Dez (breves) poemas de Abbas Kiarostami

Por Pedro Belo Clara

Abbas Kiarostami. Foto: Nicolas Guerin


 
 
I.
Hesitante
detenho-me na junção
O único caminho que conheço
é o caminho de volta
 
 
II.
Uma mulher grávida
chora em silêncio
O homem dorme sobre a cama
 
 
III.
Este meu dia
perdi-o
como todos os outros dias
metade pensando sobre ontem
metade pensando sobre amanhã
 
 
IV.
Quando voltei à minha terra natal
não consegui encontrar
a casa do meu pai
nem a voz da minha mãe
 
 
V.
Cem árvores frondosas
foram quebradas pelo vento
mas o vento
levou só duas folhas
de uma pequena árvore
 
 
VI.
Uma gota de luz
cai
pela fenda do céu cinzento
na primeira flor de primavera
 
 
VII.
Mulher de cabelos brancos
olhando as flores de cerejeira
“Terá a primavera da minha velhice chegado?”
 
 
VIII.
Flores de laranjeira
flutuando num riacho
depois da chuva
 
 
IX.
A água
desperdiçada
irriga as ervas daninhas
 
 
X.
Para além do bem e do mal
o céu
é azul

______
 
 
Abbas Kiarostami nasceu em Teerão, no ano de 1940. Seria o começo duma vida amplamente dedicada às artes. Começa pela pintura, que experimenta e desenvolve até ao começo da vida adulta, chegando a ser premiado pelo seu trabalho. Escolhe um curso na área, formando-se posteriormente em pintura e design gráfico, enquanto mantinha um emprego como polícia sinaleiro para custear as despesas dos estudos.
 
Durante a década de sessenta trabalha em publicidade, desenhando diversos pósteres comerciais e criando anúncios televisivos. Ao todo, destes últimos, foram mais de uma centena. Pela via da televisão chega ao cinema, uma paixão ainda por despontar, começando por ser responsável pelo desenho dos créditos nos filmes. Paralelamente, experimenta a área da ilustração.
 
Motivado pelos preceitos do movimento New Wave, que a partir de 1964 revolucionou o cinema iraniano, desde logo por uma posição crítica, abertamente assumida, em relação ao extremismo da religião islâmica, Kiarostami oferece o seu auxílio para a criação dum departamento de cinema num instituto académico da sua cidade natal. Será este pequeno passo, esta aparentemente jovial decisão que o catapultará para a fama. Em 1970 nasce, assim, o seu primeiro filme, uma curta metragem de apenas doze minutos — a primeira pedra lançada na construção duma carreira brilhante.
 
Pouco depois, sente necessidade de encontrar um rumo próprio para os seus filmes, decidido que estava, então, em abraçar esta nova carreira. Embora ainda vá incorporar alguns dos traços que a New Wave propôs, como uma poetização dos diálogos e o uso de alegorias para referir-se a assuntos políticos e de cariz filosófico, Kiarostami opta por um estilo de filmagem cada vez mais pessoal, chegando até a aplicar técnicas por si criadas. Denota-se uma inclinação para o realismo, uma simplicidade de narração (embora haja uma complexidade estilística) e uma preferência pela exploração de jornadas espirituais, demandas íntimas cheias de revelações súbitas, que muitas vezes são, simultaneamente, jornadas físicas. De certa forma, estaria já a traçar o estilo e a temática que o celebraria, em tudo muito próxima a outro tipo de arte que exerceria: a poesia, claro está.
 
À medida em que vai explorando o género e crescendo no meio, revelando uma proliferação notável, Kiarostami experimenta não só a direcção de filmes como a escrita de guiões e a fotografia. Em 1987 lança o filme que finalmente lhe dará o reconhecimento internacional — Onde Fica a Casa do Meu Amigo? —, iniciando assim uma fase extremamente criativa e bem-sucedida, já pela década de 90 adentro: Close-Up, em 1990, O Gosto da Cereja, em 1997, que lhe valeu a prestigiante Palma de Ouro no Festival de Cannes, e O Vento Levar-nos-á, de 1999, talvez a sua obra maior, merecedora do Leão de Prata no Festival de Veneza. Por esta altura, Kiarostami também já fazia incursões da área do documentário.
 
Sempre que se desenha uma linha ascendente, esta, invariavelmente, em algum ponto terá de marcar o início da sua descida. Não tendo assistido a um total esquecimento do seu trabalho, tampouco um desinteresse crescente, a verdade é que realizações posteriores não lograram o sucesso granjeado por outras produções. Porém, as críticas continuavam moderadamente positivas, estando já Kiarostami sólido na sua posição de realizador e argumentista de créditos firmados. Like Someone In Love, totalmente filmado no Japão, torna-se o último filme rodado em vida, estreando em 2012. 24 Frames foi lançado postumamente, já em 2017, recebendo uma chuva de críticas imensamente positivas, celebrando a vida e obra dum autor extremamente criativo, inovador e multifacetado.
 
Como referimos num parágrafo anterior, no que toca à sua expressão poética é curioso verificar como esta tantas vezes andou de mãos dadas com a produção cinematográfica do autor, expondo e explorando assuntos e temas idênticos. Ambas se interligavam e interceptavam-se, fosse pelo carácter poético com que Kiarostami filmava uma paisagem ou captava um diálogo, ou pelo traço fortemente visual, quase cénico, que transpunha para um poema.
 
A sua poesia, que chegou a ser publicada pela Universidade de Harvard, uma antologia bilingue de cerca de duas centenas de poemas, vai beber muito a influências do extremo oriente, curiosamente. E afirmamos isto com algum espanto, dada a preciosa herança poética deixada pela antiga Pérsia, facilmente explorada pelo autor — que, aliás, honrava nobremente em seus filmes, especialmente numa primeira fase.
 
Kiarostami expressa-se poeticamente com a brevidade e a leveza típica dum haiku japonês, embora geralmente o faça com mais versos e sílabas. É uma poesia simples somente em aparência, focada no pormenor, concentrada no momento, apresentada como uma mostra de imagens retidas (pérolas de instantes sempre fugidios), pensamentos passageiros, ponderadas reflexões, angústias profundas, alegrias súbitas. Tal como nos seus filmes, a expressão é pessoal, e nela deparamo-nos com pequenas singularidades que atestam a riqueza da própria vida, captada sem filtro nem embaciada pelo julgamento do observador. O lado belo da existência é sempre enaltecido, mesmo no seio da maior obscuridade, elevado a um patamar de celebração. Mas não se limita a essas fronteiras: expõe dilemas de teor filosófico (sempre revelou uma ligação forte a esta disciplina; veja-se como o poema X desta nossa recolha começa com o título duma obra de Nietzsche), a dureza da condição humana, a passagem do tempo, a inevitável morte, a efemeridade de tudo (que a tudo confere uma fragilidade bela, se bem que delicada). Uma poesia fotográfica, portanto, que sabe igualmente ser reflexiva e humana, pela forma como se abre ao seu leitor.
 
Em 2016 viria a falecer em circunstâncias algo misteriosas ou, pelo menos, pouco esclarecidas, já que a família do autor acusou de negligência a equipa médica que o assistiu no seguimento de um problema do foro intestinal, originando um internamento que se prolongou por vários meses. Tinha setenta e seis anos de idade e por legado uma extensa obra amplamente premiada e reconhecida.
 
Notas
* Tradução de Bernardo Sá em flores silvestres (poemas escolhidos) (Flâneur, 2023.)
 

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