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Yuri Andrujovich Foto: Kateryna Lashchykova |
Desde o início do século atual,
dois escritores do que outrora se chamava Leste Europeu e que hoje são
considerados os gênios mais inspirados vindos daquelas latitudes, até bem pouco
tempo envoltos nas trevas de uma ignorância extraplanetária (“vindos daquelas
regiões nebulosas, daquelas que os manuais e livros raramente falam, cada vez
tinha que recomeçar do início; mesmo que seja difícil, ou doloroso, explicar
quem sou, é preciso tentar”, dizia com tristeza o grande poeta polonês Czesław
Miłosz no início do seu livro
Minha Europa) têm estado entre os mais
privilegiados na hora de se difundir através de várias e sempre esplêndidas
obras.
Um seria o polonês Andrzej Stasiuk
(Varsóvia, 1960) e outro o ucraniano Yuri Andrujovich (Ivano-Frankivsk, 1960).
Amigos e cúmplices literários, separados por uma tênue fronteira que outrora os
unia, ambos começaram como poetas e se movem como peixes na água,
indistintamente, entre o ensaio e prosa de ficção, e por universos fascinantes,
plenos de fantasmagoria e miscigenação pós-moderna, mas também apaixonantes e
reflexões lúcidas sobre as vertiginosas mudanças ocorridas em seus lugares de
origem. Regiões, diga-se, essenciais para uma Europa em permanente construção e
que aportam um enorme patrimônio cultural e uma complexa memória histórica por
trás. Magníficas centelhas renascem contínua e teimosamente depois das cinzas e
depois das ininterruptas tentativas de aniquilação, como é o caso da atual
guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, que todos eles sofreriam na carne, nas
ruas, nas suas vidas e nos desvãos mais recônditos de seu imaginário comum.
Assinado conjuntamente, mas com
obras individuais, viria a surgir no ano 2000, uma obra magnífica,
Minha
Europa (não confundir com o título de Czesław Miłosz), absolutamente recomendável
para qualquer interessado por desvendar os inesgotáveis vestígios e segredos
desta Europa mais oriental, que não para de emitir sinais como um palimpsesto
que se recusa a morrer esmagado pelo progresso desordenado ou pela ignorância
de uma ávida integração nos modernos e sonhados mercados.
Pouco depois surgiria outro
magnífico volume de ensaios,
O último território, neste caso da autoria
de Andrujovich, em que as sombras do Império Habsburgo e a mais revolta
atualidade, de belas cidades como Kiev, ou da mítica Lviv , antiga capital da
Galícia austro-húngara, foram inseridas com bastante naturalidade pela mão
desse observador fino, microscópico e antirromântico, nada comum ou adepto aos
clichês.
Esses livros, tanto os romances como
os ensaios, são indissociáveis no caso deste autor, de um verdadeiro gênio da
poética geoespacial. Ou se preferir: desse tipo de realismo mágico, ou fantasia
à maneira de Mikhail Bulgákov, ambientado em seu caso nas montanhas íngremes
dos Cárpatos, em densas florestas de pinheiros e bétulas, e recriado literariamente
através de “longos e hipnóticos períodos quase sem diálogos, densidade marginal,
saturação nos detalhes e elipses nas insinuações”, como ele mesmo diz, quase
programaticamente, em seu romance
Doze anéis, de 2003. Alguns Cárpatos
que, em todo o imaginário deste autor, vão funcionar como guardiões
silenciosos, metafísicos, simbólicos e seculares desses extremos confins e margens
da velha Europa.
