Por Jorge Ayala Blanco
Em
Loving Highsmith (Suíça-Alemanha,
2022) — multi-revelador
film 2 da roteirista e documentarista
germano-suíça Eva Vitija, primeiro longa documentário, depois de
My Life as
a Film ou
How My Father Tried to Capture Happiness (ambos de 2015) ou
Storm
& Co (2013), com roteiro dela, de Sabine Gisiger e Andrés Veiel — se
evoca e invoca a figura cult da escritora texana de romances policiais com
cenário europeu Patricia Highsmith (1921 -1995) tomando como base suas evasivas
entrevistas e reportagens de TV em contraste com as profusas confissões
pessoais dos cadernos e diários da autora de entre 1941-1955 que foram
publicadas
post mortem e lidas de forma muito seletiva com uma
formidável e sensual voz em
off da estrela inglesa Gwendoline Christie
(da série
Game of Thrones) e as indiscrições saborosas ou ressentidas de
suas agora muito antigas ex-amantes, especialmente Marijane Meaker, também uma
romancista estadunidense de rosto comprido e magro, a bonachona francesa
Monique Buffet e a implacável alemã Tabea Blumenschein.
Tudo isso, para colocar em
evidência que a famosa escritora se chamava na verdade Mary Patricia Pangman;
que foi abandonada pelo pai ao nascer e criada por uma mãe astuta por quem teve
uma distante relação de amor e ódio como uma sentença de prisão perpétua; que
passou uma infância itinerante entre festas de rodeio; que adotou o sobrenome de
um padrasto; que começou a escrever romances, obviamente impublicáveis, ainda
criança; que de repente ficou famosa graças à adaptação feita por Alfred Hitchcock (
Pacto
Sinistro, 1953) de seu primeiro romance
Estranhos em um trem
publicado aos 29 anos; que por muito tempo foi conhecida nos bares gays de Nova
York como
La Loba Blanca por sua voraz promiscuidade; que publicou o romance
lésbico best-seller
O preço do sal em 1954 sob o pseudônimo de Claire
Morgan (mais tarde reaparecido como
Carol), rompendo com todos os clichês
anti-homossexuais da época por culminar em um ultra-provocativo final feliz;
que deve seu sucesso à combinação de seus mórbidos contos criminais sobre
criaturas com comportamento anômalo ou, em última análise, patológico (seus
contos triviais ou seus contos misóginos) e sua saga de cinco romances sobre o
assassino marginal por excelência Ripley, cujos comportamentos taciturnos ou
solitários e escapistas a levaram a se estabelecer em Paris ou em uma mansão
construída por seu capricho em uma remota cidade francesa e em Londres em busca
do efêmero grande amor de sua vida (uma senhora casada apenas mencionada com C. ou rebatizada de Caroline) e finalmente na Suíça até sua morte por câncer de
pulmão; que se submeteu a disciplinas inflexíveis para escrever diariamente e
que reconhecia abertamente apenas fábulas baseadas em suas próprias emoções e
experiências não vividas, mas a partir da literatura genérica e da escrita
simples parecia encarnar por si só o feminismo sem nome de uma imaginação
tempestuosa e perturbadora.
A imaginação disruptiva atinge
seus ápices de sugestão e intensidade expressiva graças a aguda utilização pela
montagem de fragmentos das melhores adaptações cinematográficas de Highsmith
como se fizessem parte da biografia da autora (sugestiva edição compacta de
Rebecca Trasch e Fabian Kaiser), formas transferenciais e movimentos íntimos
externalizados: o que vai do cinema ao cinema e à sensibilidade inefável das
imagens sensoriais, guiadas pela plurinspiradora e livre prosa narrativa transferindo,
moldando e abrindo-se a significados indizíveis; é assim com as qualidades de Estranhos
em um trem, que não apenas se referem à fama mundial instantânea oferecida
por Hitchcock, mas também à centelha de genialidade/ engenhosidade criativa
(aquela troca perturbadora de crimes para torná-los insuspeitáveis) e à
interioridade atormentada e desequilibrada da romancista, às rondas dissimuladas
e ao arrebatador assassino velejador de Matt Damon em O talentoso Sr. Ripley
(Minghella, 1999) — cada qual serve para destacar o tortuoso impostor por
excelência como o alter ego de Patricia, quem, em um momento-chave
declarativo, absolve seu personagem emblemático porque “ultimamente ele só mata
quando acha que está certo”, como demonstra a oculta tradução daquele
anti-herói no divagante e desintegrado Ripley/ Dennis Hopper de sua última saída
narrativa possível, o fim peremptório do ciclo (efetivamente inacabado) em O
amigo americano (Wenders, 1977) a partir de O jogo de Ripley, em
contraste com o insistente imaginário sensualista de Carol (Haynes, 2015)
que vai e vem ao longo do filme da forma mais sublime-subliminar possível, já
que sua função é exaltar aquele lesbianismo imprudente da explaygirl
escondida sob um pseudônimo por décadas, para mais tarde ser assumido
triunfantemente.
A imaginação disruptiva propõe o
termo “biografia amorosa” para caracterizar o gênero ao qual pertence o
documentário de testemunhos de amor (ou quase) e feito com amor, sobre essa
mulher “fácil de amar” logo omni rejeitador que a certa altura da sua
existência aproveitou o seu carisma e a sua compensatória celebridade precoce
para flertar com muitas mulheres, antes de passar do picaresco dissimulado à
depressão irremediável e ao apaixonar-se impossível; uma cassete de amor onde
tudo o que conota parece fetiche, absorve, inclui e ostenta, sejam os depoimentos
questionadores ou as confessados de Patricia ou os depoimentos de seus amigos
íntimos ou os leitmotiv explícitos e definitivos do perfil, essas
traquinagens em um desvio pulverizado para colocar o heteropatriarcado ao
ridículo pela via de seu próprio brutal grotesco espetacular ou aquela ronda de
gatos que é equivalente ao jogo furtivo de Highsmith enroscada como um caracol
em sua literatura obsessiva e em sua vida isolada de ostra.
E a imaginação disruptiva acaba
por se afirmar num final triste como um sucedâneo vital e crônica de erros
lúcidos e irreparáveis.
* Este texto e a tradução livre de “Eva Vitija y la imaginación
disruptiva”, publicado aqui, em Confabulario.
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