Por Abel Posse
Hermann Broch ainda é bem desconhecido
fora do âmbito da literatura germânica. Não tem a fama que merece, mas sua
prosa se estabelece na lenta progressão das avaliações sinceras e figura como
um dos autores das maiores obras do século XX, ao lado de James Joyce e Marcel Proust.
Quando Thomas Mann leu A morte
de Virgílio, não hesitou em declarar que se tratava “do mais importante
poema em prosa escrito na língua alemã”. Estranha honestidade de um escritor
comprometido com a narrativa tradicional. Para Aldous Huxley, Broch foi a maior
revelação e comoção. O escritor britânico, observador de costumes e de seu
tempo, surpreendeu-se com o surgimento desse talento capaz de abolir as
fronteiras tradicionais do romance e passar da prosa ao drama e ao poema, como
momentos necessários e nunca antagônicos da realidade de nossas vidas. Para
Hannah Arendt, Broch seria a romancista que mais conseguiu ir mais longe na
reflexão sobre a enfermidade social de seu século.
Hermann Broch sabia que ele era
tão importante quanto Joyce e não se surpreendeu quando o PEN Clube da Áustria
recomendou o nome do escritor ao Prêmio Nobel já no final de sua vida, após o
turbilhão do nazismo. Foi Joyce, que o admirava, que em 1938, quando a Áustria
foi anexada pelos nazis, obteve o visto de resgate que lhe permitiu exilar-se
na Escócia e depois nos Estados Unidos.
O escritor alemão nasceu em 1886,
em uma das poucas grandes famílias judias aceitas pela aristocracia. Ele se
formou engenheiro e por algumas décadas apenas administrou a fábrica têxtil da
família. Convertido ao catolicismo, casou-se com Franziska von Rothermann,
quase como uma tentativa de não seguir sua vocação, suas paixões literárias (Arendt
intitulou seu ensaio sobre Broch como “O poeta relutante”).
Sua sensibilidade e talento o
aproximaram daquela Viena deliciosamente decadente, naquele Império
Austro-Húngaro condenado a perecer sob ferozes pressões. A Viena dos grandes
músicos, dos palácios austeros construídos como desafio à permanência, daqueles
cafés onde o jovem industrial conheceu Robert Musil, Franz Kafka e Rainer Maria
Rilke. Uma Viena infinita, desde o nascimento da psicanálise até a noite
interminável de seus sofisticados bordéis e kabaretten. A Viena que se
despedia do Império derrotado e onde a cultura foi a última chama da grandeza. Essa
força vital que já se afastava do materialismo e buscava um renascimento ainda
distante na desordem e nas aventuras estéticas.
A guerra de 1914-1918 significou o
ponto final, a convulsão decisiva. Broch divorciou-se e com quase quarenta anos
passou a se dedicar inteiramente à arte, aos estudos, ao mundo da noite
vienense. Viveu um romance com Milena Jesenská e conheceu uma das mais famosas femmes
fatales, a também jornalista Ea von Allesch, uma figura de rara e
extraordinária beleza. Por ela abandonou Milena, que cairia no escuro labirinto
do autor de Franz Kafka, então um desconhecido escritor do grupo de Praga. Ea
von Allesch era chamada de “a rainha do Café Central”. Também amante de Musil,
ela equivalia a uma hetaira grega, capaz da refinada cultura que os salões
daquela Viena exigiam e capaz de posar nua, ou mais, para pagar sua
independência.
Broch começou sua obra mais
conhecida por impulso dela, aquela que lhe deu fama europeia: Os sonâmbulos.
Uma trilogia excepcional onde, através de três personagens paradigmáticas,
sintetiza o declínio da Alemanha (e da Áustria) entre 1880 e 1920. É uma homenagem
tácita a Spengler e, ao mesmo tempo, uma visão inusitada da crise política
interpretada na perspectiva da cultura e da crise de valores. Os sonâmbulos,
Os Buddenbrook de Mann e O homem sem qualidades de Musil serão as
três obras em que a comunidade germânica pressentiu e descobriu os germes da
decadência que levariam ao desejo de um renascimento selvagem do nazismo e do
fascismo, como o último momento catastrófico de um único processo.
