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Konstantinos Kaváfis. Foto: Arquivo Fundação Onassis. |
Nos 160 anos do seu nascimento e
90 anos da sua morte, a figura do escritor Konstantinos Kaváfis (Alexandria,
Egito, 1863-idem, 1933) vem ganhando relevância por uma obra que condensa
individualidade, reflexão filosófica e o homoerotismo. Como Franz Kafka ou
Fernando Pessoa, o alexandrino desenvolveu sua poesia quase anônimo e sem ser
reconhecido em vida. Chegou a publicar em revistas como
Nea Zoí e
Grámmata,
bem como em alguns zines. Seu primeiro livro apareceu quando ele já tinha mais
de quarenta anos (1904) e consistia em apenas catorze poemas; a este sucedeu
uma segunda edição à qual se acrescentaram mais sete peças, em 1910.
1
Membro de uma família
economicamente desfavorecida, o caçula de seis filhos ganhava o pão com um
modesto cargo no Departamento de Águas do Ministério de Obras Públicas. Apesar
de ter tido uma educação privilegiada — falava italiano, francês e inglês
perfeitamente —, não alcançou um destino cosmopolita. Sempre manteve seu ideal
estético elevado, mas seu trabalho não foi reconhecido em vida. Ele confessa
isso de alguma maneira em “A satrapia”: “Mas que desgraça! Embora sejas feito/
para as belas e grandes obras, sempre/ esse injusto destino que é o teu/ te
nega o estímulo e triunfo./ Estorvam-te esses vis costumes/ a mesquinhez e a
indiferença.”*
Como Henry James ou André Gide, o
século XIX o apresentou a um mundo em apoteose econômica logo interrompido pela
intervenção britânica no Egito. Embora seja verdade que o século XX parecia
promissor, a guerra imperialista de 1914 mudou tudo. Kaváfis contemplou o
desaparecimento de um mundo que não voltaria mais, e em sua obra refletiu tal
perda:
A imagem do meu corpo de jovem,
desde as nove horas quando acendi
o candeeiro,
chegou e me encontrou, e me evocou
fechadas alcovas perfumadas
e o prazer já passado — que ousado
prazer!
E diante dos olhos me pôs também
ruas que agora já não reconheço,
centros de diversão que agora estão
fechados
e teatros e cafés que já se foram.
— escreveu no seu poema “Desde as
nove”, no qual conclui: “Doze e meia. Como passou o tempo./ Doze e meia. Como
passaram os anos.”
Cuidadosamente elaborada, a obra
de Konstantinos Kaváfis divide-se em várias temáticas: história, mitologia
grega, reflexão filosófica e sensualidade homoerótica. Em alguns de seus poemas
está presente a angústia do homem moderno diante das imposições da nova era. É
notória a semelhança com o lisboeta Fernando Pessoa, assente na imobilidade, na
solidão e no fechamento, segundo o seu heterônimo, Alberto Caeiro: “Não tenho
ambições nem desejo./ Ser poeta não é uma ambição minha./ É a minha maneira de
estar sozinho.”
O idealismo alimenta esses poetas
e a falta de comunicação parece ser o denominador comum. Poemas como “Muros” (em
que Kaváfis afirma: “E sem saber fiquei fechado, sem vista e sem portal.”) ou “A
cidade”, enfatizam a desolação e a angústia decorrentes da solidão:
Novo lugar não vais achar, nem achar novos
mares.
A cidade vai-te seguir. Ruas vais
percorrer,
serão as mesmas, e nos mesmos
bairros hás-de viver,
nas mesmas casas ficará de neve o
teu cabelo.
Hás-de ir ter sempre ao mesmo sítio,
sem qualquer apelo.
Para outro lugar não há navio ou
caminho
e estragares a vida tu neste
cantinho
é pois igual a nesse largo mundo a
dissipares.
