Por Gabriella Kelmer
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Virginia Woolf. Foto: Man Ray |
No mês de junho deste ano, a Companhia das Letras publicou, sob o selo
da Penguin Companhia, uma nova versão do quinto romance de Virginia Woolf, To
the lighthouse, lançado em maio de 1927. A nova
tradução, de Paulo Henriques Britto, recebeu o título de Passeio ao farol,
escolha que, perfeitamente compreensível, elimina uma das possibilidades do
título em inglês (que poderia ser dedicado ao farol, além de tratar da ida até
ele). Neste ponto, no entanto, encerram-se todas as nossas considerações
tradutórias. Ao romance.
Elaborado a partir de um processo de criação que sabidamente, conforme
as correspondências da escritora, buscava, na ficção, algo de sua própria infância
e da imagem de seus pais, a narrativa centra-se na família Ramsay, que viaja à
ilha de Skye, no arquipélago escocês das Hébridas, durante dois verões, separados
por dez anos. A narrativa é dividida em três partes: “A
janela”, “O tempo passa” e “O farol”. O verão primeiro e o posterior retorno à
ilha são separados, também na estrutura romanesca, pelo interregno do tempo.
Antes do enredo do romance, é preciso apontar a adoção, ao longo da obra,
de estratégias e temáticas caras à Virginia Woolf: a atenção ao cotidiano, a
partir do qual se descortina o momentâneo e o persistente, o desprezível e o fundamental,
assomando-se impressões de impactos diversos na consciência de suas personagens;
a incessante e implacável marcha do tempo à qual estão todos submetidos, a cada
instante; a constituição de sucessivos fluxos de consciência que envolvem a
exterioridade da vida em longas correntes de pensamento, a todo tempo
provocadas pelo mundo externo, pela lembrança e pelo estabelecimento de
vinculações, naquilo que Auerbach em “A meia marrom” chamou, quanto ao mesmo
romance, de “representação da consciência pluripessoal”. O foco da narrativa oscila entre as diferentes personagens, cuja
exterioridade é, muitas vezes, apreendida por uma outra consciência (ainda que
nem sempre seja possível dizer, com um grau de absoluta certeza, a quem pertence
determinada impressão).
Essa elaboração,
que enovela tão magistralmente as subjetividades das personagens, nomeadamente
os Ramsay e seus convidados, é efetivada por uma narração em terceira pessoa,
cuja voz se impõe, para além da exploração das consciências ficcionais, em
momentos pontuais do romance: principalmente nos verbos de dizer e na narração
de momentos em que as personagens se ausentam. Há uso consistente de discurso
indireto livre, assim como longos períodos, que adotam subordinações a perder
de vista, havendo, em algumas instâncias, a necessidade da retomada de um
sujeito já mencionado e desde então muito distante. A preocupação com o ritmo,
de disposição quase lírica, é perceptível. O efeito obtido, amplamente
explorado nas mais eminentes leituras do romance, é de uma escrita que emula a
consciência, em seus volteios e digressões, mas também a supera, em
complexidade e estética, pelo uso de uma linguagem que se demora, inevitável e estilisticamente,
em cada consideração.
“(...) Lá estava
ela a sua frente — a vida. A vida: ela pensava mas não concluía o pensamento.
Ela encarava a vida, pois tinha uma percepção nítida dela ali, uma coisa real,
uma coisa íntima, que ela não compartilhava nem com os filhos nem com o marido.
Uma espécie de transação havia entre elas duas, em que ela ficava de um dos
lados e a vida ficava do outro, e ela estava sempre tentando levar a melhor,
enquanto a vida fazia o mesmo; e às vezes as duas abriam uma trégua (quando ela
estava a sós); ocorriam, ela relembrou, grandes cenas de reconciliação; de modo
geral, porém, por estranho que fosse, ela era obrigada a reconhecer que para
ela essa coisa que ela chamava de vida era terrível, hostil, pronta para atacar
se tivesse a menor oportunidade. Havia os problemas eternos: o sofrimento; a
morte; a miséria. Havia sempre uma mulher morrendo de câncer, mesmo ali. E no
entanto ela dissera a todas aquelas crianças: vocês vão passar por tudo isso. A
oito pessoas ela dissera isso, implacável (e a conta do conserto da estufa
seria de cinquenta libras). Por esse motivo, sabendo o que elas teriam pela
frente — o amor e a ambição, e a infelicidade de se ver a sós num lugar
inóspito —, muitas vezes vinha-lhe este pensamento: por que elas têm de crescer
e perder isso tudo? (...)” (WOOLF, 2023, p. 98-99).
