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Luis Buñuel. Foto: Jack Garofalo. |
As quatro décadas que se passaram desde a morte de Luis Buñuel poderiam
ter se tornado um dos muitos purgatórios reservados para aqueles que
desfrutaram de um reconhecimento em vida que depois desapareceu com ele. Mas no
seu caso não tem sido assim. Por um lado, porque nunca teve uma projeção
excessiva entre o público comum à maneira de um Alfred Hitchcock. E, ainda, pela
falta de enfoque derivada de uma carreira atribulada que apagou sua trajetória
por muitos anos até terminar com o Oscar para
O discreto charme da burguesia
(1972) e a homenagem em Hollywood assinada pelos quadros superiores de seus
grandes mestres. Apenas o tardio livro de memórias
Meu último suspiro
(1982) começou a lançar as bases para uma certa perspectiva coerente, apesar de
tantos preconceitos ou omissões. E a partir daí, seu cinema, como um estopim retardado,
foi se tornando cada vez mais influente. Não apenas sobre outros diretores, mas
também entre escritores ou artistas das mais diversas condições. O que se segue
é uma breve amostra de uma sombra tão alargada.
Não é preciso ir muito longe para percebê-la. Bastaria recordar os
confinamentos devidos à recente pandemia de covid-19, durante a qual vieram à
tona as semelhanças com um dos seus filmes mais enigmáticos,
O anjo exterminador
(1962). Uma prova em grande escala sobre o modo de funcionamento do cinema de
Buñuel. Desde a sua estreia, perdeu nada do caráter metafórico da situação propõe,
nem a impossibilidade de a reduzir a uma leitura inequívoca. Os atavismos
mobilizados são irracionais demais e por trás alenta um longo rosário de pragas
que vão desde as bíblicas — de onde vem o título — até as medievais que
dizimaram a Europa ou a descrita por Daniel Defoe em seu
Diário do ano da peste
(1722) ou a cólera no século XIX e no século XX a chamada “gripe espanhola” de
1918. Assim, quando Albert Camus publicou
A peste (1947) já implicava um
estigma social e moral capaz de irradiar em múltiplas direções. O próprio
Buñuel recorreria a ele em
Nazarín (1959), onde a epidemia se especifica
visualmente na menina arrastando um lençol pelas ruas desertas.
Talvez por tudo isso, seu
Anjo exterminador sempre levantou
suspeitas de conotações políticas, embora fossem tão escorregadias que era
difícil defini-las. Foi o que aconteceu depois de sua estreia em Cuba em 1963,
quando a revolução castrista buscava modelos cinematográficos. O jornal de
governo
Hoy questionou sua validade e Alfredo Guevara, o homem-chave do
Novo Cinema Cubano, saiu defendendo o filme de Buñuel como um exemplo a ser
seguido. Sem o qual seria difícil conceber obras de Tomás Gutiérrez Alea como
Os
sobreviventes (1979) ou
Guantanamera (codirigida com Juan Carlos
Tabío em 1995). Alfredo Guevara sabia do que falava porque tinha feito parte do
grupo reunido pelo produtor Manuel Barbachano para apoiar Buñuel em
Nazarín.
Ora, da mesma forma que hoje, quando vemos
O anjo exterminador,
pensamos na pandemia de covid-19, no final da década de 1960 as revoltas
estudantis enfatizavam sua dimensão política. Na verdade, os distúrbios do
final foram percebidos como uma premonição daqueles que, em 1968, levaram ao
massacre na Plaza de las Tres Culturas, na Cidade do México. Mas trinta anos
depois, sublinhados muito diferentes podem ser encontrados na versão teatral
estreada em 1998 por Gigi Dall’Aglio no Teatro Stabile de Parma ou na
The
exterminating angel de Thomas Adès e Tom Cairns, apresentada no Festival de
Salzburgo em 2016, ou na homenagem de Woody Allen numa das sequências oníricas
de seu filme
Rifkin’s festival (2020). E é essa capacidade de
reverberação, para além desta ou daquela situação, que dá qualidade à obra de
Buñuel.
