Dor fantasma, de Rafael Gallo

Por Pedro Fernandes


Rafael Gallo. Foto: Bruno Colaço


 
A literatura brasileira em curso é bastante diversa, embora isso não corresponda com a qualidade, principalmente no romance. A razão para o problema talvez ainda precise ser observada, descrita e analisada com melhor profundidade em tempo oportuno, muito embora seja possível designar a partir de um convívio breve com os livros que nos alcançam porque conseguem encontrar um lugar fora do pequeno raio do reduto de convívio do próprio autor que o problema reside em certa atitude servil dos escritores aos ditames do mercado, muitas vezes por uma necessidade perversa da subsistência e noutras por se deixar cooptar pela dama estéril da fama. Escreve-se para leitores interessados na literatura como um eco de suas próprias inquietações ou ainda construir pequenas zonas de conforto onde possam se reconhecer positivamente fora da condição a qual estão destinados num país como o Brasil.
 
Se um dos males da diversidade é o de retardar reconhecimentos legítimos, também, como se num jogo dos erros, pode favorecer o aparecimento vez ou outra de alguma boa surpresa. Mais que isso é o romance de Rafael Gallo. Dor fantasma amplia certa vantagem do escritor entre os que lidam com a literatura de maneira ciosa e por isso mesmo pode oferecer alguma saída para o nó górdio dos modelos vigentes, porque contraria a empobrecedora lógica do leitor sensível, o golpe de misericórdia que restava para o neocapitalismo sequestrar os valores da arte tornando-a apenas produto de utilidade prática; porque não submete a criação ficcional às diretrizes desse confessionalismo respaldado pelo último Nobel e que agora converte qualquer um ao lugar da literatura sobretudo se o escrevente souber melodramatizar recursivamente suas circunstâncias; porque se afasta dos vários lugares-comuns do romance brasileiro contemporâneo e os seus temas surrados; porque não está preocupado em submeter a narrativa ao superficial didatismo; porque ainda não transforma o objeto literário em pauta das ideologias, dos identitarismos.
 
E o melhor, faz tudo isso sendo um romance educado na boa cartilha dessa forma narrativa: contar uma história perscrutando meticulosamente os acontecimentos, as atitudes, os pontos de vista, sem posicionar-se em nome dos seus próprios interesses ideológicos; contar uma história objetivamente, ignorando a chatice dos volteios, das fibrilações e das invenções poéticas, sem firulas com a linguagem, com a estrutura ou com a forma, isto é, sem essas tentativas quase sempre malogradas que ora colocam a obra num simplismo vulgar ou num pedantismo intelectual, produzindo livros que repisam a cansada tradição naturalista ou masturbações linguísticas.  
 
A narrativa de Dor fantasma está composta por quatro movimentos — coda, exposição, desenvolvimento e cadenza — que imprimem à sua organização o tratamento de um concerto, estabelecendo entre o assunto, a estrutura e a forma do romance uma unidade de sentido, mesmo que nesse caso se adultere propositalmente a sequência musical. A coda, por exemplo, é a passagem final de uma peça ou movimento; situada no plano inicial do romance, o sinal conclusivo, com as repetições antes da seção final, é substituído pelo suspensivo. A cadenza, por sua vez, a passagem de maior relevância que visa colocar em evidência os temas expressos na música por um solista, nesse caso, têm o virtuosismo do improviso ou certo aspecto triunfal adulterado pelo plano oposto, prevalecendo a gambiarra, o fracasso, o dissoluto, o triste. No plano da durée, o texto reabsorve os recursos da composição musical. O primeiro movimento possui andamento rápido e enérgico; o segundo, lento, especulativo; o terceiro, agitado, marcado por reviravoltas; e o quarto, rapidíssimo e emotivo.
 