Frente a tal composição, o enredo da narrativa está, na maior parte do
tempo, apenas na superfície. A primeira parte do romance, “A janela”, tem como
ponto de partida o desejo do caçula dos oito filhos da família, James, de ir
visitar o farol do outro lado da ilha, bem como a consequente garantia — que
efetivamente inicia a narração — de sua mãe, a sra. Ramsay,
de que eles poderão ir até lá no dia seguinte, se o tempo for bom. O pai, o sr.
Ramsay, e um de seus colegas, Charles Tansley, discordam veementemente da
possibilidade, devido aos rumos aparentes do clima, sem levarem em conta os
sentimentos da criança. A narração
fia-se a partir daí, constituindo as consciências de membros da família, mas
também de outras personagens — como a pintora Lily Briscoe e o botânico William
Bankes, convidados dos Ramsay — que orbitam a janela onde se senta a sra. Ramsay e o filho. A mãe tricota uma meia e conta histórias para
diminuir a decepção do menino pelo passeio improvável ao farol.
Do entardecer, desde o momento fatídico em que as esperanças de James
são encorajadas e logo espezinhadas, até o fim da noite, quando a sra. Ramsay e seu marido se reconciliam depois do desentendimento quanto
ao filho, a primeira parte do romance é constituída por dezenove capítulos. Neles, situam-se reflexões — entrelaçadas aos
acontecimentos externos à medida que eles motivam as oscilações da vida
interior — nas quais figuram, pelas vias da memória, dos julgamentos, dos
impasses existenciais, alguns dos temas centrais ao romance: as diferentes
buscas empreendidas para obtenção de algum sentido à vida, a inevitabilidade do
tempo, as agruras do fazer artístico, as demandas exaustivas impostas às
mulheres. A sra. Ramsay, também, a quem o leitor
acompanha por muitos capítulos da primeira parte, é um tema eleito por todas as
personagens, que a admiram, questionam e definem, tentando compreender sua
beleza e magnetismo, sua autoridade e doação ao outro. Sua presença nunca passa
despercebida; ela e o farol são irmanados em muitos aspectos.
A segunda parte,
“O tempo passa”, é mais curta, com dez capítulos. No momento do romance em que fica mais evidente
a separação entre narrador e personagens, são as forças da natureza — a
insistência dos ventos, a escuridão da noite, a luz do sol — que passam a
ocupar a casa na ausência de seus visitantes costumeiros. Esse período, em que “ares errantes, a vanguarda de grandes
exércitos, irromperam casa adentro” (WOOLF, 2023, p. 181), são os dez anos de
interlúdio entre a ida frustrada ao farol e o retorno da família, que tomam
forma, no romance, no desgaste dos tapetes, no descolamento de uma tábua, no
mofo que se impõe aos livros. Há, paralelamente a esses acontecimentos, a
menção a indivíduos que transitam do lado de fora, na paisagem deslumbrante do
litoral, e buscam uma ordem que possa dar sentido ao mundo.
O tempo passa
para as coisas, modificando-as, e também para a família, cujo paradeiro aparece
como digressões entre parênteses, que anunciam, principalmente, as tragédias
pessoais, como a morte da sra. Ramsay
e de dois de seus filhos — Prue, que morre em decorrência de uma complicação no
parto, e Andrew, morto como combatente da 1ª Guerra Mundial. O romance sugere, nesse ponto, nas perdas narradas em poucas linhas,
sem precisar enunciá-lo, a aleatoriedade dos acontecimentos da vida, sua
crueldade incompreensível, que é a razão da busca efetivada por aqueles que
olham a natureza e tentam encontrar lógica nos acontecimentos (deve-se levar em
conta, nessa leitura, os efeitos da guerra). Prue, que merecia ser feliz,
diziam todos, não é recompensada com a felicidade; a Andrew, matemático brilhante,
não é ofertada a chance de exercer sua inteligência; a sra. Ramsay, que
desejava profundamente a felicidade dos filhos, e temia que fossem infelizes,
culpando-se em alguma medida por lhes ter imposto a vida, é obrigada a
deixá-los à própria sorte, sem nenhuma informação do destino que os espera.
