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Aurora Venturini. Foto: Nora Lezano |
Aurora Venturini (1922 - 2015) foi
uma escritora secreta, ou quase despercebida por muito tempo. Publicou por
conta própria e em pequenas editoras antes de ganhar um prêmio destinado a
obras novas e inovadores. Foi amiga de Evita, dividiu apartamento com Violette
Leduc e passeou por Paris, onde morou por 20 anos, com Jean-Paul Sartre e
Simone de Beauvoir.
Sob o pseudônimo de Beatriz
Portinari (em homenagem à famosa florentina idealizada por Dante), ela contou a
história de Yuna Riglos, uma artista precoce com uma leve deficiência mental, numa
prosa desenfreada em que se desenvolvem com franqueza perversa os segredos
macabros e intimidades de uma família de classe média baixa na Argentina dos
anos 1940. O romance se chamava
As primas.
Um júri formado por escritores
como Rodrigo Fresán, Alan Pauls e Guillermo Saccomano, entre outros, deu
atenção a essa voz radical que vinha de um original datilografado com marcas de
correção por toda parte. Assim, foi que, em 2007,
As primas conquistou o
prêmio da primeira edição do concurso “Nueva Novela” do jornal argentino
Página
12. O certame pretendia premiar uma obra da literatura jovem, ousada e
inovadora. O romance foi recebido com elogios unânimes na imprensa, vendeu
35.000 exemplares. Na Argentina foi publicado pela Mondadori e na Espanha,
Caballo de Troya, onde, em 2009, também recebeu o prêmio Otras Voces, Otros
Ámbitos. O romance também foi adaptado para os palcos e estreou em 2010 no
Teatro Cervantes de Buenos Aires. Esse livro foi escrito por Aurora Venturini
quando ela tinha 85 anos.
Venturini nasceu em 1922 na cidade
portenha de La Plata. A mesma para a qual voltou após duas décadas de exílio na
França. Descendente de imigrantes sicilianos, dizem que era torcedora do clube
local, Estudiantes de La Plata, e como afirma o fascinante documentário
Beatriz
Portinari (Fernando Krapp e Agustina Massa, 2012), amava os cachorros e
tinha duas aranhas de estimação, Rebeca e Ariadna, porque “a gente tem os
parentes que pode”. Dizem que escreveu seu primeiro poema aos quatro anos. Seu
pai saiu de casa quando ela era menina (assim como o pai de Yuna, a protagonista
de
As primas) e só voltou para expulsá-la quando descobriu que era uma peronista.
Depois, abandonou a família novamente. Conta-se também que um muito jovem
Ernesto Sábato a cortejou quando ela tinha 20 anos, mas a mãe “o espantou por
ser comunista”.
Ela era uma grafomaníaca. Depois
de se aposentar, escrevia oito horas por dia, primeiro na máquina de escrever e
depois, quando a artrite a impediu, à mão em cadernos, com os quais depois ditava
suas histórias para sua assistente. Ao longo de mais de seis décadas de uma
carreira literária quase anônima, publicou mais de 40 livros em pequenas
editoras e em edições pagas por ela mesma porque “não gostava de pedir”. Só foi
reconhecida no início de sua carreira, em 1948, quando Jorge Luis Borges, em
nome da Sociedade Argentina de Escritores, lhe concedeu o prêmio de estreia
literária por
El solitario.
A crueldade que convive na
intimidade de famílias disfuncionais, assim como a variedade de personagens
femininas extremas, monstruosas e maltratadas, é observada com um olhar cândido
e inocente, quase infantil. É o tema recorrente na pequena parte da sua obra
que tem sido resgatada do esquecimento, como
Nós, os Caserta ou os
contos de
El marido de mi madrastra. Seu estilo peculiar é caracterizado
por uma sintaxe arcaizante e sufocante. Venturini evitava o ponto final, como
Yuna, protagonista de
As primas. “Sou louca: se paro, minhas
ideias me escapam”, confessou à jornalista Liliana Viola. Seus peculiares
desabafos poéticos exalam o pulsar de um neobarroco latino-americano, como
neste conto de
Hadas, brujas y señoritas: “Transformavam-se em
estatuetas de cerâmica sem tirar os olhos amarelos do vidro que lhes permitia
olhar para a torrente e quando o trovão desatava a harmonia chuvosa,
estremeceram, suaves natas açucaradas em taças de sobremesa.” Um estilo tão
pessoal que, como disse Leila Guerriero em um perfil para a revista
Gatopardo,
“poderia se enredar nas vinhas da poesia como intrometer-se entre insultos
bêbados”. Enrique Vila-Matas a definiu como “uma louca faulkneriana atrás da
qual se esconde César Aira” e a escritora Mariana Enríquez como “uma Kafka profana”.
Na obra de Venturini também habita essa “posteridade selvagem” que o poeta
Edgardo Dobry atribuiu a Osvaldo Lamborghini, assim como a candura selvagem da
poeta uruguaia Marosa di Giorgio convivendo com as atmosferas sinistras e
inocentes dos contos de Silvina Ocampo.
