Por Renildo Rene
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Samuel Beckett. Foto: Bruce Davidson |
Figura incontornável da literatura do século XX, o
dramaturgo desenvolveu uma série de trabalhos que proliferam um estilo refinado
da sua linguagem, e muitos com um caráter experimental, solidificando seu nome no
rol de autores em constante trânsito de gêneros.
Mesmo premiado com o Nobel de Literatura em 1969 — resultado
da sua recepção crítica singular tanto no teatro como na prosa — e com uma
popularização ainda maior de sua produção artística, permaneceu nele a
sensibilidade de decifrar o homem moderno pelas entrelinhas das poucas
palavras. Porém, diferentemente de como passou a se portar na mídia se
distanciando das perguntas, boa parte de sua escrita requer o questionamento como
parte da leitura.
Duas novelas reunidas pela editora Martins Fontes, sob
organização de Vadim Nikitin e tradução de Eloisa Ribeiro, proporcionam esse
apuramento para uma perspectiva de interpretação de personagens, espaços e
temas que nunca parecem estar completos.
O despovoador (1968-1970) e
Mal
visto mal dito (1979-1981) são textos por ora enigmáticos, visando a faceta
ficcional curta de Beckett.
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Diferentemente da forma dramática,
O despovoador (no
francês,
Le Dépeupleur) encarna uma prosa de sua escrita talvez não mais
madura, porém ostensiva e mais explícita nos termos de significações da
linguagem. Na trama, um cilindro habitado por corpos que, ora em dispersão ora
estáticos, se dispersam e têm sua imagem desindividualizada. Essa sinalização
acompanha a trajetória da narrativa em vias de buscar, antes, absorver o estado
da inferiorização posta ali do que qualquer compreensão lógica, posto que nesse
espaço de supressão das relações a racionalização sobre a liberdade já é
falida.
Já é possível perceber noções gerais da experiência sociogeográfica
— tempo, clima, ambientação, descrições, sujeitos — em suspensão e definição
direta pela movimentação desses corpos em contínuo trânsito. Ora, se naquele
campo a qual estão, de modo não-arbitrário, pessoas sobrepujadas por uma força
maior desconhecida, o cilindro se torna um mecanismo de despovoamento pelo
despejo, inaugurando uma nova dimensão de coletividade catastrófica: a da
hostilidade beirada pela tentativa de sobrevivência.
Interessante notar a ausência de um reflexo sobre a
sociedade, pois ali mesmo se estabelece outra dentro dessa maior. Isto é, esta
camada de povos é moldada pelo local onde eles estão, em decorrência do pensamento
ideológico de exclusão. Por isso, a narrativa percorre uma trajetória ainda
retilínea de apresentar o próprio recinto, os tipos de movimentações dos
corpos, as novas crenças estabelecidas e substituídas para o novo tipo de
convívio, os códigos morais de conduta e as divisões do solo que estratificam
posições.
Nesse sentido, a leitura beckettiana da vida pode parecer
desordenada, talvez pela aparente complexidade de sentido a serem encontrados
ali, mas tem uma organização guiando o leitor para a apreensão dessa
experiência. Tarefa essa cabível ao narrador, que, quando harmoniza as linhas
da prosa, promove a despovoação através dos vários vícios de linguagem e
reiterações morfossintáticas tão caras na vasta obra do autor.
“Que eles se aproximem ainda um pouco até poder se tocar e
trocar sem que parem um olhar. Se eles se reconhecem não parece. O que quer que
busquem não é isso.” (p. 20)
O trecho acima é de um possível encontro entre um casal
disperso na multidão e é um vislumbre do afloramento de novos traços humanos
após a permanência no cilindro; a experiência anterior é afastada, mas traços
biológicos ainda se desenrolam no cilindro de maneira transmutada. Já não são
mais marido e esposa, mas sim homem e mulher.
Repleta de figuras metafóricas, a incerteza do mundo no
decorrer das catástrofes do século XX passa a ser questionada por meio da livre
presença de corpos, diferentemente do que se esperaria para o teor político
sugerido pelo texto (quando se pensa que esse grupo está em um campo de
extermínio, por exemplo).
Pensar, então, essa novela em paralelo ao teatro do autor
requer a sensibilidade de admirar as modulações provocadas pela instância
narrativa. É certo que os despovoados se movimentam de maneira bastante performática
e dramática, todavia entre eles existe esse narrador usando o espaço para
chegar aos personagens expiados. Por esse motivo, a tarefa de Samuel Beckett
como escritor se personaliza e se atualiza, na medida que ele recorre aos
artifícios da ficção para conceber os espólios de seu século, sem ignorar sua
trajetória artística anterior; ele carrega suas características do palco como
herança e as atualiza/ exercita em outra linguagem.
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“O olho regressará aos lugares de suas traições. Afastado há
séculos de onde gelam as lágrimas. Livre mais um instante de vertê-las quente.”
