Por Pedro Fernandes
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Oswald de Andrade. Foto: Jorge de Castro. Acervo FBN. |
Parece que, quando a certa ideia
de gênio foi desconstruída, com ela se modificou a noção pública dos textos. O
interesse pela oficina dos escritores não é novidade do nosso tempo, tanto que
já se expandiu, fez escola, estabeleceu-se com um ramo dos estudos literários. Nesse
apogeu, os materiais que antes apenas serviam à lixeira ou aos investigadores
de determinada obra são descobertos pelo mercado editorial como um novo filão. Logo,
à obra incompleta, seguiu-se uma variedade de outros interesses criadores de
uma biblioteca agora interminável feita de correspondências, diários, cadernetas
com anotações, versões originais do texto, versões incompletas e até a
reprodução similar do manuscrito ou datiloscrito.
Esse acesso às dependências
privadas da oficina de um escritor pode ser oferecida por ele próprio; a
composição das memórias, mesmo da versão de sua diarística ou o registro
ensaístico sobre a escrita de determinada obra são recorrentes. Nesses casos,
porém, o escritor escapa do flagrante, este que antes só vinha a público pela
leitura crítica do especialista. O que tem se imposto como outro filão do
mercado editorial é a invasão do privado; os editores, muitas vezes instigados
por herdeiros sanguessugas, se tornaram também
paparazzi — capturam e
lançam o inacabado ao julgamento sem critério, quando muito, com as assinaturas
de um ou outro figurão, pessoa de estima do escritor ou um nome de chamariz
financeiro, como um escritor da vez bom de vendas. (Já parou para reparar
quanta tinta e papel foram desperdiçados quando se cede um prefácio ou posfácio
apenas para um hipnotizador capaz de fazer sua interesseira claque comprar algo?)
O gesto de tornar livro o que tem
se chamado metaverso é motivo de amplo debate decidido sempre entre quem
administra o espólio e quem se interessa por publicar. Se inescrupuloso, a
exposição, nesse
iceberg, do que se oculta da superfície, não deixa de
possuir qualidades positivas. No Brasil, sobretudo. Basta pensarmos na nossa
ineficiente política de preservação, algo que se reflete na pequeníssima variedade
dos nossos acervos, muitos ainda assim precarizados. Publicado, o material
ganha uma sobrevida ao que está guardado — muitas vezes mal preservado —, se democratiza
o acesso àqueles pesquisadores que não conseguem acessar os originais, pode fomentar
o interesse de outros para novas pesquisas com a obra ou com o espólio etc.
Quer dizer, no nosso caso, pode significar um jeitinho capaz de colaborar contra
o esquecimento.
A publicação no ano do centenário
da Semana de Arte Moderna de um material de arquivo de Oswald de Andrade talvez
não esteja integralmente submetida a essas peculiaridades apontadas até aqui. De
toda maneira, seu conteúdo favorece a sustentação da perene pergunta: isso deveria
mesmo ser publicado? No manuscrito que serviria como uma nova linha nas
memórias do escritor, lê-se que o
Diário confessional deveria ser publicado
em 1991 ou antes. Os rabiscos reproduzidos na edição organizada por Manuel da
Costa Pinto em gesto de validação do próprio autor das anotações não apagam a
pergunta, afinal todo o material colhido de sete cadernos do autor de
Memórias
sentimentais de João Miramar é lacunar e bruto, isto é, não passou pela
reescrita, tampouco pela preparação para a publicação. Entre os imperativos
íntimos que não alcançamos e os interesses editoriais apenas mais ou menos entrevistos,
as respostas à pergunta variam. Para os mantenedores do arquivo oswaldiano, a
publicação tem um sentido, tem outro para o especialista e outro para o leitor
comum — este talvez desfeito por uma qualidade da literatura oswaldiana.
O Diário confessional reúne
uma sequência de anotações entre 1948 e 1954. Considerando o que se lê na já
referida página de autorização indireta de publicação e uma série de outros
argumentos, tais como a distinção feita por Oswald de Andrade em Um homem
sem profissão, o organizador considera o material agora em livro não como
parte dos materiais para a composição das memórias do escritor e sim obra
independente que atende pelo título em destaque. Além da discrepância temporal,
esse material responde por uma intenção distinta: é uma escrita diarística e
não memorialística. Ainda que na primeira entrada, de 19 de junho, o escritor
chame o material que começa a compor como memórias e seja esse o tom inicialmente
demonstrado nesse texto, a presença da data e o conteúdo das entradas seguintes
que se preenche com acontecimentos da vida pessoal, intelectual, econômica ou sobre
as idas e vindas com a organização da escrita em curso em nada se definem pelo memorialístico.
As anotações preenchem duas
obsessões específicas: os impasses por que passa o diarista na tentativa de
sanar a assombrosa e interminável crise financeira de um mau administrador nascido
capitalista mas sem vocação para tanto e suas voltas em torno da ideia da
antropofagia. De maneira que podemos descrever o diário como a história de um
escritor decadente e apartado de sua tribo, mas sem quaisquer saudosismos, e
por isso mesmo envenenado contra um sistema cada vez mais massacrante porque sectário
e indiferente ao reconhecimento dos bens intelectuais e seus valores
simbólicos. É um escritor doente de um Brasil sempre indiferente à gente e aos
bens culturais. A melancolia, a angústia, o desespero somam-se à revolta e são
constitutivos do tom sobre o que se conta.