As Montanhas encravadas naquela
antiga Galiza austro-húngara (hoje dividida entre a Polônia e a Ucrânia), que
após o fim da Primeira Guerra Mundial passariam para as mãos da
recém-independente Polônia, para depois integrarem no III Reich e após o fim da
Segunda Guerra Mundial tornarem-se uma República Socialista Soviética — e,
finalmente, desde 1991, uma Ucrânia independente — situar-se-iam
inevitavelmente no interior de um eterno conflito latente, como agora se
demonstrou com esse “país fronteiriço” por excelência. Uma tempestuosa
encruzilhada de caminhos, frequentes “estopins de guerra” tradicionalmente
disputados por ardentes pretendentes. Disputas que por si só fechariam o Leste
do continente europeu. Se a Galícia espanhola é o
Finis Terrae a
Ocidente, do lado oriental está sempre a disputada Galícia — ou toda a Ucrânia,
em seu sentido mais amplo, que, como ironicamente diz Andrujovich, seria “território
de transição entre duas estabilidades: a estabilidade europeia da democracia e
da estabilidade russa do autoritarismo” — seria o
Finis Terrae do Leste
Europeu.
Enclave eslavo e ao mesmo tempo
barril de pólvora de múltiplas memórias históricas convergindo para um mesmo
lugar, a Ucrânia, com suas vastas e férteis planícies propensas a invasores
gananciosos, que sempre despertou um ávido apetite entre seus numerosos
vizinhos: russos, poloneses, austríacos, alemães e lituanos. Aliás, seu próprio
nome já geraria toda aquela inquietação geopolítica. Um nome que significa
margem,
passagem de fronteira ou, simplesmente,
confins. Um lugar que
durante anos ofereceria a uma Europa ocidental mimada, desencantada, entediada,
sonolenta e, periodicamente, imbuída de tentações suicidas eurocéticas ou eurorrupturistas,
inúmeras lições surpreendentes de coragem e bravura, desde os comícios na Praça
Maidan em 2013 até o momento atual de heroica defesa contra a selvagem invasão
russa de sua terra soberana. Se agora lemos os livros dos mais eminentes e
internacionalmente conhecidos talentos literários deste enclave, hoje mártir,
em numerosas ocasiões os ecos da atual tragédia “já aí estavam”:
Sobreviva entre russos e alemães —
dirá Yuri Andrujovich em sua excelente coleção de ensaios
O último
território. Essa é a predestinação histórica da Europa Central: os alemães
estão chegando, os russos estão chegando. Essa foi também a adversidade
daqueles que ao longo da história foram suspeitos de serem galegos: os russos
os exterminaram porque colaboravam com os alemães, os alemães porque colaboravam
com os russos.
Da sua terra natal Ivano-Frankivsk
(ou Stanislav), cidade situada no oeste da Ucrânia, na antiga Galiza
austro-húngara, onde ainda vive, Andrujovich nunca deixou de navegar na sua
obra, melancólica, aguda e passional, entre clarividentes e o muito acertadas reflexões,
por retratos fascinantes entre nostálgicos e desencantados, e confissões de
amor lúcido por aquele “último território”, “essa eterna zona transitória” ou “campos
entre a Europa e a Não-Europa”, que sempre se viu obrigado a sobreviver “entre
russos e alemães”. Ou entre múltiplos infernos sucessivos: dos das utopias totalitárias
aos dos ultranacionalismos xenófobos e racistas que varreram importantes
minorias, como foi o caso dos judeus, com grande e importante presença naquelas
terras durante séculos.
Em suas composições
poético-narrativas barrocas, paródicas, frenéticas e vibrantes, Andrujovich
gosta de avançar por estratos e fusões, por misturas e remixes, das quais todos
eles, habitantes de um “centro deslocado”, são ao mesmo tempo mutiladas e
originais vestígios que em nada se parecem. Sedimentos resultantes de mudanças
drásticas e daquelas identidades voláteis e disputadas que caracterizam esta
parte mais oriental da Europa.
Caça-fantasmas ou demiurgo a quem
não falta uma única nomenclatura, detalhe,
patchwork ou ninharia
ornamental, da elegância austríaca à cafona que sobreviveu aos anos sessenta da
corrida espacial e aos cientistas em fuga para o Ocidente, Andrujovich, atual numen
absoluto dos Cárpatos, é um herdeiro digno e ao mesmo tempo incomum de grandes
escritores míticos de sua Galícia natal, de Joseph Roth ou Bruno Schulz.
