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Andrzej Kuśniewicz. Foto: Czesław Czapliński |
No dia 28 de junho de 1914, o
arquiduque Franz Ferdinand morreu e levou para o túmulo o longo século XIX,
aquele nascido com as luzes da tomada da Bastilha. O atentado em Sarajevo foi a
centelha para o pavio ideal acender as fogueiras da Primeira Guerra Mundial,
conflito que assombrou o Velho Mundo até materializar sua face, suicida,
cadavérica e inauguradora de metamorfoses brutais.
Citaremos Cesare Pavese, a morte
virá e terá seus olhos, podemos citar mil emblemas, mas a consciência do fim
expressa na bomba de Gavrilo Princip enterrou um brilhante mal-estar que deu à
Europa joias banhadas em ouro austro-húngaro, águia bicéfala que desde a sua
decadência ofereceu esplendores sem precedentes, legados revolucionários
engendrados em salões, cafés e numa Viena que naquelas horas pressentiu o
desfecho trágico de uma utopia de nações, babeis e glórias culturais jamais
reeditadas. Ainda ficou a memória e as criações de homens ilustres. Zweig,
Wittgenstein, Schonberg, Hofmannsthal, Rilke, Roth, Musil, Schnitzler, Freud,
Kafka, Mahler, Klimt e um longo etecétera capaz de encher páginas e páginas de
admiração. Eles e a cripta dos capuchinhos, um símbolo do passado que não
voltaria.
O atentado matinal alertou e em
1970 tornou-se o ardil perfeito para que Andrzej Kuśniewicz, escritor a altura
dos maiores, bordasse um romance baseado na simultaneidade, na nostalgia e numa
amarga sensação de adeus e condenação. No entanto,
O rei das duas Sicílias
se concentra em um fato fictício ocorrido apenas um mês após o atestado de
óbito: o assassinato da jovem cigana Marika Huban numa miserável balsa em
Fehértemplom, cidade onde, enquanto aguarda a suprema mobilização geral, aloja
o 12º regimento de ulanos sicilianos, corpo pretérito que se refere a quando o
Império, do qual Berlanga tanto zombou, ainda tinha extensas possessões na
Península Itálica. Em 1914, a mágica Trieste permaneceu. A situação mudou e um
dos homens que espera o primeiro tiro de canhão é um jovem de boa família, Emil
R., um aspirante a poeta, uma mente perversa que bebe os ventos por sua irmã
Elizabeth. Emil foi concebido quase por engano, por um tesão do pai, que após
se excitar com uma camareira gerou uma nova prole no mesmo quarto de hotel onde
em 1913, suspeito de espionagem, Alfred Redl se suicidaria. As coincidências
não existem. Emil tem algumas cartas ruins, marcadas numa mesa onde o
romancista exerce um poder voraz que hipnotiza o leitor com um ritmo que poucos
livros possuem.
Quais são?
Elas podem ser sentidas na rua,
reproduzidas em luzes e sombras normais que conduzem a vozes públicas e
privadas. A família como primeira pedra de toque, com a moderação e o
savoir-faire
que resultavam num quarto dos fundos sujo, com um ar pútrido e viciado por não
limpar os quartos mentais. Talvez por isso tenha surgido Freud, porque a
religião, segundo aspecto característico daquela Áustria imortal, não servia
para acalmar os tormentos incapazes de subjugar costumes arraigados e absurdos.
O sexo? Sim. Sexo como pulsão de morte, sexo como fim de festa em bordel
reservado aos mais altos graus marciais, ilustre e triste, como perdedor,
estandarte de um país que contemplava seus soldados da sacada ou juntava as
armas com a sensação de cumprir de um dever soberano. Poderíamos citar também a
poesia e a cultura, vias de fuga insuficientes quando a mente está prisioneira
de um magma compacto regido pela mesma figura desde 1848, Francisco José e seu
reinado eterno, áurea e lúgubre coroa, obviamente, reiteramos, de duas cabeças.
Mas o protagonista é Emil e o dia
da explosão. 28 de junho de 1914. O narrador entende que para chegar a um ponto
é preciso parar em várias estações para obter coerência. É por isso que os
resquícios da existência de Emil, na terceira pessoa e em seu diário pessoal,
expressam as causas da consequência, a ácida espada que crava sua ponta aos
poucos para ferir o homem que a empunha, um jovem que, por de graça
novelística, se ergue como um estilete de ponta e final antecipado do concurso
que selará a tumba austro-húngara e mitificará sua grandeza.
Este homem tem, como é compreensível,
amigos no regimento, seres humanos heterogêneos com percursos simbólicos que
convergiram naquela cidade de nome impronunciável que condensa em si toda a
representação de um mundo. Esses indivíduos falam e em suas palavras brota uma
nostalgia insana carregada de sabedoria e reflexões poéticas, mas verdadeiras,
como quando comentam, em decorrência do assassinato que gira a história, a
transcendência de algumas memórias vitais aparentemente insignificantes. Um
cachorro cercado por moscas em um milharal. O hotel Adrianopol de
Crime e castigo.
Dostoiévski e Nietzsche para emarar o mau cheiro irrespirável, o espinho
cravado impossível de arrancar.
Há também um comissário que deve
representar o poder e cumprir suas ordens. A dupla moral surge outra vez, a
necessidade contra a razão de Estado, a luz contra a escuridão. A investigação
de um crime é típica do gênero
noir. Mesmo assim, alguns textos
ultrapassam as convenções e voam mais longe ao conseguir liquidar o banal e
transformá-lo em substância transversal, uma pluralidade narrativa que se torna
um afresco capaz de abarcar em suas páginas todo o declínio de uma época. Pobre
cigana linda. Pobre e belo Império. Padres e rufiões atrás das grades. Soldados
em liberdade.
Quando os oficiais embarcam no
vagão que reduz o seu destino ao de marionetas comandadas pelos superiores, a
melodia sinfónica concluirá num duplo sentido, histórico e literário. Guardaremos
o livro na estante, escreveremos essa crítica e fecharemos com uma palavra que
raramente usamos, apenas em ocasiões especiais. Obra-prima.
* Este texto é a tradução livre de Visiones centroeuropeas (I): El rey de las Dos Sicilias, de Andrzej
Kuśniewicz e foi publicado em Revista de Letras.
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