O romance com Ea von Allesch, que
era onze anos mais velha que ele, dissolveu-se em altercações contínuas. Em
1927 concluiu a trilogia em que Ea é resgatada na personagem de Ruzena.
Ao terminar sua obra, Broch
entendeu que seu grande compromisso estético estava apenas começando. Nestes
três grandes romances, o seu e os de Mann e Musil, prevalece a descrição da
decadência e o ritmo pesado da narrativa. O real e o racional excluem a
experiência poética profunda. Broch, quando já estava nos primeiros rascunhos
de seu maior romance, A morte de Virgílio, tinha certeza de que iria
muito mais longe do que seu admirado Joyce. Isso é o que escreveu em suas
cartas. Seu Virgílio seria a obra mais alta e esteticamente mais complexa do
século. A grandeza de Joyce é verbal. Os Bloom não valiam esforço semelhante. Ulysses
é de um realismo decomposto cubicamente, um quebra-cabeça magistral. Broch
teria concordado com Jorge Luis Borges, sem deixar de admirar o poeta indireto
e transversal, que era a força mais negligenciada e notável de Joyce como
escritor.
Hermann Broch lançou-se em seu
esforço culminante, libertado do encantador turbilhão erótico de Ea e unido à
Srta. Anna Herzog, uma excelente secretária com uma projeção para o tálamo.
Tudo estava preparado para a subida ao cume. Pretendia concretizar a sua visão
mais exigente: “A arte que não é capaz de reproduzir a totalidade do mundo não
é arte.” E, mais adiante, se refere ao ponto central do encontro de novas
formas expressivas numa ligação necessária com o conhecimento do novo: “Escrever
poesia significa adquirir conhecimento através da forma. Todo novo conhecimento
só pode ser acessado através de novas formas. Isso significa necessariamente o
estranhamento e o afastamento do público tal como é entendido”. (Esse distanciamento
no caso de Broch atravessa o tempo, pois sua grandeza ainda não foi de um todo compreendida).
Mas aquele monstro que ele tanto
temia, a História, destruiu seu propósito. Os nazistas invadiram sua Áustria e,
no mesmo dia do Anschluss (a anexação da Áustria ao Reich), Broch foi
detido pela Gestapo na prisão de Alt Aussee.
Ele nunca quis detalhar aqueles
quinze dias nas mãos da polícia nazista. Simplesmente chamou essa experiência
de “o Inferno” e nunca contou como conseguiu ser salvo. Escreveu uma série de
elegias que mais tarde integrariam os poemas referentes à morte em seu Virgílio.
Falou dos enforcados balançados pelo vento na prisão.
Sem dúvida, sua alta posição
econômica e social na comunidade judaica o ajudou. A intervenção de James Joyce
e possivelmente de Einstein conseguiu dar-lhe o visto salvador. Exilou-se na
Escócia, na casa de sua tradutora de inglês, Willa Muir, e depois viajou para
os Estados Unidos, abrindo-se à experiência da pobreza e da dependência. Sua
breve fama literária europeia o ajudou pouco. Os Estados Unidos lhe pareciam
uma cultura exótica, selvagem, que o ajudava, mas o deixava solitário.
No entanto, naqueles anos
ameaçados (ele acreditava que o fascismo se espalharia por toda a Europa,
Grã-Bretanha e Estados Unidos), iniciou sua maior aventura, o desafio de livrar
a literatura da decadência espiritual europeia (Proust, Joyce, Musil, Mann) e
alcançar um renascimento e uma abertura da linguagem voltada tanto para a
existência quanto para o mistério cósmico. Quis escrever na clave da grandeza
clássica de Höderlin, de Dante, da tradição homérica, de Virgílio. Após o horror
da guerra, sentia que a grande arte, “a arte em seu maior destino” (como
escreveu Hegel), poderia lançar as bases para o renascimento de uma civilização
ocidental corrompida. De alguma forma, participava da estética desesperada —
necessária — que obcecara Charles Baudelaire: a suprema vingança da arte contra
a extrema baixeza do crime histórico.