Videoartistas e poetas presunçosos
caminham por suas montanhas em plena seca de inspiração, nostálgicos dos
Habsburgos ou do Espírito Cossaco Iluminado — movimento impensável, como tantos
outros, citado em
Recreações, seu primeiro romance, de 1992 —, ultranacionalista
ferozmente antirrussos, comunistas grosseiramente reciclados em obscuros
negócios ilegais, assassinos de aluguel que jogam do trem cadáveres de
jornalistas com um excesso mortal de curiosidade, ou fantasmas de reverenciados
poetas malditos da Galícia que, segundo a lenda, ainda caminham por belas
trilhas naturais regulados tanto por uma polícia brutal digna de qualquer tipo
de suspeita quanto por bandos de crianças ciganas em total estado de barbárie...
Todos eles “armam um alvoroço e um
barulho incríveis”, como os que frequentadores do Festival do Espírito Renascente
na cidade de Chortópil, e todos convivem tumultuadamente, parecendo carregar
inscrito na pele “o mesmo selo da coexistência quimérica e simultânea”. Uma prova
é a configuração escolhida para
Doze anéis. Neste metarromance, um
misterioso benfeitor do novo estado ucraniano, Vartsábych I. I., enriquecido
rapidamente e “sem condições” na década de 1990, pela arte e magia da
engenharia empresarial pós-comunista, decidiu reunir-se num balneário ou
refúgio de montanha de sua propriedade — que em suas origens remotas foi um
observatório austro-húngaro e depois uma escola de esqui stalinista —, dentro
de um ambicioso programa de relaxamento mercantilista ou lavagem de imagem
intitulado “De heróis dos negócios a heróis da cultura”, a um punhado de
representantes da
intelligentzia galega do momento, incluindo um
fotógrafo vienense, nostálgico da civilização danubiana e que, para piorar, se
chama Karl-Josef...
Um dos autores de maior talento,
capacidade para a corrosão e genialidade poética de uma Europa atual, cuja
parte ocidental é sempre clara, mas cujo Centro ou parte oriental, mais ou menos
remota segundo as óticas, se encontra sempre em discussão, o ucraniano Yuri
Andrujovich junto com o polonês Andrzej Stasiuk deixariam escrito um documento
ou crônica inestimável, das melhores depois da Queda do Muro e as mudanças
vertiginosas que ocorreram nessa região do continente.
Minha Europa
é uma pequena joia, entre um canto fúnebre e um renascimento melancólico, dessa
Europa de Leste — ou Europa Central no seu sentido mais amplo e exato — em que
nasceram.
Uma região que, como se sabe, iria
sofrer um processo de metamorfose imparável e permanente desde 1989. Ambos os
autores, de referência absoluta nos seus países, vieram da Galícia, uma terra
mítica para a literatura, sobretudo na sua fase austro-húngara, de onde viriam à
luz escritores como Joseph Roth, Bruno Schulz, Józef Wittlin, Andrzej
Kuśniewicz, Stanisław Lem, Shmuel Yosef Agnon (único Prêmio Nobel de
Literatura em língua hebraica, em 1966), Zbigniew Herbert e Adam Zagajewski, além
de outros como Soma Morgenstern e o memorialista Manès Sperber, ou no século
XIX, Leopold von Sacher-Masoch.
Se Joseph Roth foi o embalsamador
de luxo do Império Austro-Húngaro, pode-se dizer que Andrujovich se tornaria o
agente funerário mais feroz e sarcástico, e igualmente luxuoso, do Império
Soviético. Romancista, poeta, ensaísta, tradutor e uma das personalidades mais
carismáticas e influentes da cultura ucraniana desde a Queda do Muro,
Andrukhovich provém de um mundo de vanguarda muito ativo, que gozou de uma
longa tradição em todos esses países, antes do amordaçamento forçado do “realismo
socialista” como visão única e estética da arte, imposto durante o período
soviético. Um método literário singular que, como disse Andrujovich em seu
brilhante romance
Moscoviada, de 1993, exigia que todos os institutos,
escolas e centros da época levassem necessariamente o nome de Górki — alguém
totalmente desacreditado, considerado “um traidor, um cortesão adulador dos
bolcheviques” — como sinônimo do que deveria ser “o ofício da literatura”.
