Por Rosa Martínez González
|
Lygia Clark. O eu e o tu, 1967. MoMA. |
Maurice Blanchot é, ainda hoje, um pensador inclassificável:
escritor contra o ato de escrever, pensador contra a instituição da Filosofia,
suas propostas tanto no âmbito da teoria literária quanto no da especulação
filosófica parecem resistir, dada sua aparente obscuridade, à compreensão da
cultura normativa. Ao longo destas linhas, tentaremos fornecer algumas
sugestões acerca de duas noções centrais que perpassam toda a obra de M.
Blanchot: os conceitos de refus e de révolution.
A nova tarefa do escritor: escutar a refus, fazer
a révolution
A primeira coisa que deve ser destacada é que, se ambas as
noções — recusa e revolução — são centrais no pensamento de M. Blanchot, não é
tanto porque caracterizam sua posição política — também — porém, sobretudo,
porque definem o que, segundo ele, determina a exigência ético-política de toda
atividade literária crítica: a literatura como o espaço situado no intervalo
da revolução, aquele em que a Lei se cala e fala a refus (a recusa) à ordem
estabelecida, o murmúrio impessoal do Fora.¹
A exigência política, exigência ligada à função do escritor²
como intelectual — especificamente, mais no sentido foucaultiano que clássico —
implica que ele não fale mais em nome de ninguém nem por ninguém, mas se limita
a ser um mero porta-voz que só irrompe na cena pública, quebrando seu
silêncio, quando a urgência dos acontecimentos o estimula a assumir a
responsabilidade pelo outro, se mostrando publicamente com o modelo ainda
fresco na memória — como adverte Blanchot em Los intelectuales en cuestión —
de resistência ao fascismo (2003: 87). A exigência política é também, pelo
mesmo motivo, uma exigência ética com o diferente, com Il (com ele/o
outro) e é isso que leva Blanchot a uma busca incessante por uma comunidade, de
certa forma, impossível, composta por todos aqueles indivíduos ou experiências
que não têm comunidade, cuja experiência, razão ou discurso teriam sido
exilados de antemão às margens, à exterioridade de uma cultura na qual,
paradoxalmente, não podem participar, mas que, de um modo horrendo, se
encontram enclausurados, rasurados, mutilados e silenciados e que, por isso
mesmo, não podem escapar. E nessa procura da palavra proibida, silenciada ou
expulsa ao Fora da obra cultural do seu tempo é onde Blanchot insiste no
alcance dessa comunidade outra situada no horizonte do comunismo.
O Tempo da Revolução. A outra Razão
Em La Raison de Sade, publicado pela primeira vez em
1963, Blanchot especulou sobre o que é necessário para que uma revolução seja
considerada como tal. Concluía então que para ser, uma revolução devia surgir
do poder de recusa (refus) ao organismo social estabelecido e de um
acontecimento em que se estabelecesse um estado “sem lei” ou anarquia. A
revolução representa, portanto, por algum tempo, a possibilidade de uma
comunidade sem lei. É o momento em que os indivíduos, unidos pela refus,
reconquistam sua própria soberania usurpada em algum momento da História de
forma ilegítima. E, neste sentido, não faz diferença que a revolução seja
efêmera, já que o essencial é que a Lei se cale e que, neste instante, todas as
possibilidades que tinham sido silenciadas por ela apareçam, demonstrando,
tornando visíveis à imaginação política, que essas potencialidades, essas
experiências anômalas, problemáticas, demonizadas ou limítrofes, essa
comunidade sem Lei, são possíveis e isso mesmo quando o poder positivo seja
preservado ou reintegrado no futuro devolvendo as novas virtualidades ao
silêncio.
Para Blanchot, o tempo da revolução, como o da escrita, é,
no limite, o da detenção do Tempo, da História e da Lei. A revolução é, assim,
um hiato ou cesura na rede homogênea do Tempo e da História onde tem lugar o
acontecimento. É por isso que, neste intervalo, e não no momento
anterior ou posterior ao seu aparecimento, a revolução, como o evento
impossível em que a Lei, entendida como uma ordem política positiva, se
desmorona, não se realiza nem deve ser interpretada com vistas à outra Lei
vindoura, mas deve ser compreendida como o lapso temporal em que ela (já/ainda) não existe, surgindo novas pontes
para o pensamento, para a comunidade e para a literatura, mesmo que surjam inoperadas,
como aconteceu, segundo Blanchot, em Maio de 68.
De fato, no maio francês, tudo, inclusive a linguagem,
foram, segundo Blanchot, respostas violentas à chamada do poder da refus³.
Uma revolução — disse Blanchot — mais filosófica e social que institucional,
distante de qualquer modelo revolucionário existente e, pelo contrário, mais
exemplar do que real, no sentido da abertura dos limites de nossa imaginação
política em decorrência do dito acontecimento. No Maio de 68, nos dirá Blanchot
(2010: 168), com efeito, como em geral em qualquer revolução, a linguagem
conseguiu romper com o código da língua, deixando de ser de um signo para se
tornar uma súplica impaciente, excessiva, iminente e sempre dirigida ao Fora.