O epicentro de uma trajetória
Nem sempre foi assim. Pelo contrário, foi um fenômeno tardio no seu
itinerário vital e criativo, quando as novas ondas dos anos sessenta produziram
uma mutação no cinema que lhe permitiu ser redescoberto. Então começaram a ser
vislumbradas muitas das possibilidades exploradas por aquele diretor singular,
que não só demonstrou que preenchia muito bem as condições de um verdadeiro “autor”,
mas também que o havia conseguido dentro de uma indústria tão competitiva como
a mexicana, onde filmar três e até duas semanas era a ordem do dia. Uma vez que
conseguiu superar as servidões comerciais, também não aderiu aos clichês de
qualidade ao estilo de
¡Que viva México! de Eisenstein ou
María
Candelaria de Emilio “el Indio” Fernández. Nem mesmo se deixou levar pelo
sentimentalismo neorrealista ao mostrar a mais absoluta miséria. Talvez o único
registro que manteve foi o surrealista. Mas muito evoluída. Não era mais o de
André Breton, mas havia passado pelo filtro
Terra sem pão (Las
Hurdes) (1933) e as tradições culturais hispânicas.
Tratava-se, portanto, de um produto muito complexo e nada autoconsciente
que na década de 1950 começou a merecer reconhecimento do Festival de Cinema de
Cannes com
Os esquecidos (1950) para culminar com a Palma de Ouro por
Viridiana
(1961). E acredito que é nesta ocasião, entre esses dois títulos, que vale a
pena acentuar na hora de entender as conquistas de Buñuel. Antes de filmar
Os
esquecidos, havia realizado seus dois primeiros trabalhos,
Um cão
andaluz (1929) e
A idade do ouro (1930), autofinanciados ou com a
ajuda de algum mecenas, para um circuito muito restrito de cineclubes. Três
anos depois, com
Terra sem pão, deu uma guinada para o engajamento
político na órbita do comunismo e uma encenação aparentemente mais próxima do
realismo, embora sempre fora das grandes bilheterias. Até que em 1935 e 1936,
em Madrid, como produtor executivo da Filmófono, promoveu filmes puramente
comerciais, zarzuelas e esquetes. Mas essas três linhas de trabalho (o
surrealista de vanguarda, o documentário social e o comercial-industrial) até
então nunca se fundiram. A primeira vez que convergiram foi em
Os esquecidos.
Sem esse filme, o chamado “Terceiro Cinema” teria sido muito diferente,
da forma como tal conceito foi cunhado por cineastas como Fernando Solanas e
Octavio Getino, para opor-se aos blocos hegemônicos dos Estados Unidos e da
Europa. Sua marca é muito reconhecível numa infinidade de filmes, desde
Pixote
do brasileiro Héctor Babenco ou
Salaam Bombay! da indiana Mira Nair ao
A
vendedora de rosas do colombiano Víctor Gaviria.
Dito isto, a marca do cineasta aragonês não foi menor ao fornecer
alternativas que nos permitissem afastar o maniqueísmo dos slogans políticos
que, fugindo de Hollywood, esbarraram no resíduo estalinista da Mosfilm. Ou
substitutos que sob o álibi das melhores intenções, costumes e ambientes
populares, vieram ecair na eterna pasta melodramática. Sobretudo porque Buñuel
intuiu o perigo que o neorrealismo italiano continha, reforçado pela presença e
prestígio de Cesare Zavattini em alguns redutos hispânicos, como Cuba.
Padrinho do boom
Há mais, certamente. Existe a última fase francesa, mas essa é bem
conhecida. Muito menos é outra faceta sua tão ou mais decisiva: a influência de
Buñuel na literatura que renovou o cenário latino-americano através de uma
série de escritores que se sentiram atraídos pelo cinema e por uma
personalidade tão poderosa quanto a dele. Foi o caso do jovem Mario Vargas
Llosa em
A cidade dos cachorros, muito tributário de
Os esquecidos.
Algo que também não deveria surpreender, já que seu diretor era um cineasta com
formação literária e além de Luis Alcoriza e Pedro de Urdimalas, o poeta Juan
Larrea e o romancista Max Aub haviam colaborado no roteiro deste seu filme.