Aurora Venturini formou-se em
Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade Nacional de La Plata e
trabalhou no Instituto de Psicologia e Reeducação de Menores, onde conheceu Eva
Perón. Ela era sua amiga íntima e até mesmo a acompanhou no leito de morte (em
entrevista a Liliana Viola, ela contou que “o porta-estandarte dos pobres”
pedia-lhe que lhe contasse piadas sujas, mas também que lhe contasse sobre os
pré-socráticos e a teoria do tempo de Heráclito). Devido à sua filiação ao
peronismo, após a Revolução libertadora, o golpe militar de 1955 contra Domingo
Perón, teve que se exilar em Paris até 1975. Sobre esse momento particular de
sua vida, ao qual retorna variadas vezes, publicou dois títulos em um volume:
Eva.
Alfa y Omega, que narra sua amizade com Eva Perón e que esperou anos para
escrevê-lo, e
Pogrom del cabecita negra, publicado em 1992, mas muitas décadas
se passaram antes de ser reimpresso em 2015. Ambos os textos se articulam como
um todo onde o halo mítico desses dois personagens da história argentina do
século XX, o casal Perón, se confunde com a autobiografia dessa escritora
inusitada.
Como várias gerações sucessivas de
intelectuais argentinos na primeira metade do século XX, Aurora Venturini era
francófila. Traduziu e escreveu ensaios críticos sobre poetas como Isidore
Ducasse, o conde de Lautréamont, François Villon e Arthur Rimbaud. Traduções
pelas quais recebeu a Cruz de Ferro, concedida pelo governo francês. Durante
seu exílio em Paris, além de ter se doutorado em Psicologia pela Sorbonne com
especialização sobre o Teste de Rorschach, experimentou a ascensão do
existencialismo. Foi assim que conviveu com Simone de Beauvoir, de quem dizia que
“era uma mulher muito simples”, ouviu Jean-Paul Sarte chorar num cinema e
sustentou numa entrevista à revista
Rumbos que “era um homem calado, mas
quando se soltava não parava: falava das coisas dele, da vida. Sentávamo-nos
nos jardins de Versalhes e ele me dizia que olhava as plantas e começava a
sentir enjoo: ‘Porque a primavera está chegando e por baixo as árvores estão se
misturando. Você percebe que elas copulam pelas raízes? Você percebe que elas
estão vivas e estão chorando porque nós os matamos?’ Todas essas coisas me
aterrorizavam. A ele também. E então não conseguíamos dormir. Então saíamos a
qualquer hora e ficávamos bebendo alguma coisa estimulante até o dia seguinte”.
Dessa época, Venturini também contou que certa manhã encontrou Albert Camus no
apartamento que dividia com Violette Leduc no Quartier Latin: “Ela andava por
aí, estava apaixonada por um pedreiro que a espancara. Ela foi a melhor
romancista francesa de seu tempo”.
“
As primas sou eu.
[...] senhorita, é minha família. Nós não éramos normais. Em casa, todas as
minhas irmãs eram retardadas. E eu também.” Essa paráfrase flaubertiana com a
qual, quando lhe telefonaram para avisar que estava entre os 10 romances finalistas
do prêmio de 2007, ela argumentou por que seu romance merecia o referido prêmio;
é uma frase programática que resume a relevância — também para a teoria da literatura
— de seu trabalho. Toda a sua narrativa é indissociável de suas agitadas
experiências ao longo do século XX, nas quais a pessoa e a personagem Aurora
Venturini se enredam promiscuamente. Esta aranha-escritora forjou uma
autoficção em torno da sua própria biografia, uma continuidade indissociável
entre a vida e a obra. Ninguém sabe ao certo qual das diferentes versões
incongruentes sobre seu pai é a verdadeira. Ou do suposto motorista que a
levaria para a cerimônia de premiação do seu romance. Ou as histórias intermitentes
de prêmios que sua admirada Evita Perón supostamente lhe deu, como o de saltos
de obstáculos.
Graças ao reconhecimento tardio e
à consagração internacional, Aurora Venturini viveu uma posteridade desenfreada
em vida, como disse a Leila Guerriero: “Eu já tinha publicado 40 livros antes,
mas isso foi uma explosão. Agora aqui eles dizem que eu sou boa porque dizem o
mesmo na Europa. São repugnantes, veja. Vivemos num charco imundo”. Depois
disso, conta com um prêmio na própria cidade de La Plata, o prêmio Aurora
Venturini, que reconhece contos de autores da província de Buenos Aires.
Numa conferência registrada no
documentário
Beatriz Portinari, depois de compartilhar a experiência do
acidente doméstico em que quase morreu, ela expôs sua relação particular com a
morte. Recomendou ao público que “se sua alma cair no chão, pegue-a e coloque-a
de volta”. No mesmo documentário, mantém uma conversa hilária com um exorcista
sobre sua literal e dantesca “viagem ao inferno” após o acidente. Essa experiência
é narrada em
Los rieles, um ensaio autobiográfico errático e alucinante:
“Morri, caí no reino dos seres das trevas; vi o que preferiria não ver; sofri
queimaduras terríveis. Gritei: ‘Não estou morta’; regressei. Impõem que minha
história é um ardil de escritora. Oxalá”. Aurora Venturni morreu em 24 de
novembro de 2015, mesmo mês em que sua obra mais representativa era relançada
na Espanha.
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