Nesse ínterim, os registros de
Oswald de Andrade documentam a decrepitude de um homem que ao ver desfigurada
sua condição no estrato social se distancia da irreverência criativa e é conduzido
pelos efeitos da bílis amarela. A vida corrente do autor do diário expõe ainda
pequenos traços das variações históricas das classes no Brasil, se atentarmos
que a crise econômica referida é extensão da ruína daquele um ciclo do baronato
paulista do café, de quem o escritor é herdeiro. Sabemos que a extensa parte dos
da sua geração e classe encontrarão na política, às vistas ou à sombra, o
restabelecido lugar na ordem social, o que, fosse pela natureza difícil, fosse
(e agora sabemos melhor) por uma incapacidade de se autocentrar, não serviu a
figuras como o autor de O rei da vela.
É o diário que revela uma personalidade
irrequieta, capaz de escrever pela manhã o que perde valia pela tarde, capaz de
levantar várias ideias e não conseguir organizar ou sustentar seu pensamento.
Talvez por isso, o amigo Antonio Candido tenha recomendado o exercício da escrita
memorialística com a afirmação de que esta é a coroação definitiva de todo
grande escritor. Nem mesmo isso, vê-se, conseguiu; a decadência tudo rói.
Respira-se algo de megalomaníaco neste Oswald que se autoafirma incompreendido
pelo Brasil e no seu caso, conhecendo a sua obra, não se sustenta entre as miríades
do gênio. Ou ainda quando se abre ao deboche do trabalho dos escritores das
gerações posteriores à sua, preservando apenas os nomes com alguns dos quais
mantêm uma dívida pessoal e não necessariamente pelo convívio com a obra. Mesmo
a leitura, que poderia ser o refresco dessa natureza indomável, não é parte na
vida do diarista.
Ainda assim, se pouco encontramos
a sombra do criador literário, muito encontramos de um leitor autodidata que rastreia
entre pensadores diversos a possibilidade de oferecer uma matriz ao pensamento
filosófico brasileiro; ao avisar em passagens como “Sinto-me galvanizado pela Antropofagia”,
Oswald de Andrade se mostra tomado por uma ideia que deixa de ser uma matriz
criativa para se converter num complexo filosófico capilarizado por ideias dos
campos mais diversos — da própria filosofia, é claro, mas também da história,
da psicanálise ou da antropologia. Algumas das premissas que rastreamos nas
suas anotações conseguem sua forma, ainda que inacabada, em A Antropofagia
como visão do mundo, o grande ensaio no qual trabalhou o resto da sua vida
que está acrescentado nesta edição do Diário confessional.
Outra extensão, talvez a
principal, da revolta oswaldiana escapa a sua condição. Ou é sua condição
transmutada. É fruto do convívio com as ideias marxistas estabelecido no tempo
de Pagu, a reviravolta na sua vida e pensamento. Colonialismo às avessas, não
será exagero considerar que de um modelo estético e criativo, passado ao de uma
visão do mundo, a antropofagia findaria por ser um sistema de base primitiva em
que homem e natureza outra vez se estabelecessem como partes indissolúveis de
um Todo. É reiterativa a maneira como Oswald de Andrade aponta o cristianismo,
o colonialismo e o capitalismo como princípios de desagregação cultural e desumanização,
no sentido homem predador do homem a partir das relações capitais, de
trabalho e financeiras. Novamente implicam-se o dado biográfico e intelectual,
este que não é absorvido mas deglutido do modelo europeu.
Sabíamos que a literatura
oswaldiana foi produzida numa zona de interseção entre a imaginação, a leitura,
a vida e a história. Esse movimento é visto de melhor ângulo no Diário
confessional que materializa, ainda que não explique e nem justifique, a
predileção do escritor paulistano pelo fragmento. Nesta poética é possível
fazer conviver campos diversos e corresponder melhor à inconstância de um
pensamento igualmente inconstante. É claro que não é preciso o leitor se
deslocar até a este livro para compreender isso, mas é na matéria bruta do diário,
quando não existem o princípio estético e criativo, que melhor acessamos as vigas
de sustentação do errante projeto criativo de Oswald de Andrade.
É por isso que, nesse caso específico,
os limites entre o confessional e o criativo se baldeiam. Mesmo porque, na
direção oposta, a obra de Oswald é pródiga nesse tratamento. Por causa disso, os
papéis ordenados e publicados no Diário confessional, isto é, num
suporte diferente do caderno manuscrito, também podem ser lidos como um romance
em que testemunhamos as voltas de um escritor decadente mergulhado nas
tratativas de administrar a própria vida enquanto se apega a um fiapo do seu antigo
universo criativo no intuito de expandir ao limite de forjar sua obra-prima. Talvez,
apenas isso justifique entrarmos assim na antecâmara da criação oswaldiana.
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Diário confessional
Oswald de Andrade
Companhia das Letras, 2022
560 p.
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