Em 1985, junto com outros poetas,
Andrujovich fundaria o grupo Bu-Ba-Bu, expressão composta com a primeira sílaba
das palavras ucranianas
bufonaria,
farsa e
burlesco, que
já incluía toda uma vertente programática para sua própria escrita, baseada em
gigantescas e hilariantes ironias, através das quais não só um sistema político
degenerado à beira da demolição foi traduzido através de paródias selvagens,
mas também o universo gigantesco e subterrâneo de corrupção, mentiras,
denúncias e manobras brutais de intimidação, estabelecido para se perpetuar no
tempo, como o única opção possível “ante o Caos”.
Assim, Andrujovich dizia, em tom
ameaçador, a um dos fantasmas ainda vivos do comunismo que enxameava e
conspirava pelo submundo dos esgotos de Moscou em
Moscoviada: “Será este
Grande Estado ou não será; o Grande Estado ou o Grande Caos; a hierarquia ou a
anarquia [...] Ensinaremos a todos a amar o Estado. Ou seja, amar a violência,
a mentira e o suborno”. Um romance que relembra as andanças de Satã por Moscou
na década de 1930 e o resto dos protagonistas do mítico
O Mestre e Margarida
de Bulgákov, nesta obra de Andrujovich escrita nos primeiros anos da
desintegração do Império Soviético, nos últimos estertores do comunismo, narra-se
a descida às catacumbas do Kremlin e a Lubianka de um poeta ou jovem Virgilio
ucraniano. Um inferno subterrâneo no qual reinavam os membros da KGB à frente
de exércitos de ratos ou dos espectros de Lênin e Félix Dzerzjinsky, o temível
criador da Cheka e um dos principais arquitetos do Terror Vermelho.
Moscoviada seria o segundo romance
de uma esplêndida e hilária trilogia, um verdadeiro ápice do picaresco
centro-europeu e gogoliano, ao nível dos romances de Bohumil Hrabal, Jaroslav Hašek
ou do humor devastador de um Witold Gombrowicz, também composto por
Doze anéis
e
Perversão (1996), que narra o misterioso desaparecimento de um poeta
ucraniano, convidado pela fundação La Morte di Venezia para um seminário
naquela mesma cidade, que leva o título “O absurdo carnavalesco do mundo”. Um
romance não menos deslumbrante na sua extensão polifônica de múltiplas paródias
de gêneros e técnicas narrativas: desde o jornalístico, a investigação
judicial, a transcrição das atas de um congresso, as declarações de um
confessor, os relatórios de vigilância, as entrevistas nos meios de comunicação,
fitas de vídeo ou a inclusão de uma
Opera buffa.
Mais uma vez protagonizada por um
dos muitos
alter egos humoristicamente escolhidos por Andrujovich, na
sua “trilogia do caos”, neste caso o poeta e “culturólogo” Staj Perfetsky, o
das mil máscaras, o que “como um jovem diabo muda eternamente de aparência”,
poeta, cantor, músico, protagonista de funções, performances e provocações,
muito ativo sobretudo na bela cidade de Lviv, de onde partiu na primavera de
1992. Um representante do que se chamava, em outros tempos, “dandismo cossaco”.
Alguém que é suspeito de ter, teatralmente, se jogado nas águas do Grande
Canal.
Pertencem a algum gênero ou
fórmula literária determinada nas cidades? No belíssimo livro de Yuri
Andrujovich
Pequena enciclopédia dos lugares íntimos, uma espécie de
diário por lugares, pessoas e momentos de sua vida, o escritor afirma que sim,
que às vezes há cidades que induzem ao jornalístico e há outras que levam os
escritores a imaginar um romance. “Se Berlim me aparece em forma de diário e
sempre me apetece escrever nele, Lviv é um romance. Nunca mantive um diário em
Lviv, Moscou ou Ivano-Frankivsk, mas com tudo o que escrevi até agora sobre
Berlim, sai de um caderno de anotações, um diário”, diz. Por outro lado, como
acrescenta, houve pessoas, durante as suas viagens e longas estadias em Berlim,
uma das cidades que melhor conhece além das ucranianas, que sempre o
incentivaram a escrever um livro sobre a cidade: “Desde os tempos de Döblin nenhum
romance foi escrito sobre a cidade, comece a escrevê-lo!”.