Averiguadas com mais cuidado, essas correlações, obviamente, expandem o plano das significações desse romance que, à maneira da música, obedece a um fino rigor sem se deixar limitar por isso. Também no seu interior, isto é, no âmbito narrativo, encontramos outros elos que ao invés de simplesmente reafirmar simetrias estabelece entre um plano e outro um desacerto, outra vez proposital e não simplesmente como se alguém tocasse uma peça musical destoada da exigida naturalidade. É possível constituir assim alguns pares, como Rômulo e Franz Liszt, o célebre compositor húngaro ou Rômulo e Franz Castelo, o filho que se descobre apaixonado pelo piano e para a profissão do pai, mas à vista deste naturalmente deficiente para música. A esses dois pares podemos acrescentar um terceiro elemento, o maestro George Castelo, o pai do protagonista deste romance, que pode formar ainda um terceiro par. Esse acréscimo constituiria assim uma linhagem que parte de um Franz a outro e alcança não a equivalência mas uma degeneração entre esses dois nomes, uma vez que o Franz dos trópicos encontra-se perfidamente contaminado por uma variedade de elementos estéreis: os da própria condição biológica, os de âmbito familiar, coletivo e temporal.
 
Educado rigidamente para a música desde a infância pelo pai, Rômulo Castelo toma Franz Liszt como seu compositor-modelo. Embora aplicado ao seu ofício, reduzido aliás, à grande obsessão, ao ponto central da sua recatada vida, tal como figurado pela cadência repetitiva do metrônomo, da rotina dos dias e a grande caixa de aço que é a sua sala de estudos encravada no meio do apartamento, o virtuoso professor universitário não é o músico húngaro, ainda que seja interpelado um dos seus maiores especialistas, na iminência de ser o maior quando executar publicamente o Rondeau Fantastique, uma peça que o brasileiro sempre tem como intocável. As evidências são bem precisas: a grandiosidade atribuída a Rômulo não é porque seja o homem a altura do seu modelo. A admiração, às raias de uma idolatria cujo culto se materializa numa reprodução da tela de Henri Lehmann afixada sobre o piano no qual estuda e na recusa a tudo que seja mundano, o impedem de perceber que mesmo noutro grau, ele não é muito diferente das espécies que condena: entre a criação e a reprodução, o mundo que Rômulo acusa incapaz de deixar qualquer coisa significativa para a posteridade já funciona plenamente no simulacro que ele próprio forja diariamente para si.
 
Tudo isso não significa que o zelo, o esforço e o empenho do nosso protagonista sejam valores descartáveis. A criação, sabemos, pressupõe, uma vez alcançado o ponto do gênio, a irmanação entre este e o aprendiz por acréscimo à tradição. O problema, logo, não se encontra especificamente na adoração de Rômulo por Liszt, tampouco não é apenas o seu mundo um simulacro; no jogo de espelhos — qual o que mais tarde enfrenta no consultório médico onde busca decididamente por uma maneira de reparar sua capacidade física para o piano — o impasse é exatamente o contrário. É o mundo exterior que se converteu em simulacro de um mundo que se esvai, ao ponto de não distinguir precisamente sua própria imagem. Ou seja, qualquer leitura que se preocupe em rotular essa personagem desfigurará o próprio romance: Rômulo encontra-se circunscrito, como é caso das figuras encalacradas entre um limite e outro de um mundo em variação, entre o enfrentamento e a aceitação de valores que lhe são estranhos. No seu caso, não é uma questão de escolha entre uma conjuntura e outra, porque estamos ante alguém que estabelece uma cruzada contra o tempo vigente uma vez centrado no que constitui sentido para si. Em toda parte, noutras épocas, esses foram marginalizados. No agora, a maneira encontrada para tanto é a criminalização em nome do bem-estar da imagem condicionada pela vida virtual, jamais apenas pelas atitudes.





As circunstâncias todas contribuem para dois andamentos no funcionamento da narrativa: o primeiro de elevação trágica, quando a vida milimetricamente desenhada pelo esforço e a racionalidade é invadida por um acaso fatalista; o segundo de variação dramática à medida que um Rômulo bem-sucedido começa a ser substituído por um Rômulo subsumido por uma aversão ao mundo dominante que será tratada pelos outros ora como doença psíquica ora com parcimônia ora ainda como o material essencial para o enquadrar entre os indivíduos que precisam ser varridos do convívio social. Esses dois andamentos funcionam sempre por ampliação até ao ponto de não sobrar quaisquer resquícios de glória para este homem que finda encalacrado nele mesmo, tal como prenuncia a situação do pai, preso no mundo que ergueu para si, desde quando é relegado ao ostracismo social. De toda maneira, o abandono ou o cerceamento das criaturas plena e sinceramente devotadas ao ofício artístico parece testemunhar o estabelecimento de um mundo cujas qualidades da barbárie reacendem com um fôlego terrível aos olhos daqueles que alguma vez confiaram na razão com a qual se engendrou os aparelhos civilizatórios capazes de nos distinguir na natureza.
 
