados Unidos. Vendeu o que restava de sua herança, os restos de uma fazenda em Guanajuato, e comprou um terreno em Coyoacán para construir sua casa. Andava muito para economizar alguma coisa. Ainda morava em um apartamento com a mãe e a tia, pois havia ficado sem dinheiro na construção da casa. Nessa idade, seu pai já tinha uma vida feita. O seu avô construiu um império agrícola e lutou contra os franceses, embora na realidade essa última parte tenha sido sempre uma mentira.
 
Jorge já trabalhava na Revista da Universidade do México. Não ganhava muito escrevendo críticas de teatro e atraía a animosidade do mundo teatral nacional. Certamente com muita preocupação, sua mãe e sua tia, as duas mulheres que dependiam dele, viram que Jorgito iria morrer de fome e talvez elas também. As perspectivas não eram animadoras. Não havia como, nessa época, quando a pobreza o atormentava, terem previsto um trampolim que o levaria a uma vida pacífica de trabalho literário pela manhã e passeios tranquilos à tarde pelas ruas de Paris, junto com a artista plástica Joy Laville. Para explicar o caminho de Guanajuato a Paris, devo voltar ao tempo em que nosso autor era um jovem de vinte e poucos anos e não sabia o que fazer da vida.
 
Parece-me complicado entender como um autor pôde ser escoteiro na juventude. É, superficialmente e para dizer o mínimo, contraditório. Não prestei muita atenção quando, anos atrás, soube que Ibargüengoitia foi um integrante entusiasta daquela estrutura juvenil que defende valores como honestidade, boa cidadania — seja lá o que isso signifique — e habilidades ao ar livre. Com o tempo me perguntei como alguém que estava nessa conjuntura, que sempre associei à direita mais reacionária, conseguiu escrever as páginas mais lúcidas da literatura mexicana.
 
À medida que lia mais sobre sua vida e obra, comecei a entender que ele é um escritor com uma moral muito clara. Não a de um autor puritano e católico, mas o de um escoteiro que consegue sobreviver na floresta enquanto reflete à distância sobre a humanidade, especialmente sobre a idiossincrasia mexicana. Não tinha dado muita importância a este fenômeno que é possível distinguir do pano de fundo da obra de Ibargüengoitia, mas lendo Alejandro Ramírez Lámbarry, talvez o maior especialista que existe atualmente sobre o escritor, descobri que Jorge teve, em sua vida pessoal, o fardo católico que sempre o obrigou a rever todas as suas relações interpessoais. Apesar de em entrevistas ter negado esta visão religiosa, segundo o que Lámbarry descobriu nos seus cadernos pessoais, os Exercícios Espirituais dos Jesuítas pesavam na consciência do autor. Com esta informação pode-se fechar um círculo que ajudaria a explicar a sua obra: procede vem da província, de Bajío. Sua família pertencia à oligarquia pecuarista de Guanajuato. Ele foi criado como católico e, por decisão própria, quis ingressar no grupo dos escoteiros.
 
Então, como ele passou de um escritor pobre a um escritor que vivia exclusivamente de suas obras? Lámbarry explica que foi um dos poucos criadores que realizaram o sonho dos modernistas: o nascimento do escritor profissional, ou seja, aquele que vive apenas da escrita. Como autor, ele tem uma vantagem sobre outros prosadores, mesmo aqueles que ainda não li — pelo menos não explicitamente —, em nenhum dos estudos de sua obra que li.
 
Não é que não seja abordado de forma colateral; éÉ apontado por Vicente Leñero em Os passos de Jorge Ibargüengoitia,¹ sua biografia sobre a obra teatral do filho de Guanajuato, e também por Lámbarry. Mas quero enfatizar aqui a vantagem literária que o mesmo autor sabia que tinha quando decidiu entrar na narrativa, depois de passar dez anos escrevendo sobre e para o teatro.
 
Em 1963, já trabalhava tenazmente para alcançar o sucesso como dramaturgo e quase sempre recebia entusiasmo nenhum. Seu professor Usigli já o desprezava publicamente e uma de suas melhores obras, O atentado, ganhou o Prêmio Casa de las Américas, tão importante e reconhecido na época, embora ninguém se tenha dado ao trabalho de mais tarde encená-la. Então ele deu um passo em direção da narrativa. O que o teatro o perdeu, sem se dar conta disso, mas ganhou romance. O próprio autor explicou assim: “O atentado me deixou dois benefícios: fechou para mim as portas do teatro e abriu as do romance”.
 
No ano seguinte, com Os relâmpagos de agosto recebeu outra vez o Prêmio Casa de las Américas, agora como romancista; na ocasião, Ibargüengoitia fez sua opção também pelo jornalismo. Ainda levaria mais alguns anos, algo em torno de vinte, para alcançar o tão esperado sucesso. E nesse tempo teve que aceitar empregos fora da literatura. Antes já procurara ser agricultor e abandonou a ideia pela arte, mas agora, decidido, queria escrever em tempo integral e não desistiu do seu empenho até conseguir tal feito. Para isso continuou lutando com aulas, com bolsas aqui e ali até que, finalmente, em 1978, Carmen Balcells concordou em ser sua agente literária. Conseguira assim. Tantos anos escrevendo e tantas horas na frente da máquina o recompensaram. A ironia é quão pouco ele viveu essa vida. Em novembro de 1983, o avião em que viajava para um encontro literário em Bogotá caiu a poucos quilômetros de Madrid. É uma ironia que talvez ele próprio tivesse apreciado.
 