Também não é difícil notar nele a gravitação do romance picaresco, o Galdós de
Misericórdia
ou o Baroja de
A busca.
Outro escritor intimamente ligado ao autor de
Os esquecidos foi
Octavio Paz, que teve papel decisivo na divulgação desse filme na França, onde
atuava como diplomata. Nesse mesmo ano, 1950, ele havia registrado suas
profundas afinidades ao abordar a identidade cultural mexicana em seu brilhante
ensaio
O labirinto da solidão. E se falamos de literatura e antropologia
— e da necessidade de superar os constumbrismo indigenista — é inevitável
mencionar imediatamente Juan Rulfo, notável fotógrafo e cinéfilo, que
reconheceu o papel de guia desempenhado por Buñuel na encruzilhada em que o
país se debatia naquele momento. O autor de
Pedro Páramo também foi
contratado pelo jovem produtor Manuel Barbachano para escrever enredos, fazendo
parte do grupo de escritores que o cercou desde o mencionado projeto de
Nazarín
em 1958. Também — como enfatizou Amparo Martínez Herranz —, Barbachano colocou em
contato Buñuel e Carlos Fuentes e em 1964 contratou Gabriel García Márquez para
adaptar
O galo de ouro para a grande tela, narrativa que Rulfo escreveu
para esse fim. E propôs ao cineasta aragonês a possibilidade de adaptar
Pedro
Páramo, que acabaria levado ao cinema em 1967 por Carlos Velo.
Essa geração literária, que logo seria conhecida como a geração do
boom,
não perdeu a magnitude de Buñuel, que trabalhava a partir do México com
materiais tão precários quanto os demais em seus respectivos países, sem que
isso fosse um obstáculo para um amplo público internacional. E começaram a
explorar a possibilidade de o cineasta adaptar as suas obras, que lhe enviavam
com dedicatórias efusivas. Foi o que Carlos Fuentes fez em 1962 com
Aura.
Ou García Márquez com
Os funerais da mamãe grande, além de escrever o
roteiro do filme
É tão fácil que até os homens podem fazer, com a
expectativa de que o diretor o filmasse. Posteriormente, Julio Cortázar não
esconderia sua satisfação com a perspectiva de don Luis incorporar o conto “As mênades”
em um de seus projetos e José Donoso que também chegou a considerar isso com o
seu romance
O lugar sem limites (1966), que Arturo Ripstein finalmente
filmou em 1977.
O pior Buñuel
Mas nem tudo foram flores, nem o conjunto da obra do cineasta teve ou
manteve o mesmo interesse. Existem partes quase puramente descartáveis. Por
exemplo, a já mencionada etapa espanhola no Filmófono em 1935 e 1936. Ou, já no
México, melodramas maternos como
Uma mulher sem amor (1952), que em nada
melhorou os proverbiais “churros” dos estúdios mais obstinados. E o mesmo
acontece com obras de “tese” como
O rio e a morte (1954).
No entanto, se desqualificam em termos similares as três coproduções com
a França que bem poderiam ser consideradas uma espécie de trilogia “política”
composta por
Assim é a aurora (Cela s’appelle l’aurore, 1956),
A
morte no jardim (La mort en ce jardin, 1956) e
Os ambiciosos (La
fièvre monte à El Pao, 1959). Apesar de seu bem-intencionado “compromisso”, os
resultados não são dos melhores, talvez porque ele se sentiu compelido a
registrar uma ideologia à qual sua antiga militância comunista o encorajava.
Aí naufraga explicitamente sua ideologia. Porque sua obra não é mais “político”
por se pretender como tal. O seu Engels não é de manual nem de jarro, mas sim
aquele que pedia ao artista que descrevesse relações sociais autênticas para
erodir as ideias convencionais e questionar o otimismo burguês ou a ideia de
que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Tampouco seu Marx era o mais
esperado, mas sim aquele que defendia mostrar as coisas de modo que as coisas
cotidianas fossem estranhas e as coisas estranhas cotidianas. E é nesse estranhamento,
nesse olhar desestabilizador, que reside o mais irredutível Buñuel e talvez a
razão de sua permanência.
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