Embora haja interpretações de que
essa destruição seja causada pela homossexualidade do poeta
2,
destaco a implicação fatalista do tema. Sua obra está enraizada em uma profunda
desolação existencial. Como nos poemas “Bênção” ou “O albatroz” de
Baudelaire, Kaváfis é inapto de viver. É a experiência de um poeta que vai se
isolando e se sente amaldiçoado. Talvez seja por isso que W. H. Auden disse: “Ao
ler qualquer um de seus poemas, tem-se a impressão de que o que se lê revela
uma pessoa com uma perspectiva única sobre o universo.”
Ante o passar do tempo e a
imposição das novidades, Konstantinos Kaváfis distancia-se daquela realidade à
qual não quer se assimilar; há quem aponte que ele foi categórico e pouco transigente.
Que talvez tivesse um trato difícil. Diante do avanço de um mundo pragmático,
ignorante, juvenil e veloz, o velho homossexual — contemplativo, educado e de
bom gosto — refugia-se na reminiscência. Em todo caso, seus únicos lugares
habitáveis eram a poesia e a erudição. Aí reside o fato de que não havia
outra cidade para ele. Sua vida estava dilacerada, não porque ele era gay, mas
porque era excepcional. Em “Trouxe à arte” que poderia ser interpretado como
sua profissão de fé, ele enfatiza: “Sento-me e devaneio./
Desejos e
sensações/
foi o que trouxe à arte —/
rostos ou feições/
apenas
entrevistos;/
de amores inconsumados,/ umas ralas lembranças./ À
arte me entrego./ Ela sabe inscrever/ a Forma na Beleza;/ e completar a vida/
quase insensivelmente,/ caldeando impressões/ e caldeando os dias.” (grifos nossos).
Kaváfis soube resumir o trauma da
transição de séculos e de épocas em um punhado de poemas. As mudanças ocorridas
o baniram, como certas sensibilidades que a estupidez do ambiente geral sufoca.
Herdeiro de Baudelaire — a quem dedica um poema —, rejeita as massas, os que
buscam a vida pedestre. Os novos tempos tornam a realidade precária, privada do
sentido da beleza. O século XX e seu pragmatismo contradizem um poeta que ama a
antiguidade grega e a inspiração. No poema “Os cavalos de Aquiles” ele volta ao
tema de ser punido com a imortalidade em um mundo em que a beleza (de Pátroclo)
é assassinada: “Que fazeis vós aí em baixo,/ entre a mísera humanidade, joguete
do fado?/ Vós, a quem não atinge a morte ou a velhice,/ as efémeras desgraças
vos atormentam. Em seus sofrimentos/ voz envolveram os humanos.”
Konstantinos Kaváfis trabalhou
durante anos seus temas poéticos; sua produção foi escassa, embora caprichada e
ponderada. É claro que ele conviveu com seus poemas antes de escrevê-los. Por
isso podemos relacionar a sua poesia com a de Pessoa ou à obra póstuma de Franz
Kafka, ambas figuras incontestáveis da primeira metade do século XX. Para o
poeta não era imperativo publicar, mesmo seus textos de crítica
literária, resenhas e ensaios eram por vezes assinados com o pseudônimo: “T”