A questão, então, é como conseguiu, com o seu primeiro romance, uma voz muito particular, que continuaria a desenvolver-se nas décadas seguintes, mas que já tinha uma característica muito evidente: a ironia, escondida atrás de um certo humor. Se Ibargüengoitia não gostava de alguma coisa era de ser classificado como humorista. Afirmou em 1982, entrevistado por René Delgado: “O meu interesse nunca foi fazer rir... Não creio que o riso seja saudável ou interessante ou que cumpra alguma função literária. O que me interessa é apresentar uma visão da realidade tal como a vejo”.
 
Aparentemente o suposto humor tirava a seriedade e o peso da sua obra pelo menos no seu próprio momento histórico, como se fosse fácil conseguir aquele sorriso para zombar da desgraça nacional que acaba sendo pessoal e, ao mesmo tempo, garantir que o leitor não fique deprimido. Além disso, fazê-lo através da criação de estruturas literárias complexas, utilizando uma linguagem coloquial. Não vejo Ibargüengoitia apenas como um humorista: penso que o lance dele era a ironia, tão particular quanto sua altura ou suas olheiras. Ela vem de como ele via o mundo e de um raciocínio crítico constante sobre o que observava. Essa ironia se mistura com diversos gêneros literários, geralmente considerados menores por se dirigirem ao público em geral. Assim, ao entrar num deles não conseguia evitar aquele seu olhar, tão único.
 
Ele aplicou isso ao escrever o romance de memórias que acabou sendo Os relâmpagos, uma paródia lúcida dos generais de pacotilha deixados vivos após o último momento da Revolução Mexicana. Depois fez isso com o romance cor-de-rosa. Foi daí que surgiu Estas ruínas em que me vês, recriação de como uma cidade provinciana se torna o cenário principal de um caso de amor impossível. Fez isso também com o romance de denúncia social latino-americano: escreveu Mate o leão, uma obra hilária onde os revolucionários são tão estúpidos e superficiais quanto os ditadores.
 
Logo fez a transição para o romance policial. Dois crimes é uma história sem detetive, que acaba enredando seus personagens numa série de traições onde ninguém sabe para quem trabalham.² E para o romance jornalístico. As mortas é um exemplo macabro de como o mal também é exercido pelos ineptos.
 
E, finalmente, fez isso com o romance histórico. Os passos de López, o seu último livro, é uma obra verossímil que não adere à verdade histórica, mas resulta mais crível do que aquilo com que fomos alimentados durante anos na escola. Nunca a história nacional se tornou tão atraente.
 
De novo, como conseguiu que todos os seus romances tivessem esse olhar e essa linguagem bem construída ao mesmo tempo? Por que o seu primeiro romance não foi algo menor, que precedeu o grande nome que mais tarde seria? A resposta está em sua época como escritor de teatro e de roteiros para o cinema. Foi quando experimentou e trabalhou desde a inexperiência de um jovem que esperava realizar a grande obra do teatro nacional. Esses anos lhe deram a formação necessária. Assim, quando chegou à narrativa, tudo já estava no seu devido lugar.
 
Não sei por que, mas quando se fala de Ibargüengoitia não se presta muita atenção em sua época como dramaturgo, mas mais em sua vida como ficcionista e jornalista. Parece-me uma visão precipitada. Suas peças possuem uma qualidade que não se perde ante o seu trabalho em prosa, mas acho que ele atingiu níveis ainda mais elevados quando decidiu abandonar a dramaturgia.
 
Por fim, gostaria de focar no que ainda me surpreende: compreender um autor que se dedicou a desmembrar a ridícula classe média mexicana e o escoteiro de frágil moral católica. Depois de ler os estudiosos de sua obra, penso que por trás do humorista, de uma figura irônica igual a ele, não estamos ante um comediante, tampouco ante um autor de sátira.
 
O olhar de Ibargüengoitia não é cheio de malícia e amargura, seu negócio é com a fina comédia que ataca seu objeto de estudo sem destruí-lo.
 
Neste olhar são expostos os defeitos mais repugnantes da classe média mexicana, desde o general da Revolução que se enriquece com seus cargos até o primo explorado que vem visitar a cidade de sua infância. Cada um de seus personagens revela o que o identifica como mexicano: mesquinhez, ignorância, covardia, corrupção, malícia, oportunismo.
 
Mas Ibargüengoitia não quer que desapareçam os defeitos da classe média mexicana. De qualquer forma, ele a resgata da lama e a torna protagonista de seus livros. Ele não conserta, não exalta, deixa assim, tal como encontrou; depois nos mostra com um olhar irônico, com aquele sorriso de canto de boca.
 
Tudo ficou claro para mim. Ibargüengoitia continuou sendo escoteiro. Aparentemente ele não foi, em sua juventude, o mais entusiasta dos valores do grupo, mas estava nele. E não abandonou quando se tornou escritor. Afinal, um humorista é um moralista que sabe rir. Talvez por isso ele nos pareça tão próximo, tão fácil de compreender, tão poderoso quarenta anos depois da sua morte.
 
Ou talvez seja porque aquele México que ele retratou, aquele que está no passado mas que parece fortemente atual quando o lemos, não seja possível deixá-lo para trás. Tal como quando abrimos Dois Crimes e as primeiras linhas dizem: “A história que vou contar começa numa noite em que a polícia violou a Constituição”.
 
Notas da tradução
1 A tradução desta de outras obras, incluindo as de Jorge Ibargüengoitia, até o presente quase inédito no Brasil, são livres.
 
2 Existe uma tradução no Brasil deste romance; feita por Bella Jozef e publicada em 1987 pela editora Rocco.  


* Este texto é a tradução livre para “El Boy Scout que escrevia”, publicado em El Cultural.

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