Neste fascinante livro ou
ziguezague que dá voltas e voltas sobre o seu passado e a sua memória pessoal,
Andrujovich percorre trinta e nove cidades europeias e americanas rompendo,
como lhe é habitual, com o maravilhoso e hipnótico humor e carga poética que
caracterizam, todos os códigos e regras usuais; as tonalidades únicas,
passagens histórico-culturais ou matizes adivinhados entre claro-escuros não
muito visíveis, com os quais qualquer visitante ou leitor de guias comuns se
depara ao consultar um nome específico. Aqueles sinais ou marcos na estrada que
um viajante sempre sonha em “apropriar-se” de uma cidade, para percorrê-la
muito mais tarde de memória.
Os caminhos secundários que
Andrujovich empreende levam a cidades e capitais muito reconhecíveis, incluindo
Praga, Detroit, Nova York, Veneza, Guadalajara, Toronto, Estrasburgo,
Frankfurt, Varsóvia, Bucareste, Berlim, Munique ou Antuérpia, mas também a um
bom número, mais emocionante do que nunca neste momento, pois são lugares que
muitas vezes ressoam nas notícias diárias, nas fotos e na mente dos leitores de
hoje, devido à guerra atual, de cidades ucranianas ameaçadas, perseguidas,
bombardeadas impiedosamente, muitas vezes abandonadas à própria sorte, com
grande parte de seus habitantes fugindo. O livro de Andrujovich foi escrito
antes da atual agressão e invasão do país pela Rússia, mas isso não quer dizer
que os nomes parem de ressoar de forma chocante, séria, impressionante, fazendo
o coração encolher ao vê-los refletidos no papel e imaginados.
Aí está a Odessa de Bábel e
Eisenstein; a Chernivstí (ou o alemão Czernowitz) na histórica região da
Bucovina, atualmente dividida entre a Ucrânia e a Romênia, berço de grandes
escritores, como o poeta de língua alemã Paul Celan, o israelense Aharon
Appelfeld ou Gregor von Rezzori; a Drohobych de onde saiu o fantástico Bruno
Schulz, uma cidade que faz Andrujovich pensar na longínqua Antuérpia (“se
alguém quiser saber como eram as pessoas há cem anos em Drohobych, vá a
Antuérpia”) e à qual dedica um esplêndido e longo texto ensaístico-literário; a
imponente e majestosa capital de Kiev, lembrada de 1972 a 2017, incluindo assim
a famosa revolta da Praça Maidan, da qual Andrujovich participou com ardor; e,
por fim, a bela Lviv, capital da Galícia austro-húngara, e depois polonesa, que
após a Segunda Guerra Mundial passou para as mãos dos soviéticos (“A Polônia
perdeu Lviv, mas o Ocidente venceu”). A dos mil escritores (Stanislaw Lem, Adam
Zagajewski, Zbigniew Herbert, Józef Wittlin), artistas, intelectuais refinados
e, sobretudo, cidadãos orgulhosos que “imitaram o Ocidente com toda a
intensidade possível”. Incessantemente, por todos os cantos, dirá Andrujovich, a
primorosa e desejada Lviv (“Devolva Lviv!”, se ouviria por muito tempo, como se
fosse um brinquedo, em meio à imensa diáspora de deslocados, instalada no oeste
da Polônia), incessantemente a bela cidade “decomposta em fragmentos de Paris,
Roma e Budapeste”.
Durante muito tempo, explica
Andrujovich, esta mítica cidade seria a fronteira ideal “entre o Oriente e o
Ocidente”. Encruzilhada forçada, a localização da cidade era a mais adequada e
nem as caravanas da Bretanha para a Pérsia, nem da Coreia para Portugal,
conseguiam contorná-la. Tanto para ir de Moscou a Roma quanto de Amsterdã a
Bombaim, você tinha que passar por Lviv. Assim, não é de estranhar que, como
conta o autor, alguns dos muitos viajantes que faziam escala decidissem aí
ficar e viver: não só comerciantes, mas também músicos de rua, pregadores,
desertores de quase todos os exércitos, espiões, adivinhos, cientistas,
professores, curandeiros, prisioneiros fugitivos e fugitivos livres.