(Teixh), alusão ao seu poema homônimo, “Muros”. Ele também era conhecido como “O
poeta da urbe”, conforme narrado por Lawrence Durrell em
O quarteto de
Alexandria (1957-1960), que provavelmente o descobriu graças a uma nota de
E. M. Forster, de 1919.
À vertente reflexiva soma-se a
tendência homoerótica e a culpa intrínseca por desfrutar de um prazer
dissoluto, como o poeta o chamava; assim podemos ver nestes versos de “Dezembro
de 1903”:
E se sobre meu amor não posso
contar —
se não falo de teus cabelos, dos
lábios, dos olhos;
teu rosto, porém, que guardo em
minha alma,
o som de tua voz que guardo em
minha mente,
os dias de Setembro que raiam em
meus sonhos,
minhas frases e palavras modelam e
colorem
em qualquer tema que eu passe, qualquer
ideia que diga.**
Seja por falta de amor, devido a solidão
ou os novos tempos, a vida de Kaváfis é continuamente malograda. Assim como no
conto “O altar dos mortos”, de Henry James, os jornais começam a se encher de
obituários de professores, irmãos e amigos falecidos. O mundo do qual o poeta
fazia parte desaparece irreversivelmente:
Vozes imaginárias e amadas
daqueles que morreram ou daqueles
que estão,
como os mortos, perdidos para nós.
Às vezes falam-nos em sonhos;
às vezes, na sua fantasia, as ouve
o pensamento.
E, com seu som, retornam por um
instante
ecos da poesia primeira da nossa
vida —
como música que, na noite, se
extingue ao longe.
Ele não apenas exibe poemas
fatalistas; também, como lição, Kaváfis escreve sua ode a Ítaca:
Quando abalares, de ida para
Ítaca,
Faz votos por que seja longa a
viagem,
Cheia de aventuras, cheia de
experiências.
E quanto aos Lestrigões, quanto
aos Ciclopes,
O irado Poséidon, não os temas,
Disso não verás nunca no caminho,
Se o teu pensar guardares alto, e
uma nobre
Emoção tocar tua mente e corpo.
[...]
Ítaca guarda sempre em tua mente.
Hás-de lá chegar, é o teu destino.
Mas a viagem, não a apresses
nunca.
Melhor será que muitos anos dure
E que já velho aportes à tua ilha
Rico do que ganhaste no caminho
Não esperando de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa bela viagem.
Sem ela não te punhas a caminho.
Não tem, porém, mais nada que te
dar.
E se a fores achar pobre, não te
enganou.
Tão sábio te tornaste, tão
experiente,
Que percebes enfim que significam
Ítacas.
Antes do isolamento, a poesia pode
responder com o refúgio da memória e o idealismo vivificante, pois se Marcel
Proust começa
À procura do tempo perdido entre o sono e a vigília, Kaváfis
entroniza sua memória sensual:
Que bem conheço este quarto.
Está agora alugado, mais o
vizinho,
a casas comerciais. Todo o prédio
se converteu
em escritórios de corretores, de
comerciantes e Sociedades.
Ah, que familiar me é este quarto!
Aqui, à porta, estava o canapé,
e, em frente dele, um tapete
turco;
ao lado, a estante, com dois jarros
amarelos.
À direita, não, em frente, um
armário de espelho.
Ao meio, a mesa onde escrevia,
e as três cadeiras de verga.
Junto à janela achava-se a cama
em que tantas vezes nos amámos.
Ainda andarão por aí esses velhos
móveis, os pobres.
Junto à janela estava a cama;
só até metade a banhava o sol do
meio-dia.
... Uma tarde, às quatro, nos
separámos
apenas por uma semana... Ai de
mim,
aquela semana fez-se perpétua.
afirma em “O sol da tarde”. Com
versos de tanta intensidade, é óbvio que uma escritora brilhante como
Marguerite Yourcenar foi cativada e impelida a traduzir o poeta para o
francês.
Segundo sua origem, Kaváfis cultivou
o grego demótico que se opunha à língua das aristocracias, o catarévussa.
Porém, mais uma vez vai no sentido de um ágape, um momento para compartilhar as
impressões finais e definidoras. Não há cálculo ou especulação, nem formas
elaboradas, nem pretensões vanguardistas. Ele chama a solidão e o amor por seus
nomes simples.