Assim, em “Les trois paroles de Marx”, Blanchot descreve a revolução como algo
que atravessa o tempo e que é vivida como uma exigência que nos
interpela, que nos chama (2007: 95).
A comunidade dos que não têm comunidade
Para Blanchot, a busca dessa comunidade sempre inoperada,
de algum modo inconfessável, e que olha ao Fora, conduz, como um horizonte
insuperável, ao comunismo.
O comunismo de Blanchot se encontra muito próximo ao do
chamado grupo da rue Saint-Benoît, designado assim por ser o local onde
se reunia, desde os anos cinquenta, um grupo de conhecidos intelectuais
franceses, como Marguerite Duras, Dionys Mascolo, Robert Antelme e o próprio
Maurice Blanchot, entre outros (lugar que era domicílio de Duras e Antelme). O
comunismo destes intelectuais franceses, alguns dos quais expulsos do PCF, é
posto em total oposição ao stalinismo, ao zhdanovismo (o realismo socialista
como política cultural) e, em geral, à toda ortodoxia do Partido. A comunidade
(dos que não têm comunidade) e o horizonte do comunismo, que apaga e se apaga
de qualquer comunidade positiva (incluída a do Partido), aparecem, então, a
partir desta época da obra blanchotiana, como a tarefa fundamental do
intelectual: uma exigência infinita, consoante com o conjunto de recusas que
levam ao evento impossível da révolution.
Desse modo, para Blanchot, a nova tarefa do escritor supõe —
diríamos hoje — um exercício de contracultura que não faz verdadeiro sentido
até que provoque, de alguma maneira, uma ruptura com um estado de coisas
vigente. Esta ruptura pode ser parcial ou pode coincidir como uma refus política
massiva da ordem estabelecida que leva a uma revolução, como aconteceu, segundo
Blanchot, no maio francês. E é justamente essa a révolution, uma refus
massiva que atinge todas as camadas e dimensões da existência e na qual a
sociedade acaba por se aliar à sua própria ruptura (2010: 167).
Com tal tarefa ou exigência inicial, é evidente que, para
Blanchot, o escritor não mais trabalha nem interpreta a realidade de seu tempo
de sua torre de marfim, mas sua exigência o conduz a ouvir o chamado à ação
política quando as circunstâncias o interpelam, aberto a uma experiência que já não
é a da Realidade que exclui ou limita.
Para Blanchot, o comunismo representava não apenas um hiato
teórico, enquanto nova exigência ético-política, mas também uma ruptura
decisiva com relação ao estado de coisas de seu tempo (e ainda do nosso): o
mundo liberal-capitalista (2010: 157). Em suma, o comunismo aparece, assim, em
primeiro lugar, como aquele horizonte de que falávamos anteriormente, que é o
de tudo que exclui (e é excluído de) qualquer comunidade positiva; em segundo
lugar, na sua dimensão de superação do horizonte forjado pelo capitalismo
liberal e, em terceiro lugar, como adverte Blanchot em “Le communisme sans
héritage”, como aquilo que repele todo patriotismo na escuta atenta ao apelo do
Fora, que não é nem outro mundo nem um transmundo (2010: 155 e
156).
É por tudo isso, resumidamente, que, para a tese
blanchotiana, a experiência da escrita no sentido crítico exige um sacrifício.
O autor deve desaparecer ante a obra, e esta perante a própria experiência,
dando um salto (crítico) de Je ao Il⁴, um salto ao neutro que,
rompendo com todo realismo, lança o escritor para outra forma de experiência em
que, superada a soberania (a arrogância) do Eu, pode se encarregar, na linha
com a refus, da palavra anônima silenciada, da outra razão marcada como
anormal ou excessiva, do evento impossível que não cabe na História (2008: XIV,
487).
Referências
Blanchot, Maurice.
Los intelectuales en cuestión. Tradução de Manuel Arranz. Madrid:
Tecnos, 2003.
Blanchot, Maurice.
La amistad. Tradução de J.A. Doval Liz. Madrid: Trotta, 2007.
Blanchot, Maurice. La
conversación infinita. Tradução de Isidro Herrera. Madrid: Arena libros, 2008.
Blanchot, Maurice.
Escritos políticos (1958-1993). Tradução de Diego Luis Sanromán. Madrid:
Acuarela, 2010.
Notas da tradução
1 Sobre o conceito de Dehours (Fora ou Exterior),
Blanchot sempre procurou o momento antecedente em relação à literatura, aquilo
que nunca cessa de falar. O espaço literário é encharcado pela exterioridade.
2 Decisão de marcar o gênero sob rasura (sous rature),
riscado, mantendo a grafia de Jacques Derrida (1930-2004), grande amigo de
Blanchot, em conversa com o texto.
3 Para uma compreensão melhor do conceito de refus,
ver “A conversa infinita: a palavra plural”, escrita no contexto do Maio de 1968
francês. Lá, Blanchot multiplica o comunismo para além do comunismo, a favor da
écriture e contra o Livro, fazendo uso dos mais diversos exemplos.
4 A literatura começaria propriamente quando a terceira
pessoa do singular aparece.
* Este texto é a tradução de E. Galeno para “Maurice Blanchot: la escritura del rechazo”, publicado inicialmente aqui em El Rumor de las Multitudes.
Comentários