Por Guilherme França
|
Conceição Evaristo. Foto: Lucas Seixas. |
Antes de justificar o pleonasmo do
título, cabe explicá-lo ao leitor. Pois bem. Existem livros que frequentemente
constam na categoria de obras denominadas realistas, entretanto, embora alguns
acadêmicos tragam consigo uma lista de características objetivas que tornam uma
obra realista ou não, sou daqueles que sempre compreendeu o núcleo essencial do
realismo de uma forma mais pura e perceptível, ou seja, como aquilo que
descreve a realidade. Do contrário, no caso de uma obra possuir todos os
elementos objetivos/formais do realismo, mas nela existir pouco ou nada de
efetivamente real, é de se questionar se ela pode figurar ao lado de obras que
o fazem com tanta maestria.
Alguém poderia questionar: mas se
uma obra contém os elementos formais do realismo, como não será realista? Bom,
podemos pensar na obra (e agora fazendo uso da tal lista dos acadêmicos) em que
o autor traga uma descrição minuciosa dos cenários, mas estes cenários são
inexistentes na maior parte do mundo; uma análise da psique dos personagens,
mas todos possuem uma superficialidade existencial; diálogos sobre elementos do
cotidiano, mas inadequados para o contexto social ou idade dos personagens, e
assim por diante. Logo, a meu ver, cumprir o
checklist do realismo não
torna uma obra, por si só, realista.
Dito isto, fato é que mesmo dentre
as obras que podem ser consideradas pertencentes ao movimento realista, pois
cumprem os requisitos formais e também descrevem uma dada realidade, existem
aquelas que tocam o leitor de uma maneira ainda mais profunda, pois aproxima-o
do cotidiano narrado de uma tal forma que lhe faz reconhecer, naquela obra,
elementos que integram a sua própria vida. São estas obras que enquadro numa
simbólica “subcategoria” do realismo, que ouso criar neste momento: o realismo
real. Um realismo mais factível do que o comum.
E nesta subcategoria, caso
existisse, certamente estaria o livro
Olhos D'água, uma antologia de
contos da autora mineira Conceição Evaristo (que tem uma história de vida
interessantíssima e inspiradora), publicados desde a década de 1990 na série
Cadernos Negros, que reúne publicações feitas por autores afro-brasileiros e é
organizada pelo Grupo Quilombhoje. Em seus contos, a autora traz cenários,
contextos, diálogos e acontecimentos vivenciados diariamente em qualquer canto do
país.
Os temas variam a cada conto, mas
sempre demonstram a dificuldade enfrentada pelas pessoas negras, pobres e
moradoras da periferia em diferentes aspectos de sua vida, seja no trabalho, no
casamento, no sexo, na maternidade, na infância, na relação com a polícia, com
a prostituição, com o tráfico de drogas etc. Para qualquer leitor que aprecie o
tom verídico das obras literárias, os temas abordados em
Olhos D’água já
seriam um oásis de reflexão — ou revolta — acerca de muitos aspectos
sociológicos já conhecidos, mas tratados com superficialidade.
No entanto, a autora vai além, e
consegue a proeza de utilizar uma linguagem coloquial sem “forçar a barra” ou
tornar as conversas entre os personagens demasiadamente literárias. São
diálogos vivos, estruturados por alguém que demonstra conhecer o jeito do povo
que retrata e refletir sobre as suas angústias. De outro lado, a veracidade das
palavras utilizadas cobra um preço do leitor, que em alguns momentos se vê
diante de narrativas de embrulhar o estômago, como a prostituição infantil,
tratada com um vocabulário marcante e sem eufemismos.
Quanto aos personagens, recordo de
um trecho presente em
Os Miseráveis, de Victor Hugo, no qual o narrador
compara o sofrimento de um homem, de uma mulher e de uma criança, os colocando
em uma escala de comoção, sendo a miséria da criança a mais comovente. Nos
contos de Conceição, a escala de Victor Hugo parece se aplicar, uma vez que a
maioria dos contos retratam o sofrimento de mulheres ou crianças. Mulheres que
trabalham incansavelmente para sustentar os filhos sem nenhum apoio e lutando
contra situações degradantes, ou aquelas que não têm a oportunidade de
descobrir o amor ou a maternidade de uma forma pura e no momento adequado. Há
também as crianças, que sofrem com abusos físicos e psicológicos, com a fome,
com as drogas, e sobretudo com a falta de esperança diante da miséria que as
cercam.
Os trechos abaixo dão um exemplo
da forma como as crianças não podem usufruir de sua infância no contexto
vivenciado nas periferias, causando invariavelmente um incômodo nos leitores
mais críticos ou contemplativos:
“E o filho dela com Davenga, que
caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido.
O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também” (Evaristo,
2023, p. 29)
“Um dia, aos treze anos, a cama do gozo foi arrumada em pleno terreno baldio. A
lua espiava no céu denunciando com a sua luz um corpo confuso de uma quase
menina, de uma quase mulher” (Evaristo, 2023, p. 60)
“Afinal meu irmão já não era tão
inocente. Estava com onze anos, eu tinha doze. Ele já sabia o alcance de suas
palavras. Sabia do alcance de falas como aquelas. As palavras, às vezes, feriam
segredos e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia” (Evaristo,
2023, p. 103)
Sendo assim, para além de todas as
misérias vividas pelos personagens adultos, as narrativas que envolvem meninos
e meninas em situação de vulnerabilidade chocam, certamente de forma
proposital, ainda mais pelo palavreado utilizado pela autora, que não poupa o
leitor dos termos mais abjetos para descrever, por exemplo, uma cena de
violência sexual.
Certo é que as aparentes
estratégias de escrita usadas por Conceição Evaristo atingem o imaginário de
quem lê Olhos D’água e coloca o seu público, ainda que por alguns instantes,
no “realismo real” vivenciado nas vielas e nos morros país afora, locais onde
uma série de sabotagens institucionais e sociais contribuem para uma diminuição
revoltante da dignidade humana daqueles que ali (sobre)vivem.
No decorrer da leitura é comum
observar trechos em que o personagem se vê cansado da miséria, mas sem saber
como livrar-se dela — ao menos de uma forma lícita. E a autora, quem sabe no
seu lado crítico da obra, traz passagens como esta, na qual é impossível não
sentir a tal realidade entre as linhas:
“Queria uma vida que valesse a
pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Via os seus
trabalharem e acumularem miséria no dia a dia. [...] O moço via mulheres,
homens e até crianças, ainda meio adormecidos, saírem para o trabalho e
voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas” (Evaristo, 2023, pp.
73-74).
Por tudo isto, Olhos D’água
é uma obra e tanto para todos aqueles que valorizam um dos papéis intrínsecos
do realismo: a crítica social, seja ela explícita ou velada. Pois um livro traz
consigo, muitas vezes, a missão de dizer mais do que realmente diz. Por trás de
cada texto pode estar o início de uma provocação ou inquietação. E Conceição
Evaristo, descrevendo a realidade à sua forma, nos inquieta. E quem sabe este
mal-estar advindo de uma leitura possa nos fazer atuar no mundo de uma forma
diferente. Talvez esta deva ser, dentre tantas outras, a finalidade da
literatura.
______
Olhos d’água
Conceição Evaristo
Pallas
116 p.
Comentários