O alexandrino faz um mapa
detalhado das analogias e paralelos do ser humano com sua sensibilidade. À maneira
do heterônimo pessoano Álvaro de Campos, Kaváfis senta-se em frente à janela,
escrevendo suas impressões e, sobretudo, suas evocações ao entardecer, como se
fosse o mesmo poeta de “Tabacaria”. É surpreendente que ele e Pessoa nunca
tenham se lido. Kaváfis revela a inquietação produzida por viver em sociedades
espiritual e esteticamente uniformes. Como o radical Rimbaud, ele queria
retornar aos ideais gregos: “Lá porque destruímos as suas estátuas,/ lá porque
os expulsámos dos seus tempos,/ não quer dizer que, os deus, os matámos.”,
proclamou em “Jónia”.
A sua poesia abriga uma legião de
sujeitos exilados, cativos, velhos ou objetos palpitantes, velas ou espelhos,
que oscilam ante a beleza dos efebos. Há também vestíbulos e cafés que
“contemplam” a sucessão dos tempos. Mesmo quando menciona figuras históricas,
alude a momentos em que elas são tomadas pela angústia ou pelo declínio
pessoal. Sua erudição a esse respeito levou Marguerite Yourcenar a rotulá-lo de
poeta histórico. A sua série de epitáfios ou recordações de personagens
é vasta e faz parte de um aspecto sólido do seu
corpus poético: “Idos de
março”, “Teódoto”, “O deus abandona Antônio” ou o seu antidemagógico “Esperando
os bárbaros”.
Embora Kaváfis se sentisse preso
fora do mundo, não parece exagero relacioná-lo com Paul Celan ou Zbigniew
Herbert, que fugiram-dentro-de-si do totalitarismo, como se, sendo poetas,
enfrentassem a rejeição da república platônica. O poeta, como Rilke ou
Hölderlin, quanto mais longe estava dos prazeres vitais, mais se refugiava nos
mitos gregos.
Se buscava retornar à
magnanimidade helênica, como Wilde ou Cernuda, Kaváfis também experimentava
prazeres ilícitos, dos quais formou toda uma posição ética, mas também vital. A
homossexualidade nele não é um enfeite ou um espetáculo: por meio dela podemos
perceber uma posição existencial:
Seria uma hora da noite
ou uma e meia.
Num canto da taberna,
por trás de um tabique de madeira.
Para além de nós dois, estava o
local deserto,
mal iluminado por uma lâmpada de petróleo.
Na porta dormitava o empregado
cansado da vigília
Ninguém nos podia ver. Mas já
tanto nos tínhamos excitado,
que não éramos capazes de
precaução.
As roupas entreabriam-se — não eram
muitas,
já que ardia o divino mês de
julho.
Da carne o prazer por entre
a roupa entreaberta;
breve nudez da carne — cuja imagem
percorreu vinte e seis anos; e
agora veio
ficar neste poema.
— diz em “Veio ficar”, de 1919.
Poemas Que Sugerem culpa ou
lamento também são paródias de culpa ou do lamento, porque não esqueçamos que “o
poeta é um fingidor”. Se lemos todos os poemas como confissões, cairemos no
erro de quem confunde a voz poética com o autor. Kaváfis tinha consciência de
seu lugar entre “[nós] que rolamos pelos séculos como uma rocha destacada do
Gênesis” — como Salvador Novo o descreveu em sua “Elegia”. O que nem sempre é
uma queixa.
A linhagem de poetas da qual Kaváfis
faz parte — já apontei — é intransigente com o feio, a mesquinhez e a
mediocridade. O alexandrino ostentou a perfeição e a precisão dos termos com o
maior rigor. Vangloriava-se também da experiência “que não é para corpos
tímidos” ou, conta-nos, com fingido pesar:
Os anos da minha juventude, a
minha vida de prazer —
que claramente vejo agora o seu
sentido.
Que inúteis remorsos, que estéreis...
Mas não via o sentido nessa
altura.
Em meio à minha dissoluta vida
jovem
ia tomando forma a minha poesia,
ia-se desenhando o contorno da
minha arte.
Por isso nunca houve firmes arrependimento.
E as decisões de me dominar, de
mudar
duravam duas semanas se tanto.
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