(p.48-49) De alguma forma, o narrador de Beckett se sente estimulado pela
experiência de regressar ao passado, e tenta materializar isso de outra maneira
em alguns dos seus títulos finais anos antes de sua morte, em 1989.
Com a publicação de
Mal visto mal dito (do francês,
Mal
vut mal dit), o escritor coloca na sua escrita um foco afinco para o local
pessoal do homem e a encenação da sua subjetividade mental. Não mais um grupo coletivo
e a movimentação física de uma dor moderna para o seu tempo. Agora, uma dor
individual sucumbida pela subjetividade e tangida à universalidade das relações
mundanas.
O homem é substituído, pois, pela mulher: a novela parte de
um entrelaçamento com uma figura feminina vislumbrada em vários cenários, e em
perspectivas dissonantes. Ao deslocar-se em diferentes momentos junto a idosa,
o narrador nos aproxima de alguém despojado em um leito qualquer, sabemos, na
iminência de uma morte esperada. É uma simulação mais previsível da rememoração
ressurgida nos dias finais de vida, ao tecer os anacronismos de sentimentos remotos
que vão e voltam no presente sem esperanças.
No entanto, as escolhas linguísticas de Beckett permanecem
interessantes, pois se particularizam no enredo. Ainda que estejamos falando de
uma novela, a opção de um texto seccionado por parágrafos isolados e com
períodos curtos reverbera um pouco da infelicidade daquela mulher que está
ilhada, tendo apenas como subterfúgio a memória. O uso das interrogações e
repetições lexicais, por exemplo, impressionam pela qualidade da inclinação da
história em tentar integrar-se com o processo de entendimento da própria
protagonista sobre seu passado. Assim, um dos efeitos das pausas breves e da
estrutura fracionada, em soma com as constantes metáforas, requer um
reconhecimento mais atento para a superfície da linguagem beckettiana — ou até
mesmo a reeleitura.
Existe aí então, uma estratégia de recuperar um passado que
não foi totalmente visto, em vias de alertar-se sobre um amanhã no qual a
própria pode ser esquecida se não fizer esse trabalho por si mesma. Essa busca,
tanto sinalizada nas entrelinhas pelo narrador, desloca a prosa do escritor
irlandês outra vez para a influência de seu estilo teatral.
O jogo de descrições se aproxima de uma dramaturgia mais
explícita no texto, tanto é que os próprios movimentos da personagem de colher
vestígios do seu passado se assemelham a uma encenação, como se não fosse
possível ir até o ontem sem realizar uma (nova) interpretação. Pela própria
simbologia de cores e sombras que o texto sugere, nos aproximamos vigorosamente
da vida teatralizante de Beckett, em comparação com a história anterior, sem
nos distanciarmos de uma prosa como a forma requer.
De feitio notório, essa novela contém mais incógnitas e
dúvidas entre as duas selecionadas, pois o seu movimento de dispersão pode
provocar questionamentos como própria emoção a ser colocada na literatura. Se
sabe pouco, se imagina muito. E cada avanço requer um regresso. Só depois é que
podemos interpretar um pouco do autor, na compreensão do porquê o ver ser
precedente do dito; do primeiro indo ao passado para contornar o presente. Se o
visto do vivido se anula, o modo do dizer não se clareia para o indivíduo. Mas
os dois precisam ser conjugados mutuamente pela humanidade mesmo quando forem
defeituosos (ou mal-feitos!).
Tendo aberto os olhos, aquela mulher se torna um pouco de
nós pela correspondência de seu padecimento com o nosso, e nós, como leitores, integramo-nos
um pouco a ela pelo exercício de revisitar sua vida em abstração. Eis aonde
chegamos, dirigidos pelo narrador: “Aqui um grande salto no pouco que resta de
futuro a fim de que sem mais tardar se esvazie esse balãozinho.” (p. 66)
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Lidas em conjunto, as duas novelas podem parecer, a priori,
distintas e isentas de qualquer encadeamento ficcional — e de fato, elas são. A
aproximação permitida pela experiência da leitura, no entanto, penetra a
intimidade que o escritor cativou para capturar o espírito da modernidade e/ ou
uma pretensa subjetividade da vida, também universal.
De natureza igual aos corpos em movimento buscando
significações da condição humana nesses dois trabalhos, pode estar nosso
contato com elas. A leitura nem sempre parece ser fácil ou se desenrola em um
primeiro momento, e requer uma progressividade do leitor em se tornar sábio
quando retorna ao texto, pois sabe que é possível (e preciso) estar perdido.
Porventura, é esse o já conhecido direcionamento de Samuel Beckett: “Tente
novamente. Falhe novamente. Falhe melhor.” Você se engrandece quando percebe
que, sem simplismo, são o medo e a falha as fases legítimas para lidar com o
texto literário.
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O despovoador /
Mal visto mal ditoSamuel Beckett
Eloisa Araújo Ribeiro (Trad.)
Martins Fontes, 2008
68 p.
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