O romance, se é que se pode usar
essa palavra no caso de A morte de Virgílio, foi seu esforço decisivo
entre 1938 e o fim da guerra, em 1945. Broch não tinha mais outra atividade.
Começar um grande projeto é como entrar num claustro de cartuxos. Finalmente a
obra foi concluída e publicada nos Estados Unidos em 1945, com o apoio da
Fundação Rockefeller, da bolsa Guggenheim e do PEN club. (Em louvor dessa
incrível cultura perdida na Argentina, de editores e criadores apaixonados,
cabe lembrar que Buenos Aires foi a primeira cidade do mundo a publicar Broch
em 1946, tanto o Virgílio quanto Os sonâmbulos, em admiráveis
traduções de Aristides Gregori). O protagonista do romance é o grande poeta
romano Virgílio nas últimas dezoito horas de sua vida. A Eneida já foi concluída
e, acompanhando Augusto, ele retorna da Grécia ao porto de Brindisi. Ali, em
sua agonia, vive a desilusão da arte. Implora a seus servos e amigos que o ajudem
a queimar esta obra que o próprio Augusto já considera um “poema divino”.
Broch, o judeu exilado na pujante
barbárie estadunidense, ligou sua agonia existencial à do distante Virgílio em Brindsi.
Ele, vítima do neopaganismo nazista, buscava no paganismo de Virgílio uma
resposta para a existência, uma compreensão da ordem cósmica, capaz de
conciliar o absurdo e a crueldade com a glória da vida.
O camponês de Mântua, o poeta
próximo dos antigos deuses que moram em Virgílio, conduz o desolado Broch à
sabedoria de compreender que a morte é afogar-se nesse Éter primordial. Saber
morrer é saber voltar ao universo após o dia da vida. Sem esperanças metafísicas,
sem ameaça de julgamentos ou sentenças atrozes, nenhum perigo de renascimentos.
O escritor alemão transferiu-se
para aquele Virgílio moribundo que sente que a arte não poderá superar o plano
do humano, do acontecer; que nunca alcançará a esfera suprema do mistério do
cosmos. (A descrição de Broch da lenta entrada de Virgílio na morte constitui a
passagem mais profunda da literatura em prosa de seu século, onde atinge a
sublimidade dos três cantos finais da Comédia de Dante.)
Broch/ Virgílio avançam rumo ao
mistério, rumo ao Aberto, ao inefável; o mistério da palavra os une. Onde, como
na visão de Anaximandro, tudo é subsumido: as coisas, os homens, o sonho dos
deuses. Todos os entes aí vão-se aniquilando, no brilho do Éter, segundo a
inexorável lei do retorno. Broch/ Virgílio veem esfumar-se nesse espaço final as
naves de Augusto que chegaram a Brindisi. Sua vida e o mundo circundante se
extinguem. O passado encontra o presente. Suavemente o Ser cobre a ilusão da
vida imediata.
O Aberto, onde tudo o que é criado
retorna segundo a Lei fundamental, acolhe em seu silêncio as paixões humanas de
Broch e Virgílio. O mistério final é uma névoa iluminada, mas impenetrável,
inefável em seu centro. O tempo se recupera em serenidade antes da morte e do
fim das coisas. A arte e a poética de Broch trouxeram-lhe uma harmonia de
raízes búdicas. A arte foi, na verdade, o itinerário de uma longa iniciação.
Hermann Broch, tendo cumprido seu
destino de criador, morreu em 1951 de ataque cardíaco, morte súbita, ironia que
o impediu de corroborar para si mesmo a “extinção lenta” no Tudo que nos contou
por através de Virgílio.
* Este texto é a tradução livre de “El esteta absoluto”
publicado inicialmente aqui, em La Nacion.
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