“Uma vez tentei fazer uma lista” —
dirá Andrujovich — “mas tive que parar quando percebi que seria infinita [...]
Não foram apenas cinco dos anos mais densos da minha vida, mas também de tudo o
que escrevi até agora. Se existe uma Dublin para mim, ela se chama Lviv.”
Quando, aos quinze anos,
Andrukhovich era questionado sobre “onde ele iria estudar depois dos estudos
básicos”, ele invariavelmente respondia (como aqueles personagens provincianos
de Tchekhov que diziam sem parar “Para Moscou, para Moscou!”): “Somente Lviv!”.
Como também conta, Lviv, a
justaposição de culturas, pouco a pouco, ao longo do século XX veria o
multiculturalismo tornar-se uma maldição, com um crescente ódio
étnico-religioso “que só a Áustria-Hungria soube controlar, mas que explodiu
com a desintegração do Império”. Começou a “limpeza do outro” e todos expulsavam,
ou massacravam, conforme o caso, todos: os poloneses aos ucranianos, os alemães
juntaram os ucranianos aos judeus, e os soviéticos e os ucranianos aos poloneses.
Ambos os imperialismos cruéis, o
da Alemanha e o da Rússia, “desempenharam seu papel”.
Paradoxos da História: embora
intimamente ligado, como todos os galegos de nascimento, à Polônia, tanto pela
sua proximidade como pela sua história e bom conhecimento da língua e do país, um
país praticamente “irmão” e fronteiriço com a Ucrânia, Andrujovich afirmará
surpreendentemente, mas extremamente apaixonado e sentimental, compreensível
apenas para aqueles que foram abalados pela tirania, primeiro soviética e
depois da Rússia de Putin:
“Até hoje fico feliz que em 1944
os britânicos não conseguiram negociar com Stálin a entrega de Lviv aos
poloneses. Se tivessem conseguido, Lviv estaria do outro lado da fronteira. A
fronteira estadual entre a URSS e a Polônia passaria perto de Vynnyky, e o
Ocidente começaria atrás dela. E não teriam nos permitido ir ali.”
As cidades têm rosto, mesmo de
terror? Num dos melhores capítulos do livro de Andrujovich de cidades
lembradas, o dedicado a Moscou, uma presença fantasmagórica, inevitável,
desliza pelo interior mais remoto da imponente metrópole de um Império que
muitos sonhariam nunca ver interrompido: Stálin. Aquele que durante décadas
moldou metade do planeta, também o fez no subsolo mais famoso desse mesmo
planeta subjugado. Uma nova versão ou alegoria de um inferno terrestre,
construído para o bem social, é descrita por este autor: “Moscou é uma aranha e
a aranha é o metrô, é uma cidade mais subterrânea que terrestre, é totalitária,
incorpora Stálin e seus instintos telúricos”.
O que fazer com os tiranos quando
eles deixam de existir? Destruir suas estátuas, seus túmulos megalomaníacos, ou
fechar todos os monumentos e líderes do comunismo numa espécie de campo
temático, como fizeram os húngaros após a queda do Muro? Uma obra faraônica e
magnífica como o metrô de Moscou não poderia sofrer esse fim, obviamente. O
rosto do tirano genocida que “destruiu milhões de inimigos e construiu palácios
subterrâneos reluzentes” continuaria a ressoar na memória de muitos:
“Sem ele, o metrô de Moscou” — diz
Yuri Andrukhovich — “nunca teria existido. Foi ele, a sua megalo-gigante-empiromania,
a sua insônia alucinatória que o enlouqueceu completamente pela sua sede de
transformação e pela sua paranoia, que deu vida a este novo projeto de
modernização. Daí sua inclinação para o tudo subterrâneo, bunkers,
quartéis-generais e esconderijos.”
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