Essa seção da
obra constitui uma passagem de tempo tão bonita quanto desoladora, pela solidão
das coisas na ausência de vida, pelo fim da vida no atrito com o mundo.
“A casa estava
abandonada; a casa estava deserta. Estava abandonada como uma concha largada
numa duna a encher-se de grãos de sal seco, agora que a vida a abandonara. A
longa noite parecia ter se instaurado; os ares frívolos, a fuçar, os hálitos
úmidos, a titubear, pareciam ter triunfado. A caçarola havia enferrujado, o
capacho estava podre. Sapos haviam se intrometido na casa. À toa, a esmo, o
xale pendurado oscilava de um lado para o outro. Um cardo brotara entre os
ladrilhos da despensa. As andorinhas fizeram um ninho na sala de visita; o
assoalho estava cheio de palha; o reboco desabava em grandes placas; os caibros
ficaram expostos; os ratos levavam uma e outra coisa para roer atrás dos
lambris. Borboletas irrompiam das crisálidas e levavam suas vidas a bater de
leve na vidraça. Papoulas semeavam-se entre as dálias; o capim alto ondulava ao
vento no gramado; alcachofras gigantescas destacavam-se em meio às rosas; um
cravo de bordas coloridas florescia entre os repolhos; e o discreto tamborilar
de uma erva na janela havia se transformado, nas noites de inverno, num rufar
das árvores volumosas e das urzes espinhosas que pintavam de verde toda a sala
no verão.” (WOOLF, 2023, p. 192-193.)
A terceira parte do romance, que leva o título de “Ao farol”, constitui
um retorno — depois das perdas — à casa e à ilha. Além
do sr. Ramsay e de seus filhos, hospeda-se no imóvel também a pintora Lily
Briscoe, que deixara um quadro incompleto desde a última vez em que estivera no
local. A ação se centra, nos treze capítulos, na ida do sr. Ramsay e dos dois
filhos mais novos, Cam e James, ao farol, bem como na tentativa de Lily, que os
observa do jardim, de terminar sua pintura. São estas últimas três personagens — os dois jovens e a artista — que
monopolizam os fluxos de consciência. Lily reflete
sobre a ausência tangível da sra. Ramsay; os adolescentes sobre sua pouca
disposição a fazerem o passeio. Todos eles têm em comum um descompasso com o
sr. Ramsay, patriarca da família, por seu egocentrismo e sua demanda
desavergonhada por atenção, características atribuídas a ele desde suas
interações com a sra. Ramsay. No entanto, ao fim do romance, descobrem por ele,
todos, à distância ou no espaço confinado de um barco, um súbito entendimento
ou uma compaixão tardia. Lily termina sua pintura; James chega, enfim, ao
farol.
Constitui-se,
assim, como soma desses elementos, uma criação romanesca em que as palavras já
não podem mais alcançar a essência; em que as personagens, descritas entre si, buscam
a compreensão do outro e obtêm, antes, a indefinição e a alteridade; em que a
realidade literária, conforme se apresenta aos sujeitos ficcionais, carece de
um sentido unificador da vida que é de todo inalcançável. Nesse contexto, o
enfoque é dado à singularidade do momento vivido, seja ele de lampejo, melancolia,
enternecimento, contemplação. O romance elabora singular e habilmente os
humores, as expectativas, as contradições (como detestar alguém que
repentinamente se humaniza e nos enternece), bem como o peso da existência que,
sem reconhecer para si qualquer explicação, perscruta o seu fim. A arte é
essencial à captura dessas idiossincrasias, dessas vicissitudes, o que a
narrativa aponta claramente na pintura de Lily Briscoe, que resgata
simultaneamente a presença e a ausência da sra. Ramsay à janela, e que também
pode ser atribuído à elaboração da própria obra, que introduz, vivamente, os universos
subjetivos de seus sujeitos ficcionais.
Por todos esses
fatores, é sempre recomendada a leitura deste romance, dos mais inesquecíveis que
já li, e sempre bem-vindas suas boas traduções.
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Passeio ao farol
Virginia Woolf
Paulo Henriques Britto (Trad.)
Penguin/ Companhia das Letras
256p.
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