É óbvio que Rômulo Castelo reanima muitas qualidades de certa elite intelectual do Brasil, principalmente a que se coloca à parte porque apenas o seu mundo, feito das suas convicções, é o imprescindível. Nas presidenciais de 2022, o marketing se apropriou de algumas significações da cultura do livro para reafirmar o nós contra eles recorrente em todo imbróglio eleitoral — um sequestro elitista, diga-se, num país onde seus cidadãos mal ganham o que comer, num país com índices vergonhosos de leitura e sem uma política eficiente capaz de reverter esse quadro, num país que à arte e à cultura prefere o consumo. Mas a atitude do protagonista de Rafael Gallo diz muito desse fosso social cada vez mais alargado e que ora nos mantém na irrelevância ora nos arrasta para um enfrentamento de autodestruição.
 
Assim, a recusa a tudo e a todos, aos e outros e a si quando se percebe impossibilitado de realizar o grande feito da vida — alcançado mais de dez anos antes por outro —, é parte de um ressentimento profundo que encontra no curso da existência o ódio desmedido, desencadeador de várias frentes da mesma violência que nos solapa cotidianamente nessa selva; o segundo Rômulo Castelo é, paradoxalmente, produto de uma sociedade que cada vez mais se distancia de qualquer vulto civilizatório porque decidiu substituir os vícios da hegemonia dominante por outros de iguais qualidades. Combate-se, agora, por silenciamentos — ou pela fabricação de universos artificiais como notável em certa literatura onde ouvimos e dizemos o que nos afaga ou que o nosso mal é apenas o outro escolhido para inimigo —, por simplificações, sem enfrentamentos às raízes das complexidades que nos trouxeram até aqui.
 
Continuamente seduzido por um modelo cultural cujas fronteiras são agora amplamente negadas valendo-se quase sempre do desconhecimento ou dos anacronismos históricos, ignorando que nem tudo se reduz ao determinismo político uma vez sermos regidos também por certos princípios de ordem não perscrutável, Rômulo observa o Brasil como um país condenado à impossibilidade, à irrelevância e ao fracasso. É possível descobrir isso em pelo menos três frentes: na maneira como são tratados os que se dedicam seriamente ao ofício de desviar o país desse curso fatalista, notável no acidente em que a personagem se envolve; como nesse processo, este mesmo país transforma os seus homens de capital simbólico em parte da massa quase interminável de inválidos, como encontramos no singular episódio da fila de futuros beneficiários do INSS; como passamos a substituir as leis da dedicação, da aprendizagem e do estudo, por toda sorte de subterfúgios que nos condenam a um teatral faz-de-contas, com uma linguagem oca, com as consequências ainda imprevisíveis. Nossa invalidez para o enfrentamento sabemos por ora nos empurra para o regresso das forças opressoras que julgávamos sepultadas; a mobilização, nesse sentido, é universal. Quaisquer capacidades de transformação das coisas passam por um investimento sincero, elevado e contínuo de nossas forças em criar e fazer circular o que melhor fomos e ainda somos capazes de produzir tal como persegue e acredita o protagonista de Dor fantasma.
 
Este é um romance que não faz concessões. É a obra de um escritor envenenado, só assim capaz de apontar o terrível de nós mesmos e examiná-lo com a variação que a coisa merece, isso que diariamente queremos ocultar com silenciamentos, modos e linguagem neutra. Nesse sentido, é um romance corajoso. Ao assumir uma perspectiva que prefere o confronto ao simples apontamento, a investigação detida ao tom superficial e didático, o paradoxo à doxa, esta obra oferece um agudo ponto de vista fora do lugar-comum. Por reunir as condições que só a literatura é capaz, as que primam pela indecibilidade e apontam para o universal, esse romance não deveria ser exceção, mas regra numa literatura que nunca produziu tanto num país com imensos nós por destrinçar e incapaz de fazê-lo se continuarmos importando sintomas e conceitos tão alheios a nós como são alheias à grande gente muitas das nossas complexidades.


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Dor fantasma
Rafael Gallo
Biblioteca Azul
352 p.

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